24 Novembro 2023
"Embora muitas análises evitem essa questão, é necessário avaliar as condições sociais e políticas pelas quais os progressismos não avançam para a esquerda e, pelo contrário, provocam reações cidadãs nas quais atores de direita emergem das sombras e até conquistam os votos necessários para vencer uma eleição", escreve Eduardo Gudynas, analista no Centro Latino Americano de Ecología Social (CLAES), em artigo publicado no Semanario Voces, 23-11-2023.
Houve múltiplas reações diante da vitória de Javier Milei nas eleições na Argentina. Em várias delas, predominam abordagens focadas no indivíduo, no personagem político, como se ele agisse sozinho, ou o comparam com Jair Bolsonaro para confirmar um avanço de uma nova direita, ou ainda, de forma mais simplista, se divertem em rotulá-lo como louco. Ao contrário dessas abordagens, muitas delas precipitadas, podem ser compartilhadas outras reflexões que, com mais calma, exploram outros aspectos.
A consideração de Milei como uma pessoa que atua politicamente é relevante, mas não é suficiente, pois estariam sendo deixados de lado os contextos e antecedentes. Por um lado, Milei em si é importante, mas também o são, talvez até mais, aqueles que estão por trás, os agrupamentos sociais que o sustentaram como seu porta-voz e executor. Por outro lado, é indispensável analisar os processos políticos que permitiram que isso acontecesse; Milei não caiu do céu, mas é resultado de uma deriva política, na qual o progressismo está envolvido.
Não passa despercebido que diferentes agrupamentos ultraconservadores argentinos, seja na política ou no empresariado, decidiram mais ou menos recentemente lançar-se na arena eleitoral com um candidato que defendem como próprio. Esses grupos sempre estiveram presentes na Argentina, assim como há outros semelhantes nos demais países latino-americanos. Antes, operavam apoiando partidos conservadores, mas menos radicalizados, que, no caso argentino, se centravam no PRO (Proposta Republicana), liderado por Mauricio Macri (um empresário, filho de um milionário, que se tornou político). Possivelmente o faziam dessa maneira porque entendiam que seus discursos ultraconservadores seriam rejeitados e estigmatizados por amplos setores da sociedade, e porque lhes parecia mais vantajoso operar discretamente por meio desses intermediários partidários.
Esses grupos mudaram sua postura. Assumiram que chegou o momento de se expressarem diretamente em público com seu próprio programa e candidato. Esse é o papel de La Libertad Avanza, um partido criado recentemente e liderado por Milei. Uma análise de seus contribuintes econômicos e apoios políticos permite evidenciar tanto sua diversidade quanto suas potencialidades. Entre eles estão Paolo Rocca, CEO da corporação argentina Techint, Sebastián Braun, membro de uma família com um enorme conglomerado econômico (também relacionado a Marcos Peña, que foi chefe de gabinete na presidência de Macri), Cristiano Rattazi, ex-presidente da FIAT, Gonzalo Tonoira, um poderoso empresário agropecuário, ou Santiago Caputo, um cientista político que segue a escola de consultoria de Jaime Durán Barba (que antes assessorava Macri e esteve por trás de vários experimentos conservadores no continente).
É possível que esse tipo de atores tenha assumido diretamente a disputa eleitoral ao considerar insuficiente o programa conservador convencional no estilo Macri, buscando um giro ainda mais radical à direita. Também pode ser que tenham avaliado que agora dispunham das condições sociais e culturais que lhes permitiam agir publicamente, deixando para trás o secretismo, as insinuações e até mesmo a vergonha.
Nessas circunstâncias, pode-se apontar que o eixo que divide a política entre esquerda e direita se deslocou na Argentina. A esquerda tradicional encolheu, e o fato de ter sido uma das grandes derrotadas em todo esse processo eleitoral mostra que boa parte da população não encontrou opções de mudança críveis nela. Ao mesmo tempo, o campo à direita se ampliou enormemente, não apenas pela presença do PRO e de outros grupos, mas também porque o kirchnerismo realmente governante continuou se afastando de um programa de esquerda e, ao mesmo tempo, tornou-se cada vez menos progressista. Essa inflação à direita faz com que, dentro da Argentina, muitos deixem de reconhecer o extremismo de Milei, naturalizem seu radicalismo e o assumam como parte de uma direita aceitável, como faz, por exemplo, o influente jornalista Eduardo Feinmann.
Neste ponto, é oportuno resgatar as reflexões de Stuart Hall sobre a construção de um novo "senso comum" neoliberal, como ocorreu no Reino Unido nas décadas de 1970 e 1980, com a participação ativa de Margaret Thatcher. Se se levar em consideração análises como essas, então está ocorrendo na Argentina a maturação na criação de outros consensos, e se isso é verdade, nessa construção intervêm não apenas aqueles que estão nas sombras do poder, mas grande parte dos atores políticos e culturais.
Embora Milei tenha sido eleito presidente, não se deve esquecer que La Libertad Avanza é uma minoria no legislativo. Nas eleições de 2023, obteve 7 senadores, enquanto o peronismo-kirchnerismo conta com 33 e a coalizão do PRO e seus aliados soma 24; entre os deputados, Milei tem 33, enquanto o peronismo-kirchnerismo tem 108 e o PRO e aliados têm 93.
