Diagnóstico das finanças públicas, sob a PEC-55

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10 Novembro 2016

"Veja por que a dívida pública brasileira é controlável. Como as receitas estão caindo, de modo grave. E de que forma a proposta do governo pode converter doença amena em crise terminal". 

O comentário é de Grazielle David, assessora política do Inesc, especialista em Bioética e mestre em Saúde Coletiva pela Universidade de Brasília – UnB, em artigo publicado por Outras Palavras, 08-11-2016.

Eis o artigo.

Com tantos materiais já produzidos sobre a PEC que limitará os gastos sociais, é oportuno que sejam feitas interpretações de seu conteúdo com outros formatos e linguagens, para que mais pessoas possam se inteirar sobre o que ela diz e que o representará para a sociedade brasileira. É com esse propósito que esse artigo pretende avaliar se o tratamento via PEC 55 (ex-241) fará bem à saúde fiscal e ao bem estar da brasileira, numa perspectiva diferente. Vamos abordá-la, agora, pela perspectiva do diagnóstico médico, em suas etapas essenciais.

I. Anamnese  (entrevista para fazer o diagnóstico e traçar o tratamento do paciente)

Queixa Principal: Déficit fiscal

História da Doença Atual: O Brasil é um paciente que chegou com a queixa de que estaria com uma doença chamada de déficit fiscal. Ele relata que, apesar de nos últimos anos ter tentando e conseguido controlar suas despesas primárias, não pode controlar as despesas financeiras e nem melhorar sua receita. Que agora ele está com muito medo das complicações. Diz que consultou o Google sobre seus sintomas e viu expressiva quantidade de textos descrevendo sua condição como sendo gravíssima e que sua dívida pública iria aumentar de forma descontrolada; que ele está no pior momento de sua vida, enfrentando terrível recessão, entre outros males. Entretanto, o paciente Brasil segue relatando que é estranho porque ele não se sente tão mal assim, sente que precisa sim se reorganizar, mas que tem potencialidades. Relata ainda que agora quer ouvir outras opiniões, de outros especialistas, porque os primeiros disseram que a única solução possível seria cortar as despesas primárias, mas que ele tentou fazer isso no ano passado, com algumas medidas de “austericídio”, digo, austeridade fiscal e cortes orçamentários em políticas públicas que promovem direitos, mas sua situação só piorou.

II. Exame

Avaliação das despesas financeiras:

As despesas financeiras do Brasil, com pagamento de juros e amortização da dívida, consomem uma parcela importante do orçamento público, e cresceram muito nos últimos anos. Um dos principais fatores é a alta taxa de juros que o Brasil pratica, especialmente porque os títulos da dívida pública, em sua maioria interna, estão indexados à própria taxa de juros (Selic), que é determinada por uma decisão do Banco Central. A justificativa constante para os juros altos sempre foi a necessidade de controlar a inflação. Porém, o ano de 2016 mostrou que o argumento não era verdadeiro: apesar da redução da inflação, as reuniões do COPOM seguidamente mantiveram a taxa Selic alta. Em 2016, pelo Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA), R$ 304 bilhões, o que corresponde a 14% do orçamento federal, estão comprometidos com o pagamento de juros. Outros 7,6%, o equivalente a R$ 160 bilhões, estão destinados à amortização da dívida, chegando a comprometer 21,6% do orçamento federal em 2016. Para 2017 a situação é ainda mais grave: segundo o PLOA 2017, com o filtro do valor de refinanciamento da dívida, R$ 339 bilhões serão destinados para o pagamento de juros e mais R$ R$ 437 bilhões para amortização da dívida. Com isso, 30% do orçamento federal serão comprometidos com despesas financeiras.

Tabela 1 – Orçamento Federal por Grupo de Natureza da Despesa (GND)


*Considerando inflação de 7,2%, conforme PLOA 2017. Elaboração: própria. Fonte: Siga Brasil

Avaliação das despesas primárias:

Apesar do que andaram dizendo, de que os gastos do paciente Brasil eram exagerados, ele é que está certo, suas despesas primárias definitivamente não estão fora de controle. Inclusive, entre 2011 e 2014, as despesas primárias — aquelas que correspondem às políticas públicas que promovem direitos e aos investimentos com infraestrutura para que o País possa continuar crescendo – tiveram uma média de crescimento inferior aos dos períodos anteriores.

Tabela 2 – Indicadores de receita e despesa pública, variação e média por mandato presidencial, valores nominais– 1995-2014


Fonte: FMI (2015) e Siga Brasil.

Avaliação das receitas:

A situação da receita do Brasil é complicada. Enquanto entre 1995 e 2010 ela vinha crescendo, entre 2011 e 2014, especialmente em 2014, ela caiu bastante. Do período de 2007 a 2010 para o período de 2011 a 2014, a média de crescimento das receitas caiu pela metade.

