Um mundo cada vez mais populista

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09 Setembro 2019

O mundo tem um problema consigo mesmo e com os populismos impetuosos que o governam, não com o peronismo. Por mais paradoxo que seja, o peronismo nunca esteve tão próximo do mundo como hoje e jamais suscitaria tanto interesse nos meios universitários e políticos do Ocidente como na atualidade. É uma originalidade pacífica que navega em um planeta oprimido pela violência verbal e política das ultra-direitas nacionalistas e o populismo liberal-burguês.

O artigo é de Eduardo Febbro, publicado por Página|12, 09-09-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

Onze dos 28 governos da União Europeia estão constituídos ou assediados pelos movimentos populistas da extrema-direita. A primeira potência mundial, os Estados Unidos, está governada por um populista racial e nacionalista. A democracia mais antiga do mundo, Grã-Bretanha, está por sair da União Europeia empurrada por um populismo isolacionista e hoje navega à deriva. A Itália cambaleia ainda no vazio, com os golpes que o populista Matteo Salvini brinda a sua democracia e a Espanha consegue armar maiorias regionais com um pacto entre o Partido Popular, Ciudadanos e a extrema-direita do Vox.

Na Hungria, faz pouco que Viktor Orbán reatualizou os catecismos de raízes populistas e inaugurou a prática do liberalismo autoritário. Mais perigoso ainda, na primeira democracia do mundo, a Índia, o populismo confessional do primeiro ministro hinduísta Narendra Modi, do partido nacionalista hindu BJP, conservou o poder graças a uma retórica ultra étnica-religiosa contra as minorias cristãs e muçulmanas. Narendra Modi fez da Índia uma democracia étnica graças a uma narrativa religiosa-populista que se encarregou de esmagar, com um rigor militar, que a Índia era única e exclusivamente um país hindu. Há algumas semanas, Modi retirou a nacionalidade índia a mais de dois milhões de muçulmanos.

No Brasil temos como prova o populismo evangélico de Bolsonaro. A lista não é exaustiva, mas frente a esses populismos escatológicos, o pretendido populismo argentino é um oásis harmonioso para nômades cansados. Esse conto das elites brancas e ignorantes não serve mais. São piscadas de sua pobreza ideológica, de sua dependência cultural com o Ocidente. Durante o século XX, toda manifestação de soberania ganhou o adjetivo de “fascista”. Agora o trocaram por populista e inventaram o espantalho do chavismo e Venezuela. Antiquado.

Nas eleições presidenciais de 2006, quando o ex-presidente Alan García estava apertado pelo seu rival Ollanta Humala nas pesquisas eleitorais, García tirou no final da campanha o slogan “O Chávez ou o Peru”. Quando ganhou as eleições, durante a conferência de imprensa posterior, uma jornalista do canal Al-Jazeera lhe fez uma pergunta insistente e García a tratou de “Senhorita Al-Qaeda”. Um ignorante sem ética, nem respeito por nada. O mesmo argumento voltou a ressoar até se saciar contra o atual presidente do México, Andrés Manuel López Obrador. Seus adversários financiaram um documentário sobre “os populismos” com o que armaram uma montagem bruta para provar que Obrador era um populista, um filho de Chávez, da ex-presidenta Cristina Fernández de Kirchner, de Lula e Evo Morales e que faria do México uma Venezuela. Mas deixaram no caminho, é claro, o Rei Populista: Donald Trump. Até nisso eles têm medo.

Se o peronismo kirchnerista é populista, então Donald Trump é um senhor educado, o britânico Boris Johnson um fino socialdemocrata do século XX e Matteo Salvini um aristocrata ilustra. Por trás dessa triturada narrativa se esconde um populismo liberal-burguês antiquado, disfarçado de decência e futuro e ao mesmo tempo transbordante de violência cultural. Suas figuras não são somente as elites que detém os ganhos das finanças: também estão incrustadas nessa confusão que povoam os meios de comunicações, os canais de televisão cheios de panelistas mentirosos e marionetes que cospem lixos. Não longe estão os falsos jornalistas que trabalham de mãos dadas com as máfias alojadas no Estado. A Argentina sofre, a juventude se aborrece e o século XXI corre mais rápido que a capacidade das elites nacionais para assimilá-lo.

