E quem disse que estamos trajando roupa para a festa? Uma reflexão a partir da parábola do “Banquete Nupcial” (Mt 22,1-14)

10 Outubro 2020

"Na festa, nós celebramos. Celebramos a nossa chegada e o caminho que percorremos; trazemos a nossa memória, uma memória cheia de vida, de lutas e sonhos. Celebramos a memória daquele que nos mostrou o caminho, que deu sentido a nossa vida através da sua vida. Este é o espírito do encontro. Deus se desinstala, ele se despoja e vem ao nosso encontro; nós fazemos o mesmo e vamos em sua direção", escreve Cesar Kuzma , teólogo leigo, casado e pai de dois filhos, doutor em Teologia pela PUC-Rio, onde atua no Programa de Pós-Graduação em Teologia e presidente da SOTER.

Segundo ele, "o Evangelho oferecido gratuitamente só pode ser respondido na nossa liberdade, na liberdade para viver e para amar".

 

Eis o artigo.



Havia um homem que morava em certa cidade e nela ele alimentava as suas relações há bastante tempo. Em tudo ele era referência e a ele todos se reportavam. Era como se dissesse que em cada canto daquela cidade se manifestava algo que tinha a ver com aquele homem, que nunca a invadiu em sua maneira de ser, mas que a respeitava em seu ir e vir, naquilo que lhe era próprio, a sua liberdade. O que ele queria, na verdade, era salvaguardar que tudo seria bom e que tudo teria um bom fim.
Aconteceu que, com o passar do tempo, a cidade foi aumentando em tamanho e crescendo em número de pessoas e, com o agito que circulava o seu bem-estar, as pessoas foram se afastando e passaram a viver com outros propósitos e em outras direções... O velho homem já nem era tão lembrado, sua referência estava distante, os mais novos nem o conheciam, aos demais, os tempos agora eram outros e havia outras e mais urgentes preocupações.


Mas chegou o tempo em que o filho deste homem atingiu a maturidade e, no momento certo, saiu da casa do pai e foi seguir o seu caminho, dando continuidade ao plano do pai, em comunhão com ele, mas num jeito que lhe era próprio e específico. Ele mantinha a fidelidade ao pai e um guardião o acompanhava e guiava os seus passos. Nessa cidade, esse filho chegou como um estranho, não quis se mostrar como filho do pai, mas quis fazer conhecer a sua vontade, colocando-se à disposição e em serviço. Ele se enamorou da cidade, se dedicou inteiramente a ela, e nela encontrou e conheceu a sua noiva, se entregando totalmente a ela e a levando para um encontro maior e pleno, um encontro no amor, na sua casa, na casa de seu pai.


A alegria do pai era tanta que resolveu fazer uma grande festa. Um banquete! Era o momento maior, sublime, era a união do seu filho com alguém que trazia a marca daquela cidade que o pai tanto amou e cuidou. Prepara-se a festa, o banquete, jamais alguém ouviu falar em algo tão grande, uma festa preparada com todos os detalhes e com todo carinho.

 

O pai, na sua alegria e bondade, pede que convidem todas as pessoas importantes da cidade, dedica horas a elas, sabe da importância que têm e espera deles o reconhecimento. Mas o pai estava esquecido e poucos ainda se importavam com ele, e recusaram o seu convite.

 

O pai não se abalou, ainda era tempo de festa e mandou chamar outros, pessoas de sua estima, pessoas em quem ele depositava confiança e apego; foram-se os convites, mas também esses recusaram. O pai sente, é um golpe forte, era como se ele não existisse mais, estava esquecido. Aqueles a quem ele tanto amou recusaram a sua presença. O pai lamenta, sofre, mas vê a alegria do filho e quer ser fiel a ele, pois assim será fiel à sua noiva, que representa aquelas e aqueles que ele tanto quis.

 

Era festa, era alegria, o pai pede e envia convites a todas as pessoas que ele conhece, vai aos lugares mais escuros e esquecidos da cidade, ele chama “todos e todas”: ele chama os pobres, os doentes, os que estavam na dependência química, os bêbados e moribundos, os que eram discriminados pela sociedade, os divorciados e divorciadas, os homoafetivos, os negros e negras, os índios e índias, as mulheres que foram espancadas por seus filhos e maridos, as prostitutas, os presos, chama as pessoas que eram vítimas da violência, enfim, chama “todos aqueles e aquelas que ninguém vê, que ninguém toca e que ninguém sente”. O pai chama aqueles e aquelas que são mais vulneráveis e diz que é para eles que ele preparou a festa. O pai estende a esses o seu convite e, para a alegria do pai, do filho e da noiva, eles aceitam e se dirigem à casa do pai para festejar. Uma alegria!


