Projetos arquitetados pelo parlamento em 2023 privilegiam atividades que colocam o meio ambiente em risco; segundo especialistas, as aprovações no primeiro ano do governo Lula oferecem riscos reais de desmatamento de áreas protegidas.
A reportagem é de Fábio Bispo, publicada por InfoAmazonia, 10-01-2024.
Se depender da Câmara e do Senado, a ambição do governo Lula (PT) de o Brasil liderar a pauta climática pode se revelar mais difícil do que os discursos de campanha faziam parecer. O pacote verde articulado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que prometia colocar o país na vanguarda da legislação ambiental, acabou desidratado em 2023, cedendo aos interesses dos setores que mais emitem gases do efeito estufa, como o do agronegócio e o da exploração de combustíveis fósseis.
Além disso, agora, em 2024, o Congresso promete avançar com a nova lei do licenciamento ambiental (PL 2.159/2021), que está na pauta da Comissão do Meio Ambiente do Senado (veja mais abaixo, em Depois de 20 anos, licenciamento ambiental pode ser votado com ‘libera geral’). Profundamente alterada na Câmara, a lei, que nasceu da demanda dos ambientalistas, quer afrouxar as regras do licenciamento ambiental e implantar o autolicenciamento em diversos setores.
Outras medidas já aprovadas no final de 2023 em pelo menos uma das duas casas, sob fortes críticas de especialistas, como os projetos de leis (PLs) do mercado de carbono, das eólicas offshores e da reconstrução da BR-319, ainda seguem em tramitação, mas com pouca margem para grandes mudanças.
A tramitação de matérias sensíveis ao meio ambiente e aos povos indígenas criou um cabo de guerra entre governo e parlamento. Na COP28, o encontro da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, em dezembro, Lula comparou o Congresso à raposa cuidando do galinheiro, e disse que será preciso maior engajamento político dos indígenas e defensores ambientais.
Por isso, e por todos os outros projetos já aprovados e propostos pelo Legislativo em 2023, especialistas que acompanharam essas discussões ao longo do ano avaliam que os efeitos práticos das decisões do Congresso no primeiro ano do governo Lula vão privilegiar atividades que colocam o meio ambiente em risco.
Apesar das tentativas de um governo de coalizão, com a representação atual do Congresso, ambientalistas e ruralistas estão em rota de colisão, o que pode dificultar ainda mais o cumprimento das próprias metas assumidas pela atual gestão, como a de zerar o desmatamento e reduzir as emissões líquidas de gases do efeito estufa do Brasil em 53,1% até 2030.
Entre os projetos duramente criticados pelos especialistas, está o chamado Pacote do Veneno, que acabou sancionado com veto parcial do presidente. A nova lei substituiu as normas de 1989 para agilizar os procedimentos de registro de novos agrotóxicos e ampliar a autoridade do Ministério da Agricultura nas solicitações e análises. Inicialmente, o texto tentou diminuir a influência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) no processo, mas os vetos de Lula devolveram justamente a autoridade dos órgãos de saúde e meio ambiente na avaliação de substâncias.
Protesto em frente ao Congresso contra a aprovação do Pacote do Veneno. (Foto: Bárbara Cruz | Greenpeace)
Apesar disso, o Pacote do Veneno facilitou a aprovação dos agrotóxicos no país. O Greenpeace promete ingressar com pedido de inconstitucionalidade da lei apontando que a norma permite “registro de substâncias comprovadamente cancerígenas e ameaça o meio ambiente”, segundo manifestação da porta-voz da organização no Brasil, Mariana Campo.
Já a lei 14.701/2023, que estabelece a tese do marco temporal[1], promove a abertura de terras indígenas para empreendimentos agropecuários e a exploração de recursos naturais e projetos de infraestrutura, chegou a ser vetada pelo presidente Lula, mas o próprio Congresso derrubou os vetos, sancionou e promulgou a medida, que já está em vigor.
O projeto foi aprovado no Senado apenas uma semana após o Supremo Tribunal Federal (STF) considerar a tese do marco temporal como inconstitucional. E mesmo vetado pelo presidente, a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) encabeçou uma campanha pública pela derrubada do veto, que foi confirmada em 14 de dezembro.
