A crise da autoridade e a evaporação da figura paterna. Artigo de Zygmunt Bauman

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10 Setembro 2016

"Deus, o Pai, a Pátria são os nomes diferentes dados a uma totalidade maior do que a soma das suas partes (individuais) (…) O pai, não em sentido carnal, mas metafórico, pertence ao menor fractal na sucessão hierárquica dos fractais. Ele é capaz, por exemplo, de constituir conjuntos de fractais mais distantes, para dar vida, depois, a um tecido, em biologia, visto que o fractal também é utilizado lá."

A opinião é do filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 09-09-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

teve que manter em mente uma grande verdade, aprendendo-a duramente: "Eu sei muito bem que é assim. Como pode um homem ter razão diante de Deus? Se alguém quisesse disputar com Deus, este não lhe responderia uma só vez entre mil" (Jó 9, 2-3).

De agora em diante, será possível entender o que significa essa verdade de . Muitos anos atrás, Italo Calvino, justamente nos jornais, tinha falado de uma espécie de centro "estranho", afirmando que: "A sociedade moderna tende a um complicado set-up, que gravita rumo a um centro vazio, e é nesse espaço, que se revela vazio, que todos os poderes e os valores se reúnem".

Esse processo poderia ter dado início, para ainda lembrar Calvino, a uma poderosa teoria de força centrípeta do vórtice de contemporaneidade, a um centro salpicado de "cadáveres" das muitas pessoas que aspiravam, no passado, a se estabelecer em um suposto centro que, na realidade, descobriu-se que era vazio.

Já me confrontei com o tema religioso em muitas ocasiões e voltarei a fazer isso em Assis, no diálogo com o Papa Francisco, no dia 20 de setembro próximo. Agora, porém, o aspecto mais interessante, neste artigo, é o que diz respeito a uma figura tradicionalmente vencedora e, há algum tempo, tragicamente perdedora: o Deus Pai, o Pai, a Pátria.

Um esclarecimento. Pelo que vimos na Polônia, nos lugares do extermínio, mas não só, esse discurso do "centro vazio" não afeta sequer em parte o pontífice atual, que exerce um papel de Pai sobre os jovens em busca de um centro que eles não encontram. Ponho de lado, por enquanto, esse aspecto.

Não tenho a intenção de colocar ao lado do "cadáver" do Pai ou de Deus Pai aquele de quem está exercendo um grande papel, também político, como o Papa Francisco. O cadáver que chamou a atenção de Lacan era o Pai; para Nietzsche, era o Pai de todos os pais: Deus; para muitos outros, a Pátria, outra tipologia de Pai.

Deus, o Pai, a Pátria são os nomes diferentes dados a uma totalidade maior do que a soma das suas partes (individuais): basta pensar em exemplos muito importantes como o Leviatã de Hobbes.

Ao contrário, a figura do Soberano de Schmitt demonstrou ter características particulares. Em Political Theology, o filósofo define a figura do "soberano" (outra variável do pai) não tanto pela sua prerrogativa de legislar, mas pela sua irresponsabilidade, às vezes na violação da lei, um motivo (quase como um curioso paradoxo) justifica o ato de fazer as leis e, depois, de rompê-las; um ato, mesmo que sempre decisional, exclusivamente baseado na vontade do soberano, mesmo que negativa; em última instância, o soberano é aquele que não deve dar aos súditos do seu governo nem desculpas muito menos explicações dos seus movimentos. É aquele que tem em absoluto a liberdade de decisão que todos nós – os seus súditos, dependentes das suas vontades e das suas escolhas – devemos levar em conta, mesmo quando se baseiam na violação da lei.

Paradoxalmente, porém, o "temor e tremor" gerado, como diria Kierkegaard, pelo confronto com tal potência absoluta, prepotente e insuportável, inescrutável e incalculável, parece ser um artifício cultural engenhoso e eficaz, capaz de tornar suportável – ou, melhor, até mesmo vivível – uma vida vivida diante do destino teimosamente impenetrável.

Em vez de exacerbar o confronto com o poder, ele atenua o terror, de outra forma incurável, do desconhecido. Deus, o Pai, o Rei veem ainda mais e sentem mais do que eu. Eles não só sabem o que o futuro tem reservado, mas o tornam flexível. Eles são oniscientes e onipotentes; se eles desistem de fazer aquilo que trazem no coração, deve ser porque sabem, enquanto eu, com a minha razão, não sei e não seria capaz de entender realmente se soubesse.

Eu tendo a identificar 1755 como o ano em que o mandato para o despejo de Deus do centro do universo começou a ser elaborado – mesmo que, em vez de falar de despejo de Deus, seria melhor falar de abandono do centro, abandono do dever ou fuga de um inquilino insolvente.

Em 1755, aconteceu um desastre triplo. Terremotos, incêndios e inundações em rápida sucessão afetaram Lisboa, naquela época geralmente considerada como um dos principais centros do poder europeu, graças à sua riqueza, mas também à sua cultura. Lisboa foi destruída, mas os golpes da destruição aconteciam por acaso; como Voltaire foi rápido em observar, "tanto o inocente quanto o culpado sofrem esse mal inevitável".

O veredito de Voltaire era cristalino: a estada de Deus no centro do universo não tinha conseguido passar pelo teste da Razão e da Moral definidas pelos seres humanos. Agora, cabia aos homens a nova gestão. O despejo tinha ocorrido.

Ao longo dos dois séculos posteriores, no entanto, aprendemos, e do modo mais duro, que os "administradores humanos" são capazes de fazer muito caos, com racionalidade e senso moral; assim como aprendemos a resistência do Grande Desconhecido em dar um passo para trás, e a firmeza de constrangimentos que obstaculizam os "administradores humanos", que, contudo, estão bem aquém de alcançar a onisciência, sem falar da onipotência.

Por exemplo, o Estado e o mercado, as duas agências que a Razão e a Moral elaboraram em consulta recíproca, embora não necessariamente em pleno acordo, gerem parte do universo, mas fracassaram e continuam fracassando, deixando frustradas as expectativas dos homens.

O pai, não em sentido carnal, mas metafórico, pertence ao menor fractal na sucessão hierárquica dos fractais. Ele é capaz, por exemplo, de constituir conjuntos de fractais mais distantes, para dar vida, depois, a um tecido, em biologia, visto que o fractal também é utilizado lá. Esse tipo de pai-fractal chega mais perto do papel de societas e communitas.

Provações e tribulações atuais afligem a "figura paterna" atual e refletem, de forma sintética, os processos que afetam as idealizações, em qualquer nível, da estrutura fractal-paterna. É preciso considerar o número crescente de crianças que crescem em famílias com apenas um progenitor, mas continua havendo o papel de um pai semelhante ao de que falava Tomás de Aquino: "Deus otiosus o absconditus", principalmente através da sua ausência e não interferência.

Se ambos os progenitores biológicos discutem se devem permanecer debaixo do mesmo teto ou não, os laços progenitores-filhos estão cada vez mais desfeitos; ao mesmo tempo, foi despojada a estrutura da autoridade.

O esvaziamento repentino de um "centro de gravidade" foi auxiliado pela renúncia forçada ou voluntária dos progenitores, que quase renunciaram ao seu papel.

E me seja permitido acrescentar que os escrúpulos morais que poderiam, no futuro, se seguir a tal desempenho tendem a ser enfrentados com os bens e os serviços adquiridos no mercado e, mais comumente, com o uso dos bens que oferecem a possibilidade de viver uma condição de tranquilidade moral, que, por sua vez, abre a porta cada vez mais à comercialização dos aspectos mais íntimos da solidariedade humana.

Com que resultados?

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