Acontece a festa. Todos comiam, dançavam e se alegravam, e o noivo estava com eles! No meio deles! O pai, então, começa a percorrer os espaços da festa e começa a agradecer todos que ali vieram, demonstra a eles a sua alegria, diz que a presença de cada pessoa é importante e que eles, que estavam na “desgraça” da vida, encontraram ali a sua “graça”, um tom novo, onde podem recomeçar. Aprende-se a viver. O pai lhes deu confiança e certeza, produziu neles o gérmen da esperança. E, assim, seguiu o pai...

 

De repente, o pai olha para o lado e vê uma pessoa diferente, uma pessoa distinta e bem apresentada, mas que não se alegra com os outros e que não se sente à vontade no meio onde está. Está desconfortável, se sente incomodada. Esta pessoa não se mistura e o pai a olha e tenta reconhecê-la, mas ainda assim se pergunta:

- Por que será que não está animada e feliz quando o noivo está aqui? É festa!


O pai chega mais perto e olha bem para aquela pessoa e vê que ela se comporta de maneira diferente. Ela está tão carregada e fechada em suas roupas que não se sente confortável e livre para dançar e festejar com os outros. Tudo é pesado. Essa pessoa se enfeitou tanto para estar ali e deu tanta importância a outras coisas que se esqueceu do que é essencial, que é a alegria, a expectativa e a novidade da festa, o convívio com todos, que é a mesa comum e a partilha, o contato, o abraço, o beijo e o afago... O pai, então, aproxima-se e pergunta:

- Por que você não veio preparado para a festa? Por que está com estes trajes pesados que escondem o seu ser e não nos deixam te ver realmente?...


O pai, na sua imensa misericórdia e bondade, ainda tenta trazê-la para a festa, insiste que tire as amarras, que tire aquelas roupas caras e pesadas e fique apenas com o que é importante. Que seja livre! O pai mostra-lhe as demais pessoas que ali estão, pede que veja como estão felizes agora e diz que não entende como alguém pode ter se esquecido delas, o pai não entende como alguém pode ter feito mal a qualquer uma daquelas pessoas que ali estavam, ou coisa assim. O pai então chama esta pessoa para o meio deles e quer fazer uma aproximação, mas a postura da pessoa, sua rigidez, a impedem de ir.

 

- Isso não é correto  diz a pessoa. Não é esta a lei, não é assim que deveria ser... Eu achei que te conhecia e quis te impressionar com minha presença... Eu trouxe tudo o que considero importante e “estes” não te trouxeram nada... Como podem se alegrar na presença do noivo?... Como podem dançar na sua presença? Quem são eles, o que fazem?... O que fizeram?... Olhe aquele, e aquele!... Veja aquela!... E aquele lá?!... Isto não está certo, vai contra o que é correto. Não é assim que deveria ser.

O pai, com afeição e bondade, olha e diz:

- Eles estão livres e acolheram com bom grado o meu gesto de bondade. Por que você ficou tão preso a estas coisas? Por que você não faz o mesmo?


A pessoa respondeu:

- Mas eu fiz tudo o que me disseram!


E o pai, na eterna bondade, respondeu:

- Mas esta não é a roupa de festa. Seja livre!



A salvação é dom de Deus, é graça. O nosso gesto, a nossa postura, deve ser de acolhida. Ao acolher, nós abrimos a nossa vida diante do mistério e permitimos que o mistério atue em nós. No acolher, o mistério se manifesta e nos liberta para a verdadeira vida, o mistério nos coloca no seguimento daquele que revelou todo o mistério; ele nos desinstala e nos abre uma nova perspectiva, um espaço novo, um futuro, leva-nos ao encontro daquele que nos chama e prepara uma grande festa.

 

Na festa, nós celebramos. Celebramos a nossa chegada e o caminho que percorremos; trazemos a nossa memória, uma memória cheia de vida, de lutas e sonhos. Celebramos a memória daquele que nos mostrou o caminho, que deu sentido a nossa vida através da sua vida. Este é o espírito do encontro. Deus se desinstala, ele se despoja e vem ao nosso encontro; nós fazemos o mesmo e vamos em sua direção.

 

O que nos impede de aceitar o convite e compartilhar a vida e a esperança?
O que nos impede de ir a todos os cantos e encontrar todos aqueles e aquelas que necessitam de nosso amor e abraço?
O que nos impede de ser livre?
O Evangelho oferecido gratuitamente só pode ser respondido na nossa liberdade, na liberdade para viver e para amar.


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