Logo após a sessão do Congresso, que atropelou o governo com 53 votos dos 81 senadores e 321 dos 513 deputados, o coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Dinaman Tuxá, já estava no STF pedindo uma reunião de urgência para derrubar a nova lei. Para ele, “desde a redemocratização, será o maior retrocesso para retirada de direitos indígenas”.
O PSOL, a REDE, o PT, PCdoB e PV, também pediram a inconstitucionalidade da nova legislação. Já PP, PL e Republicanos, de oposição ao governo, pediram o contrário, que a Corte reconheça as mudanças. O próprio ministro da Agricultura e Pecuária do governo federal, Carlos Fávaro (PSD-MT), votou pela derrubada do veto.
Em entrevista realizada em novembro, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, afirmou à InfoAmazonia que o projeto, que agora está em vigor, coloca a autonomia dos povos indígenas em risco e contraria as metas climáticas assumidas pelo Brasil, já que pode significar aumento de desmatamento nos territórios.
Outro projeto que segue a toada anti-ambiental do Congresso, segundo Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, é o que tenta destravar o licenciamento da obra da BR-319, que liga as capitais de Rondônia (Porto Velho) e Amazonas (Manaus), aprovado no apagar das luzes de 2023 na Câmara, em 19 de dezembro.
“O licenciamento da BR-319 é complexo justamente por causa dos riscos de desmatamento que ela oferece para uma das regiões mais preservadas da Amazônia”, afirma Araújo, que presidiu o Ibama entre 2016 e o início de 2019.
O PL foi proposto por 14 deputados dos estados de Rondônia e Amazonas, e acabou aprovado com 311 votos favoráveis e 103 contrários. Ainda que precise passar pelo Senado, o texto considera a BR-319 como infraestrutura crítica, o que permitirá a adoção de licenciamento simplificado. Além disso, também abre brechas para uso de recursos do Fundo Amazônia[2] para reconstrução da rodovia.
Construída no governo militar em 1976 e abandonada no início da década de 1990 por falta de viabilidade econômica, a BR-319 teve seu projeto de construção desengavetado pelo governo do ex-presidente Bolsonaro (PL). O trajeto corta um grande bloco de floresta preservada da Amazônia e a estrada como foi construída já não existe mais como foi inaugurada no final dos anos 70.
Mesmo assim, durante a crise da pandemia de Covid-19 no país, o governo Bolsonaro mandou caminhões de oxigênio para Manaus pela rodovia intrafegável. Os caminhões atolados com destino a uma das capitais onde as pessoas morreram por falta de ar virou símbolo da campanha dos que defendem a reconstrução da BR.
Pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), já apontaram que a reconstrução da BR-319 deve aumentar em 1.200% o desmatamento ilegal na Amazônia e incentivar a grilagem de terras e queimadas. A rodovia vai impactar 40 terras indígenas, incluindo territórios com povos isolados, e 38 Unidades de Conservação, segundo levantamento exclusivo da InfoAmazonia.
Além disso, com um orçamento estimado em R$ 2 bilhões, a abertura da rodovia promete beneficiar o escoamento do agronegócio e da mineração. Em parceria com a Folha de S.Paulo, em outubro de 2023, reportagem da InfoAmazonia revelou que os planos do governo Bolsonaro para liberar a obra a toque de caixa beneficiaria grileiros.
Em junho, Márcio Santilli, um dos fundadores do Instituto Socioambiental (ISA) e ex-presidente da Funai (1995-1996), já alertava, em entrevista à InfoAmazonia, que o governo Lula não pode tratar como “trivial” projetos como a reconstrução da BR-319, afirmando que a gestão deveria desde o início centralizar questões que colocam o meio ambiente em risco.
O texto agora aguarda tramitação no Senado, mas para Suely, as inconsistências são flagrantes e é possível que seja pedida a derrubada da lei em caso de aprovação. “O projeto é inconstitucional, entra em atribuições do poder Executivo. Autorizações e licenças de empreendimento específico não cabem ao legislativo, que tem que tratar de normas gerais”, afirma.