III. Diagnóstico:

O Brasil enfrenta uma crise que se deve à queda das receitas e às despesas financeiras cronicamente elevadas, que por sua vez decorrem de uma taxa de juros excessivamente alta, e não por excesso de despesas primárias. Esse quadro se deve aos efeitos da crise econômica global iniciada em 2008, que afetou todos os países em tempos e intensidades diferentes, e que perduram até hoje; à queda dos preços das commodities, especialmente mais intensa no final de 2014, sendo que o Brasil é muito dependente das exportações de commodities para o seu resultado fiscal; às desonerações tributárias praticadas entre 2011 e 2014, que atenuaram os efeitos da crise econômica por pouco tempo, mas não impediram o agravamento da queda da atividade econômica e, consequentemente, da deterioração do resultado fiscal.

IV. Prognóstico:

O prognóstico para o paciente é bom, desde que o tratamento adotado seja baseado no diagnóstico correto. Reduzir as despesas primárias, que não são a causa da doença (o déficit fiscal) do Brasil não é o tratamento correto, e tende a agravar a doença do paciente.

V. Tratamento:

A – Aprimorar a arrecadação. Isso não quer dizer aumentar a carga tributária. Quer dizer melhorar a eficiência e a distribuição dos tributos existentes, de forma a promover a justiça fiscal.

  • 1. Aperfeiçoar s mecanismos de controle da sonegação fiscal: R$ 500 bilhões em 2015.
  • 2. Aprimorar os mecanismos de cobrança da dívida ativa: montante de R$ 1,5 trilhão, sendo R$ 252 bilhões transitados em julgado.
  • 3. Rever as desonerações tributárias: R$ 104 bilhões em 2015.
  • 4. Regular os mecanismos de elisão fiscal: R$ 1 trilhão em paraísos fiscais, somente de brasileiros.
  • 5. Implementar uma efetiva Reforma Tributária com justiça fiscal.

B – Reduzir as despesas financeiras, ao rever a alta taxa de juros, cuja taxa Selic está em novembro de 2016 em 13,9%, muito acima da média dos demais países.

C – Fortalecer as despesas primárias que trazem retorno social, diminuem desigualdades e têm efeito multiplicador (ex: R$ 1,00 gasto em saúde, representa aumento de R$1,70 no PIB), além de estimularem a economia a partir do aumento da demanda.

VI. Informações complementares:

A – A PEC 55 corta sim os gastos/investimentos com saúde.

O Artigo 2o da PEC 55 revoga o Art.2o da Emenda Constitucional 86/15, que regulamenta o valor mínimo a ser aplicado em ações e serviços públicos de saúde. Com isso, todo o esforço histórico para que fosse garantido um piso, um valor mínimo a ser aplicado de forma progressiva em saúde é eliminado. Cria-se, com a PEC 55: (1) um congelamento dos valores aplicados em saúde, já que somente haverá correção monetária pela inflação, sem aumento do valor real, e (2) um teto para as despesas primárias, dentre as quais os gastos com saúde. Como esse teto global para as despesas primárias ficará cada vez mais baixo em porcentagem do PIB ao longo dos vinte anos propostos para a PEC vigorar, o argumento de que recursos financeiros podem ser deslocados de outras políticas públicas para a saúde perdem o sentido. Como demonstra a figura a seguir, ao longo dos anos não existirá margem para realocar recursos de qualquer área que seja para a saúde, até porque a % do PIB para todas as diversas despesas primárias (segurança, agricultura, desenvolvimento agrário, trabalho, habitação, transporte, entre diversas outras) será praticamente inexistente.

Figura 1: Simulação das despesas públicas sob o novo regime fiscal


Fonte: Austeridade e retrocessos: Finanças Públicas e Política Fiscal no Brasil., 2016.

Como a população brasileira crescerá 9% e dobrará sua população idosa (acima de 60 anos) em 20 anos, segundo projeções do IBGE, seria necessário, em princípio, o crescimento real do valor destinado para a Saúde. Entretanto, em valores reais, o mesmo montante de recursos aplicado em 2017 será aplicado em 2036, havendo apenas a correção monetária. Como resultado, o valor per capita garantido para o gasto federal do SUS será cada vez menor, já que a demanda por serviços aumentará e o financiamento não, com piora do acesso e da qualidade.

B – O tratamento via teto para as despesas primárias nos moldes da PEC 55 não foi adotado em nenhum outro país dessa forma, por tanto tempo (vinte anos), somente com correção pela inflação e com mudança na Constituição.

Até mesmo o FMI em estudo recente afirma que “além de serem economicamente ineficientes para resgatar a economia em tempos de crises, as medidas de austeridade apenas aprofundam as desigualdades econômicas e sociais já existentes, especialmente entre os grupos já em situação de vulnerabilidade”.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos já se manifestou chamando as autoridades brasileiras a “observarem os princípios de progressividade e não regressão na área dos direitos econômicos, sociais e culturais” além de manter seus compromissos assumidos nos espaços de direitos humanos regionais e universais. Alertaram ainda que as medidas de austeridade anunciadas iriam constituir uma regressão não autorizada do Protocolo de São Salvador.

A proposta não é de responsabilidade fiscal e sim de redução do Estado e consequentemente da garantia de direitos, por meio da redução da capacidade de financiamento das políticas públicas, aí incluída a saúde.

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