Dinheiro, ética, desenvolvimento. O dilema da fé dez anos depois da Lehman Brothers

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10 Outubro 2018

Com o colapso da Lehman Brothers, dez anos atrás, não só foi triturado um sistema financeiro: também aflorou o fracasso da relação entre ética, economia e finanças, com base na qual por um longo tempo operaram as instituições públicas e privadas e as religiões. Revelaram-se em toda a sua inconsistência o velho modelo da advertência ética sobre o emprego do dinheiro, a utopia de moralistas sem o ônus de ter que fechar as contas, o paternalismo dos líderes religiosos que condenam do púlpito a especulação, mas a praticam à vontade na sacristia. Portanto, a busca por uma nova ordem depois de 2008 é a busca de um novo papel para a religião na sociedade global.

A reportagem é de Marco Ventura, publicada no caderno La Lettura, do jornal Corriere della Sera, 07-10-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.

A adoção em 2015 pelas Nações Unidas dos 17 objetivos para o desenvolvimento sustentável - os agora famosos Sdgs (sustainable development goals) - moldou essa busca. Se o mundo inteiro está à caça de desenvolvimento, crentes e comunidades de fé não querem ficar parados e nem mesmo correr menos que os outros. Para incentivar a corrida, nasceu em 2014, o "G20 Interfaith Forum", plataforma convocada a cada oportunidade no país que hospeda o G20 dos Estados, poucos meses antes dele, a fim de permitir a indivíduos e grupos religiosos formular recomendações. Após a primeira edição, em Brisbane, o G20 Interfaith reuniu-se em Istambul (2015), Pequim (2016) e Potsdam (2017). De 26 a 28 de setembro deste ano, o fórum foi realizado em Buenos Aires, em previsão da cúpula os líderes mundiais que acontecerá em 30 de novembro e 1º de dezembro próximos.

Para fazer ouvir a própria voz, a religião mobiliza todas as suas vozes. Em Buenos Aires se encontraram cristãos de toda confissão, judeus e muçulmanos, bahais e hindus; entre os principais financiadores, uma fundação xintoísta e os mórmons. Durante três dias, se confrontaram líderes religiosos e representantes de organizações não governamentais, agências humanitárias, de caridade e financeiras, juristas e economistas, personalidades proeminentes como o ex-arcebispo de Canterbury, Rowan Williams, e o ex-enviado do presidente Obama para a liberdade religiosa, o rabino David Saperstein. Na mesa, os dois principais canais de impacto religioso: de um lado, a gestão dos recursos possuídos pelos crentes individuais e pelas comunidades de fé; do outro lado, a influência religiosa sobre os recursos alheios, dos Estados e das organizações internacionais, mas também de empresas e do setor financeiro. Em ambos as modalidades, os atores religiosos têm o poder de investir em setores estratégicos do desenvolvimento: da energia ao meio ambiente e às migrações, da corrupção às emergências humanitárias e ao tráfico de seres humanos.

O compromisso das religiões assume, assim, uma dupla fisionomia: de um lado é inter-religioso, porque só através da união das vozes, a voz da religião torna-se mais forte e porque só integrando muitas crenças diferentes o impacto da religião torna-se global; de outro lado, as religiões colaboram com Estados e as instituições supranacionais.

O projeto tem energia, é convincente, reescreve as relações entre as crenças e entre as religiões e Estados na insígnia dos problemas do mundo. No entanto as incógnitas não faltam. Aquela que agitou em profundidade os quatrocentos participantes chama-se identidade. No trabalho inter-religioso, os líderes religiosos tranquilizam: temos clara e salda a nossa identidade e colaboramos para o desenvolvimento, não para uma reforma teológica em nome do sincretismo. A tranquilização soa mais frágil quanto mais é insistente. De fato, não se pode ignorar que a mobilização religiosa para o desenvolvimento transforma significativamente a identidade dos crentes. A assembleia de Buenos Aires, como as anteriores, e como outras instâncias semelhantes, coloca em cena religiões que fazem trocas uma com a outra através do diálogo e da cooperação.

Não menos grave é a questão da identidade que é colocada na colaboração entre Estados e atores religiosos. Alvaro Albacete, embaixador espanhol representante do Kaiciid de Viena, ente para o diálogo inter-religioso e intergovernamental criado pela Arábia Saudita, Áustria e Espanha e do qual a Santa Sé é fundador-observador, saudou essa nova colaboração que acontece felizmente na era da "confusão” confessional nas relações entre Estados e igrejas e na era da separação laicista. Nem todos são tão otimistas quanto o embaixador Albacete. As Nações Unidas e as agências de desenvolvimento estão abertas à contribuição das religiões, mas não querem que isso desvie sua agenda. Por outro lado, os atores religiosos não cedem quanto à sua especificidade. Estamos dispostos a transformar-nos para trabalhar com as agências de desenvolvimento, mas o nosso sempre será um trabalho de evangelização, disse Humberto Ortiz Roca, especialista da Conferência Episcopal Peruana.

Em seu discurso de abertura, a vice-presidente argentina Gabriela Michetti foi extremamente clara: "Como mulher de fé, acredito que nada da condição humana seja alheio à religião." As fronteiras estão se movendo. Ficou evidente em Buenos Aires como a aliança de religiões para o desenvolvimento coloca em discussão a identidade das igrejas e dos Estados, dos homens e das mulheres de fé e de Estado. Isso se destaca particularmente nas comunidades religiosas, onde o compromisso com o desenvolvimento e os riscos associados, abrem frentes dramáticas. A esse respeito, o neocardinal peruano Pedro Barreto Jimeno foi muito determinado. Em sua intervenção, definiu os ataques católicos a Francisco "uma vergonha para a Igreja", diante da qual se pode ter certeza da determinação do Papa argentino: "Francisco talvez possa avançar um centímetro de cada vez - disse Barreto - mas não recua nem um milímetro”. Solicitado pelo “la Lettura”, o cardeal explicou então que está enganado quem vê apenas uma luta pelo poder nas tensões do Vaticano: "Estão unidos entre si a purificação da Igreja, a sua reforma em sentido colegial, e sinodal e o seu compromisso pelo desenvolvimento sustentável".

Por trás da questão da identidade permanece o nó decisivo que surgiu dez anos atrás com o colapso da Lehman Brothers e do sistema financeiro, ou seja, o lugar da religião na agenda para o desenvolvimento. Durante um debate sobre o financiamento dos objetivos de desenvolvimento sustentável no G20 Interfaith Buenos Aires, tomou a palavra um advogado católico da diocese Sydney: "Estamos falando de objetivos sustentáveis de maneira superficial - protestou ele - como se os Estados tivessem recursos que, ao contrário, não têm, e como se o Ocidente estivesse disposto a jogar dinheiro em países devorados pela corrupção". E ele concluiu: "O desenvolvimento sustentável deve ser financiado em grande parte pelo setor privado, este é o maior desafio, inclusive para as religiões".

O desenvolvimento global certamente precisa de uma profecia para a inovação, mas também de concretude e resultados. O desafio diz respeito principalmente às empresas e às finanças, por um lado, e às religiões, pelo outro.

Caberá ao business dar o exemplo para as comunidades de fé? Ou serão os crentes a desenhar o business sustentável do futuro?

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