26 Junho 2019
"A tarefa da FAO é combater a fome no mundo, mas esta é uma narrativa muito romântica para uma agência que na verdade tem um papel chave na orientação do comércio mundial de alimentos e na definição de políticas sobre a soberania alimentar em nível global", escreve Alberto Bobbio, em artigo publicado por L’Eco di Bergamo, 25-06-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
No final, conseguiu. Ontem à tarde a China tomou a Fao. No primeiro escrutínio, Qu Dongyu, número dois na política agrícola de Pequim, ganhou o desafio e subiu ao vértice da organização mais estratégica das Nações Unidas. A tarefa da FAO é combater a fome no mundo, mas esta é uma narrativa muito romântica para uma agência que na verdade tem um papel chave na orientação do comércio mundial de alimentos e na definição de políticas sobre a soberania alimentar em nível global. Para a vitória, os votos dos países pobres foram decisivos. A política da carteira de Pequim foi recompensada. O setor de alimentos é crucial hoje nos projetos das maiores commodities financeiras.
O comércio de matérias-primas e o papel dos grandes fundos de investimento na determinação das políticas de preços investe o setor agroalimentar em níveis cada vez maiores desde a crise hipotecária de 2008. E o alimento se tornou o verdadeiro campo de batalha dos capitais especulativos nos últimos dez anos. A China nunca esteve fora do jogo com sua enorme disponibilidade de liquidez e seu grande mercado interno que pode mudar a direção dos tráfegos, incluindo os alimentos.
Atualmente, a cadeia mundial de fornecimento de alimentos emprega um bilhão de pessoas, um terço da força de trabalho global. Os donos do alimento são dez irmãs, marcas que precisam de dinheiro e se movem nos mercados financeiros globais com astúcia e sem prestar atenção aos direitos humanos. Em suma, quem melhor do que Pequim para garantir posições e lucros estratosféricos em um setor onde agem com astúcia e malícia multinacionais e governos e onde, ao mesmo tempo, tudo pode ser dissimulado com os bons sentimentos da luta contra a fome?
Entre os candidatos até algumas semanas atrás havia também um africano, o camaronês Medi Moungui e o indiano Ramesch Chand, mas ambos abandonaram e, talvez, no caso do africano, não foi por acaso que Pequim tenha, com uma doação certamente liberal, reduzido a dívida externa de Yaoundé poucos dias antes da eleição.
Assim, Pequim, 30 anos depois da vergonha de Tiananmen, assume uma posição estratégica e impõe seus valores no meio de uma guerra comercial com os EUA e no desenvolvimento daquela rede global de comércios chamada Rota da Seda.
Pequim tem um método: primeiro compra mercadorias como em um supermercado. Depois compra o supermercado. Direitos humanos, respeito pelas cadeias de produção nacionais, apoio aos pequenos produtores, conservação do meio ambiente e da biodiversidade, escrúpulos no uso da terra, tudo passa em segundo plano nas políticas da carteira chinesas. A África é um exemplo perfeito disso com as políticas de landgrabbing, tendo o continente 80% da terra cultivável ainda disponível.
Na África, a China enviou forças de paz nas missões da ONU. Agora galgou o vértice da FAO, que administra quase três bilhões de dólares por ano, uma conta nada insignificante para determinar as geopolíticas agrícolas a seu favor, contra o pano de fundo da luta contra a fome, que hoje atinge cerca de 800 milhões de pessoas com previsões de aumento para um bilhão até 2050.
Ao redor os interesses são enormes e variam dos OGM, capítulo crucial da segurança alimentar, às culturas intensivas, que consomem solo e árvores, decisivas na mudança climática, muitas vezes com interesses contrapostos entre governos e donos dos alimentos.
Colocar as mãos na ONU não é pouca coisa para atrair mais recursos privados para as políticas alimentares. Serve, no mínimo, para enfraquecer todo raciocínio sobre a sustentabilidade, hoje o principal obstáculo à ganância da economia que mata.
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A China galga a ONU. Para seus próprios interesses - Instituto Humanitas Unisinos - IHU