A proposta que regulamenta o mercado de carbono no Brasil (PL 2148/15) e cria o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), aprovada pela Câmara na noite de 21 de dezembro de 2023, desagradou, e muito, os ambientalistas.
O SBCE estabelece um teto de emissões para os setores que mais poluem e aqueles que conseguirem reduzir suas emissões podem negociar esses créditos, tanto entre empresas como entre países, desde que as emissões estejam contabilizadas dentro do sistema regulado.
A pauta é considerada como uma das mais importantes para a questão climática. No entanto, o projeto gestado no Senado em sintonia com o governo federal foi profundamente alterado na Câmara dos Deputados, principalmente, por pressão do agronegócio.
Mesmo associado a 75% das emissões de gases do efeito estufa no Brasil, segundo dados do Sistema de Estimativa de Emissão de Gases (SEEG), o agro ficou livre de um teto de emissões e ainda foi beneficiado com a possibilidade de lucrar com a venda de créditos das florestas em áreas de reserva legal e área de preservação permanente (APP), onde a preservação já é uma obrigação legal.
Em nota publicada pelo Observatório do Clima, Stela Herschmann, coordenadora-adjunta de Política Internacional da organização, diz que “o projeto oficializa o faroeste de carbono florestal no Brasil”.
“A ganância dos ruralistas, além de não levar a lugar nenhum, já que dificilmente alguém comprará esses créditos florestais, cria ruído num PL que estabelece um instrumento maduro e sofisticado para ajudar o país a cumprir suas metas climáticas com a maior eficiência possível”, disse Herschmann.
Alexandre Prado, líder em Mudanças Climáticas do WWF-Brasil, avalia que o texto aprovado favorece o mercado voluntário de créditos de carbono “sem promover a necessária mudança de comportamento a longo prazo: que é reduzir emissões”.
O texto permite que os setores que estourarem o teto de emissões possam compensar comprando créditos de projetos privados, e não apenas do sistema regulado.
“Isso vai gerar um monte de crédito barato e uma grande demanda, o que acaba não incentivando a redução de emissões, mas sim a compra de créditos para compensação. Ao invés de substituir uma tecnologia por outra menos poluente, por exemplo, muitos vão optar por compensar”, avalia Prado.
O especialista do WWF-Brasil diz que o projeto tem problemas que podem dificultar a sua própria implantação. “Estudos recentes mostram que esses projetos [privados de crédito de carbono] não têm adicionalidade e são cheios de problemas. Os cálculos são imprecisos e consideram cenários futuros de desmatamento que poderiam não se concretizar. É diferente do pagamento por resultados, que é o que se defende, e que paga sempre que existe uma redução real do desmatamento, como é o caso do Fundo Amazônia”, explica Prado.
Letícia Camargo, assessora técnica de política socioambiental do PSOL no Congresso, aponta que o PL amplia conflitos socioambientais envolvendo povos indígenas e ribeirinhos.
“As discussões não contemplaram a participação de povos indígenas e comunidades tradicionais. Além disso, o texto final prevê que serão as próprias empresas interessadas que vão promover a consulta nos projetos em áreas indígenas ou de populações tradicionais. Isso pode trazer grandes conflitos de interesse e aumentar a vulnerabilidade dessas populações. Quem tem que fazer a consulta é o Estado”, pontua.
Camargo também observa que as alterações promovidas na Câmara são de difícil compreensão e seguem uma lógica que pode levar à dupla contagem de emissões evitadas, o que pode reduzir a confiabilidade no sistema brasileiro.
“A lógica do projeto é totalmente baseada em compensação e financeirização, e essa não é a alternativa para as mudanças climáticas. Há risco de dupla contagem de créditos e implanta uma lógica que pode ser de difícil aplicação”, afirma Camargo.
