"A expressão Reino de Deus, central nos evangelhos (...), é sintomática da novidade de Jesus. Um Reino sempre apresentado em termos de ‘materialidade’: semente, grão de mostarda, fermento, tesouro escondido, rede lançada ao mar, pérola preciosa. (...) Lendo as Parábolas de Jesus, dá para perceber que o Reino de Deus, enfim, consiste na decisão de lutar em prol de um o mundo mais justo e fraterno".
O comentário é de Eduardo Hoornaert, historiador, ex-professor e membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), em artigo publicado em seu blog, 01-01-2024 e enviado para o Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Já nos primeiros versículos do Evangelho de Marcos, João Batista ocupa um lugar de destaque. É um nazireu, ou seja, ‘consagrado a Deus’, vive afastado do convívio comum, deixa a barba crescer, usa lã espinhenta de camelo como vestimenta e se alimenta de gafanhotos e mel selvagem. O nazireato é uma opção de vida ascética regulamentada pelo Código Levítico: abstenção de bebidas alcoólicas, dieta rigorosa e casamento com virgem (Lv 21, 13). O voto nazireu pode ser temporário, como no caso de Paulo, ou perpétuo, como nos casos de Samuel, Sansão e João Batista (Lc 1, 13). Aos olhos do povo, o nazireu é um profeta, fala em nome de Deus.
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Numa de suas viagens a Jerusalém, Jesus entra em contato com João Batista, que batiza num dos baixios do rio Jordão (ao lado direito de quem vem de Jerusalém). Fica impressionado com o homem, que grita: quem tem duas túnicas, dê uma; quem tem comida, compartilhe; não explorem as pessoas, fiquem contentes com seu salário (Lc 3, 11-14). O Batista ameaça com fogo eterno toda árvore que não der bom fruto (Mt 3, 10; Lc 3, 9). Pela leitura do Evangelho de Mateus se percebe que, no ambiente em que João atua, a ameaça do inferno faz parte da educação. Ao longo da história do cristianismo, a ‘retórica do inferno’ repercutirá poderosamente (veja Henning, M., Educating Early Christians trough the Rhetoric of Hell, ‘Weeping and gnashing of Teeth as Paideia in Matthew and the Early Church’, Mohr Siebeck, Tübingen, 2014). O remédio consiste em mergulhar nas águas purificadoras do rio Jordão e confessar os pecados. Os gritos de João Batista ressoam em toda a Judeia, principalmente em Jerusalém, onde vive a elite que João Batista visa particularmente, pois ela explora os camponeses por meio dos impostos. Pois os coletores desses impostos, terceirizados, prestam ao mesmo tempo serviços à Casa do Tetrarca Herodes, ao Templo de Jerusalém e à administração local do Império Romano (veja o caso de Levi em Mc 2, 15). Sacerdotes e letrados não se cansam de lembrar ao povo a obrigação de doar a Deus, ou seja, ao Templo, grande parte do fruto de seu trabalho.
Reina na sociedade um sentimento generalizado de injustiça e corrupção e, nesse sentido, o batismo de João Batista opera como catarse. O Evangelho de Marcos conta que toda a Judeia e toda Jerusalém correm ao Jordão para mergulhar nas águas purificadoras (Mc 1, 5). As águas do Rio Jordão descem rapidamente das montanhas da Síria para o Mar Morto, formando o Lago de Merom e o Mar da Galileia. Não é um rio de navegação comercial ou de pesca, pois tem 27 cachoeiras. A força das águas, nas cachoeiras, inspira a ideia de limpeza.
Lucas escreve: o povo que ouviu João e os coletores de impostos, uma vez batizados, rendiam justiça a Deus. Mas fariseus e legalistas se distanciavam do projeto de Deus e não se faziam batizar (Lc 7, 29)
Os cobradores de impostos exercem uma profissão institucionalmente reconhecida e apoiada pelas autoridades, embora a população os odeie. Aqui, os fariseus têm dupla cara: eles tiram proveito financeiro das cobranças impostas ao povo e, de outro lado, se distanciam dos ‘pecadores’ e não se fazem batizar.
Jesus apresenta-se para colaborar com João Batista e começa a trabalhar num baixio no rio Jordão, chamado Aenon (Enon), perto de Salim (Jo 3, 23). Um local não identificado topograficamente. Há quem o situe no Wadi Farias, a 11 a 13 km de Nablus, onde existem ribeiras altas e a água corre com força (veja Internet). Um lugar bastante isolado, pois o Evangelho de João informa que Jesus ali se refugia após enfrentar problemas em Jerusalém (Jo 10, 39-42).