Não, o mundo não tem nenhum problema com o peronismo. Jamais saímos do mundo. Sempre fomos parte da diversidade do mundo e essa diversidade adquiriu hoje um valor muito a alto e agora excêntrico. Pronunciar um não contundente aos abusos do sistema financeiro, às pretensões das multinacionais ou os fundos abutres não é nem ser populista, nem sair do mundo, mas sim uma manifestação de soberania. Que os apóstolos liberais do jornal El País o do Wall Street Journal se engasguem é um problema de seus estômagos e não da sociedade. Há meios de comunicação do mundo (El País, da Espanha, em primeiro lugar) que deveriam pedir desculpas pelas ofensas propagadas em nome do conto “A Argentina volta ao mundo”.

Há um “país tardio” (Borges) que não termina de aceitar que o peronismo é uma das forças que construíram o país, que é uma peça do arco constitucional que representa outras classes as que nossas antigas direitas desprezam. Não é um partido do passado, mas sim da permanência, da constituição de uma identidade. Dali o interesse que suscita hoje no mundo como partido multiclasse e ideologicamente polifônico, com uma capacidade de traçar linhas de encontra e não de ruptura que poucos movimentos possuem na atualidade. Contrariamente aos populismos globalizados, o peronismo kirchnerista não propõe uma confrontação de classe, menos ainda um conflito racial ou religioso. Qualquer comparação, inclusive superficial, com as tendências populistas globalizadas, fortalece sua imagem. Ninguém pode tirá-lo do mundo porque é uma das respostas coerentes ao mundo confuso de hoje.

Uma nação somente existe como tal por sua unidade, não pela confrontação entre seus diferentes. A França não rompeu nem com a avalanche destruidora da extrema direita da Frente Nacional, nem com os atentados islâmicos contra o semanário Charlie Hebdo (7 de janeiro de 2015, 12 mortos) ou os de 13 de novembro do mesmo ano em Paris (137 mortos, 414 feridos), nem com o de Nice (14 de julho de 2016, 84 mortos). Em 2015, milhões e milhões de pessoas saíram à rua com o cartaz “Je suis Charlie”. Levavam também um lápis na mão ou o livro Tratado sobre a tolerância, escrito por Voltaire em 1763. Ali se radica o grande projeto da direita populista globalizada e de seu sobrinho, o liberal populismo burguês. E do islamismo radical: “agrietar”, romper, gerar ira e ódio como metodologia.

La grieta” é sua crença, a expressão mais crua do seu populismo radicalizado. Por isso é preciso extirpar essa palavra das análises. O termo “grieta” remete a uma cruzada de destruição irreparável de uma sociedade. Esse termo é de um mercenário surgido no seio do projeto do ex-conselheiro e artífice da vitória de Donald Trump, Steve Bannon. Muitos o consideraram como um palhaço, porém não é. Bannon é um gênio moderno, um gênio maligno que levou a prática, nos Estados Unidos e Grã-Bretanha, sua contundente estratégia. Cabe em uma frase a vista de todos: “se queres transformar uma sociedade, quebre-a”. O macrismo chegou com balões inflados com essa ideia de ruptura, começando pela quebra espacial entre o mundo e a fratura temporal segundo a qual “eles são o passado”. Em ambas narrativas foi seguido por seus criados locais e vários meios de comunicação do mundo. O problema desses meios cegos de afinidade é que em algum momento terminam desafinados.

No entanto, ademais de falhar em tudo, nunca assumiu a missão simbólica que lhe confere o voto majoritário: todo partido que chega ao poder se apropria da história. Apenas assume a herança o relato nacional e o relato de seu predecessor. Entre ambos, tem que inscrever seu próprio relato. O macrismo consagrou toda sua energia em reescrever a história de seus predecessores imediatos e ficou sem história própria. Como um corredor extenuado, se atrincheirou no desgastado roteiro do lobo populista, do mundo que não quer o peronismo, de uma Argentina que poderia se parecer com a Venezuela. Fez o mesmo que todas as direitas populistas do mundo.

“A política é a arte de fazer possível o necessário”, dizia Jacques Chirac, ex-presidente da França. O macrismo fez impossível até o básico. O mundo não está em conflito com o peronismo, nem esse com o mundo. Não é um partido proscrito pelo sistema mundial. É a Argentina de Macri que colocou o país em estado de conflito com o mundo pela dívida que gerou e que jamais conseguiu gerir sem destruir nem a sociedade, nem a confiança dos mercados. Aí estão as duas fraturas que semeou: a nacional e a mundial. Conseguiu também uma façanha filosófica impensável: sua insolúvel ineficiência mudou o olhar insólito que muitos meios de comunicação do mundo tinham sobre o peronismo. Recém agora começam a entender nossa história e quem é quem nessa história.

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