Durante a tramitação na Câmara, diversos outros projetos que tratavam do tema do mercado de carbono foram apensados ao PL, o que obriga que o texto volte ao Senado, onde pode ser votado como está ou ser corrigido. Caso os senadores optem pela segunda opção, a matéria volta para a Câmara, que terá a última palavra sobre o assunto.
No caso das eólicas em alto mar (PL 11247/2018), projeto que foi aprovado em 29 de novembro do ano passado, uma emenda incluída de última hora no texto prevê que as térmicas a carvão com contratos que vencem até 2028 terão contratos renovados até 2050. Além disso, o texto prevê a ampliação dessas estruturas movidas a combustíveis fósseis em várias regiões do país.
Na sua justificativa, o relator da matéria, o deputado Zé Vitor (PL-MG), afirma que “as termelétricas a carvão mineral têm um papel relevante a desempenhar em termos de segurança do abastecimento de energia elétrica durante o período de transição energética”.
Para Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, a emenda é um “jabuti[3]” que foi incluído de forma totalmente alheia ao objetivo principal do PL.
“Aproveitaram uma lei que se sabe que é necessária, que é de interesse do governo, para colocar um jabuti. Existem dezenas de projetos de eólicas offshore que precisam dessa regulamentação, inclusive com sobreposição de mais de um projeto pedindo licença no mesmo local. Então, precisamos regulamentar tanto do ponto de vista contratual como do ponto de vista ambiental. O Brasil precisa resolver isso, mas é fundamental que esses jabutis caiam”, avalia Araújo.
O texto final prevê que o governo é quem deve definir quais áreas serão passíveis de instalação dos geradores eólicos e incluiu demandas importantes, como a de respeitar o Planejamento Espacial Marinho (PEM) para evitar conflitos ambientais em áreas sensíveis. Como sofreu modificações na Câmara, o texto voltou para o Senado, onde aguarda votação.
Outro projeto que caminha no Congresso é a nova lei do licenciamento ambiental (PL 2.159/2021). A matéria foi aprovada em 2021 na Câmara e agora está na pauta da Comissão do Meio Ambiente do Senado e pode ser votada este ano.
O PL nasceu da necessidade de uma legislação própria para o licenciamento ambiental, já que a norma até hoje aplicada é um dos artigos da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, de 1981, que instituiu a licença ambiental prévia como uma exigência para todas as atividades que causem impactos ambientais.
No entanto, a lei que tramitou na Câmara recebeu diversos apensos e foi profundamente alterada, promovendo um verdadeiro “libera geral”, segundo avalia Suely Araújo.
“A demanda de uma lei de licenciamento ambiental é uma demanda dos ambientalistas para melhorar esse mecanismo, só que o texto aprovado pela Câmara em 2021 implode o licenciamento ambiental no país. Esse é o pior texto que temos na história desse processo. Ele privilegia a não licença, tem uma lista enorme do que não precisa de licença, com redações genéricas, e privilegia o autolicenciamento”, explica Araújo.
Como exemplo de “redação genérica”, ela aponta o fato de o projeto de lei considerar que “melhoramentos de infraestruturas pré-existentes não precisam de licenças”.
“É como comparar uma obra em um bueiro com o alteamento de uma usina no rio Madeira. A aprovação do PL como está será uma lei do não licenciamento ambiental, e esse não era o objetivo dessa proposta”, explica.
O PL está tramitando de forma simultânea nas comissões de Meio Ambiente e Agricultura, onde tem como relatora a senadora Tereza Cristina (PL-MS). Enquanto ministra da Agricultura no governo Bolsonaro, Tereza Cristina atuou para aprovação da matéria na Câmara.
Agora, dentro do contexto do Novo PAC, que promete lançar milhares de obras por todo o país, há preocupações de que o texto avance sem as alterações necessárias.
[1] Determina que só podem ser consideradas terras indígenas as áreas ocupadas na data de promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.
[2] Projeto que capta e investe recursos nacionais e internacionais para potencializar a conservação e o uso sustentável da Amazônia.
[3] No jargão legislativo, “jabuti” significa a inclusão de temas alheios ao assunto principal de uma proposta. Normalmente incluído para que seja aprovado sem a discussão devida do assunto.