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Os dois ‘batistas’ contam com discípulos ajudantes e, de início, parece haver sintonia entre ambos os grupos. Quando, por exemplo, os discípulos de Jesus lhe pedem: ensina-nos a rezar, como João fez com seus discípulos, Jesus os atende prontamente e ensina o Pai Nosso (Lc 11, 1).
Mas, com o tempo, as diferenças aparecem. Os discípulos de João e os fariseus observavam o jejum. Perguntavam então a Jesus: por que seus discípulos não jejuam? Por que comem e bebem, enquanto os de João nem comem nem bebem? (Mc 2, 18 e Lc 5, 33). A resposta é desconcertante: Ninguém conserta roupa velha com pano novo. A peça nova rasgaria a roupa velha. Novo sobre velho não dá certo. Para vinho novo, odres novos (Mc, 21-22). Fica claro: Jesus não pensa como João Batista. Quem prova o vinho novo de Jesus, já não se importa com regras ultrapassadas. Os que discutem regulamentos e observâncias são como crianças que, na praça, brigam em vez de brincar. Ora, a praça é para brincar, não para brigar. E Jesus conclui: As crianças sensatas me dão razão (Lc 7, 31-33). Passou a Antiga Aliança. Por maior que seja João Batista, ele não é da Nova Aliança: Nunca, uma mulher colocou no mundo um homem maior que João Batista. Mesmo assim, o menor no Reino dos Céus é maior que ele.
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Marcos não comenta a separação entre Jesus e João Batista. Apenas relata, como de passagem, que Jesus, depois da prisão de João, retorna à Galileia para proclamar o evangelho de Deus (Mc 1, 14). Parece que não houve discussão entre ambos. Os evangelistas anotam apenas que Jesus, quando recebe a notícia da morte do Batista no calabouço do Rei Herodes, sente a tristeza invadir sua alma. Mateus conta: (ele) quis ficar só. Subiu num barco e afastou-se para um lugar deserto (Mt 14, 13). A tradição ulterior toca tampouco no tema da divergência entre Jesus e João Batista e prefere apresentar esse último como precursor de Jesus: não sou digno de desatar a correia de suas sandálias (Mc 1, 7-8).
Mas fica a oposição entre a política de João Batista e a de Jesus. O primeiro segue a tradição sisuda e austera dos profetas antigos e insiste em temas como o deserto, o batismo, a conversão, o pecado, a ascese, o arrependimento dos pecados, enquanto o segundo forma um grupo dissidente.
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Com a decisão de se separar de João Batista, Jesus forma um movimento dissidente, dentro do judaísmo da época, uma sinagoga dissidente. ‘Sinagoga’ é um termo grego que traduz o hebraico bet knesset, e significa basicamente o mesmo que ekklèsia (igreja), termo que se encontra na Primeira Carta aos Tessalonicenses de Paulo. Significa assembleia, reunião, agrupamento. É na qualidade de ‘sinagoga dissidente’ que o movimento de Jesus atravessa os primeiros séculos. Já nos anos 30 a 60 d. C. aparece, dentro do largo espectro da diáspora judaica, essa configuração nova. Não se trata de uma associação unificada, pois, ao lado de adeptos palestinos, o cristianismo emergente conta com ebionitas, hebreus, egípcios, ou elkionitas, gente que continua frequentando o Templo em Jerusalém até sua destruição no ano 70 dC. Mas, aos poucos, aparecem seguidores de Jesus que, inseridos no amplo mundo helenizado, vivem em cidades grandes como Antioquia da Síria, e não seguem mais as orientações de Jerusalém. O caso de Paulo é sintomático.
Mas todos formam uma só ‘sinagoga’, uma só ‘igreja’, seguem uma orientação comum, principalmente após o ano 70 dC, quando fica claro que a sobrevivência do judaísmo, em suas diversas modalidades, está na sinagoga da dispersão (diáspora). Mesmo correndo o risco de serem expulsos do judaísmo oficial, os cristãos preferem não sair do casulo sinagogal judaico, que constitui seu melhor apoio logístico e seu escudo diante dos poderes do Templo e do Império, já que a sinagoga, ao mesmo tempo em que escapa largamente ao controle das autoridades templárias, consegue manter certo trânsito diplomático com as autoridades do Império. E quando se acrescenta ainda a habilidade política de determinados perushim (hebraico: ‘separados’, fariseus), como Paulo de Tarso, após se converter ao cristianismo, compreende-se melhor uma das razões da sensacional expansão que o movimento de Jesus alcança em pouco tempo, dentro e mesmo fora das fronteiras do Império romano.
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As cartas paulinas, que constituem o primeiro bloco literário cristão consistente, são, na realidade, textos farisaicos. Paulo professa um farisaísmo transformado, ele pertence a uma primeira geração de fariseus convertidos ao cristianismo e chega a liderar o movimento de Jesus em amplas áreas em torno do Mar Mediterrâneo. Para ele, todo esforço do cristão deve estar concentrado na libertação do pecado e, portanto, no processo interior (Rom 6,6). Essa é uma ideia tipicamente farisaica. O tema bíblico do Êxodo do Egito não recebe praticamente nenhuma atenção na literatura paulina. É apenas mencionado de passagem: Todos atravessaram o mar, todos foram batizados por Moisés (1 Cor 10, 1-2). Para Paulo, o drama da vida humana é de ordem pessoal.
Observo aqui, de passagem, que essa é a tradição que passa por Agostinho e depois por Lutero: irrequieto meu coração, até que repouse em Ti. A história desenrola-se no íntimo da personalidade. As condições da vida social não importam, como Agostinho escreve. O sentir-se perdido na vida, desorientado, leva tanto Paulo quanto Agostinho à procura de uma verdade que vale para sempre e para todos. Agostinho encontra a paz num cristianismo neo-platônico, enquanto Paulo professa um cristianismo farisaico. Tanto em Paulo quanto em Agostinho, a opção pelos camponeses da Galileia, fundamental em Jesus, se torna uma opção de santidade pessoal. Na história do cristianismo, o choque entre a moral da interioridade e a moral da solidariedade é persistente. O cristianismo conserva, até hoje, diversos aspectos farisaicos, sedimentações do invólucro em que surgiu nas origens. Em determinados casos, podemos até falar em ‘neo-farisaísmo’.
As cartas de Paulo são de fundamental importância para a formação do cristianismo histórico, mas elas contêm poucas informações concretas sobre Jesus e seu movimento. É que Paulo escreve a partir de uma experiência mística pessoal. Pouco lhe importa o que dizem e fazem os apóstolos da Palestina.
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Da sinagoga dissidente não temos informação fora daquela que provém do interior dos próprios grupos. Não há nenhum indício de existência do movimento de Jesus na obra do historiador judeu Flávio Josefo, por exemplo, embora esse trate exaustivamente dos movimentos existentes na Palestina antes da guerra de 67-70 dC. Os trechos de sua obra, que alguns interpretam como contendo referências a Jesus e seu movimento, são questionáveis. Nada, tampouco, nos escritos de seu contemporâneo judeu Filo de Alexandria, um observador arguto do mundo de seu tempo. As autoridades romanas não dão importância ao que consideram ser uma pequena seita judaica. Temos apenas a correspondência entre Plínio, o governador da Bitínia, e o Imperador Trajano, no ano 112 dC. Plínio não sabe como lidar com um movimento que ele, de sua parte, considera perfeitamente inócuo. Quanto a historiadores romanos como Tácito e Suetônio, eles só fornecem informações imprecisas.
Como evoluiu, nos primeiros séculos, a relação entre cristianismo e judaísmo? Há evidências históricas de que a transição entre o judaísmo e a sinagoga dissidente, na vida concreta, nem sempre significou ruptura. Durante séculos, há cristãos que continuam seguindo o judaísmo: são batizados, observam o sábado, participam das refeições e dos banhos, seguem os interditos alimentares assim como a data judaica da Páscoa. É possível seguir o rastro desse segmento de cristãos judaicos ou simpatizantes do judaísmo até os séculos IV e V dC, como testemunha João Crisóstomo, entre outros. Para muitos cristãos, o judaísmo permanece uma referência fundamental durante muito tempo. E os cristãos não praticam, até hoje, o rito do batismo, clara referência ao judaísmo de João Batista? É que, ao longo da história, tanto a cultura greco-romana quanto a siríaco-mesopotâmica recebem vigorosos impulsos por parte do judaísmo.
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A expressão Reino de Deus, central nos evangelhos, que aparece 53 vezes em Mateus, 19 vezes em Marcos, 45 vezes em Lucas e 5 vezes em João, é sintomática da novidade de Jesus. Um Reino sempre apresentado em termos de ‘materialidade’: semente, grão de mostarda, fermento, tesouro escondido, rede lançada ao mar, pérola preciosa. Um Reino que, na realidade, é uma regra de vida: quem regula sua vida segundo o Reino de Deus, é como aquele dono de casa que tira de seu tesouro coisas novas e velhas (Mt 13, 52). O discípulo de Jesus carrega consigo as orientações do Reino de Deus, que constituem a chave de entendimento de tudo.
Há como supor que Jesus, ao lançar a imagem do Reino de Deus, tenha se inspirado no Salmo 72, que apresenta um Rei justo e misericordioso:
Ele julga seu povo com justiça,
Os acusados com equidade.
Ele julga os mais fracos do povo
E salva o filho do pobre.
Ele reina de mar a mar,
Do rio aos confins da terra.
Todos os reis inclinam-se diante dele,
Todos os povos a ele se sujeitam.
Ele protege a vítima e o pobre,
Ele salva o que é do pobre.
Sobre a terra tremula trigo alto
no cume das montanhas.
Nele, todos os povos são benditos.
Esse salmo é um poema profano. Não fala em religião, mas em materialidades: justiça, bem-estar, fartura de comida. O Reino de Deus nunca é apresentado como território santo em meio à corrupção do mundo. No Evangelho de João, Jesus diz a Pilatos: Meu Reino não é deste mundo. Se meu reino fosse daqui, meus servidores teriam se prevenido para que eu não fosse entregue aos judeus (18, 36). Lendo as Parábolas de Jesus, dá para perceber que o Reino de Deus, enfim, consiste na decisão de lutar em prol de um o mundo mais justo e fraterno. Ele vem no momento em que a pessoa se compromete com os ditames do Evangelho, quando ela se comporta, concretamente, como cidadã de um Reino que vem na cotidianidade da vida.
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Acontece que, na já bimilenar tradição de Jesus, a imagem ‘Reino de Deus’ não teve muita repercussão. A razão é simples: embora Jesus tenha se referido ao Rei justo e misericordioso do Salmo 72, na realidade nua e crua, esse tipo de Rei só raramente aparece no cenário político. A imagem largamente preponderante, na história de Israel é a do Rei dominador, que vem de fora. Toda a história de Israel é marcada por tentativas de ‘Reis’ opressores, desde os da Assíria, da Babilônia e da Pérsia, até os mais recentes, helenistas e romanos, no sentido de interferir na política de um país pequeno e militarmente fraco. Paulo percebe que a imagem do Reino já não serve e deve ser abandonada. Só aparece uma vez em Romanos, Gálatas e 1 Tessalonicenses, além de cinco vezes em 1 Coríntios, mas sempre dentro de uma retórica personalista: Carne e sangue não podem possuir o Reino de Deus (1Cor 15, 50).
Os dois mil anos de cristianismo são marcados por uma aluvião de metáforas que, de um ou outro modo, tentam expressar, cada qual a seu modo, a ideia de um Reino de Deus: desde o ‘Jardim de Éden’ do Livro Gênesis, a ‘Terra Prometida’ de Abraão, o ‘Monte Tabor’ do profeta Elias, o ‘Paraíso’ dos persas, as ‘Ilhas Afortunadas’ do grego Hesíodo, a ‘Atlântida’ de Platão e o ‘Reino da Justiça’ de Aristóteles, até um sem-número de sonhos e imagens que surgem na era cristã, como a ‘Terra sem Males’ dos Guarani, a ‘Utopia’ de Thomas Morus (1516), a ‘Libertas’ medieval, a ‘Cidade de Deus’ de Agostinho, a ‘Hierarquia Celeste’ de Dionísio Areopagita, o ‘Regime dos Príncipes’ no século XVI, a ‘Societas Perfecta’ do Decreto de Graciano (século XIV), o ‘Monasterium’ cisterciense, a ‘Paz Universal’ de Raimundo Lullo (1235-1316), a ‘Cidade das Damas’ das beguinas (século XV), o ‘Decameron’ de Boccacio (1450-1475), a ‘Terra Incognita’, o ‘Novus Mundus’, de Américo Vespucci (1501), a ‘Cidade do Sol’ de Campanella (1602), a ‘Nova Atlântida’ de Francis Bacon (1627), a ‘Renovatio Mundi’ dos franciscanos, o ‘Reino’ (etíope) do Preste João, os ‘Carmina Burana’ dos goliardos, o ‘País de Cocanha’, a ‘Idade do Espírito’ de Joaquim di Fiori (século XII), , as ‘Maravilhas do Mundo’ de Marco Polo (século XIII), a ‘Sociedade sem Classes’ de Marx (século XIX) e, finalmente, a ‘Jerusalém Celeste’ do Livro Apocalipse.
Pode-se dizer que, de um ou outro modo, a imagem do Reino de Deus perpassa esses sonhos e projetos.