Esses resultados têm várias implicações, além da mais evidente – o fato de que Milei não tem uma base legislativa própria que lhe permita governar sozinho e terá que negociar com outros atores dessa direita convencional. Mauricio Macri apoiou Milei no segundo turno, e nisso também pode-se dizer que foi um vencedor nas recentes eleições, pois é um parceiro decisivo para a governabilidade (e também para tentar se proteger contra possíveis processos judiciais). Mas ao mesmo tempo, isso significou uma ruptura dentro do PRO e com grande parte de seus aliados (na União Cívica Radical). Houve uma divisão nos setores conservadores, onde alguns consideram que Milei é um extremismo inaceitável em desacordo com suas concepções políticas. Em outras palavras, o espaço da direita se ampliou tanto que se fragmentou em pelo menos duas tendências.
Também deve ser observado que os diagnósticos sobre a morte política do kirchnerismo ou do peronismo são prematuros. Eles mantêm a primeira minoria nas duas câmaras, conforme evidenciado pelos dados mencionados acima, e também elegeram governadores em seis províncias, incluindo a de Buenos Aires, somando mais duas nas mãos de seus aliados eleitorais.
Outra insistência nos últimos dias é considerar Milei como uma versão argentinizada do brasileiro Jair Bolsonaro. Isso merece uma avaliação mais cuidadosa, pois são dois atores políticos muito diferentes.
Milei é um recém-chegado à política partidária, com experiência muito limitada, e está ativo apenas desde 2021; antes, atuou como assessor econômico e como participante extravagante em programas de televisão. Por outro lado, Bolsonaro foi deputado por mais de duas décadas (1991 a 2018). Sua candidatura não pode ser considerada sem lembrar que, no congresso, em 2016, a oposição impôs o impeachment da presidente Dilma Rousseff (do Partido dos Trabalhadores), enquanto nada semelhante ocorreu na Argentina, onde o governo de A. Fernández continuou funcionando. Milei emerge em uma crise econômica brutal, arrastada há anos, com inflação descontrolada, endividamento externo, perda de reservas e duras consequências sociais. Essas condições não são equivalentes ao contexto econômico de 2018, em que atuou o candidato Bolsonaro. Os conglomerados de apoio também são diferentes, sendo importante destacar a adesão de militares e evangélicos a Bolsonaro, o que não ocorre na Argentina. Poderiam ser apontadas outras diferenças, mas com esses exemplos é suficiente para esclarecer a questão.
Portanto, embora seja verdade que ambos os personagens, Bolsonaro e Milei, tenham discursos de extrema direita, não se pode perder de vista que respondem a contextos e processos muito diferentes. Insistir que são a mesma coisa na realidade revela mais a tendência brasileirocêntrica de muitos analistas do que a realidade em si.
No entanto, observar as situações em outros países vizinhos fornece contribuições úteis para aprimorar uma análise de conjuntura. Nesse sentido, é importante olhar para o Equador, onde também ocorre uma crise econômica e social muito severa, tingida por uma crescente violência, que levou a eleições antecipadas. Nessas eleições, assim como na Argentina, o progressismo perdeu no segundo turno, e o candidato da direita venceu, sendo não apenas ultraconservador, mas também proveniente diretamente do setor corporativo (Daniel Noboa, o novo presidente, assim como Macri na Argentina, é tanto um empresário quanto filho de um bilionário).
Também é relevante observar o Peru, onde os partidos políticos mais conhecidos desapareceram, as crises políticas se repetem, os impactos sociais e econômicos se agravam, e a experiência de Pedro Castillo, que se apresentava como progressista, desmoronou, abrindo caminho para uma direita política imersa em repressão e corrupção. Lá, fica ainda mais claro que a presidente, Dina Boluarte, não lidera esses processos, mas é um meio para grupos que estão por trás dela, entrelaçando interesses empresariais e políticos. Em todos esses casos, houve uma queda de inibições morais e políticas, e os discursos e ações reacionários são expostos publicamente.
Milei agora se junta a esse conjunto de atores que, como nesses países, ataca os políticos e as organizações partidárias. De fato, o presidente eleito argentino expressa desdém e rancor contra o que chama de "casta", que estaria dominada por políticos e seus aliados, a quem ele considera ladrões e acredita que deveriam ser exterminados. Em suas palavras, essa "casta" inclui cinco setores que seriam os políticos corruptos, empresários favorecidos, sindicalistas que traem seus trabalhadores, jornalistas que recebem dinheiro oculto para operar politicamente, e profissionais que são cúmplices dos políticos. Nesse último setor, estariam "economistas, advogados e pesquisadores", que dariam legitimidade intelectual ao roubo do Estado e da sociedade.
Este tipo de retórica, em que se faz política a partir de discursos anti-políticos, está agora na boca dessa direita, mas expressões mais ou menos semelhantes eram usadas, por exemplo, por Rafael Correa e seus seguidores no Equador, ou pelo Podemos na Espanha, para atacar seus oponentes. Essa circunstância é preocupante, pois se os progressismos utilizam retóricas e atitudes semelhantes, acabam fazendo com que a população aceite e naturalize mensagens sobre uma "casta" de políticos que seriam ladrões ou incompetentes. Essas práticas são posteriormente apropriadas pela direita, que as reutiliza para atacar esse mesmo progressismo, e o faz com mais intensidade.
Em sintonia com esse clima, nas últimas semanas da campanha eleitoral, não apenas eram observados ataques e denúncias contra Milei pelos seguidores de Massa, mas também se somaram aqueles que rejeitavam Massa, mas ainda mais Milei. Esse frente até se diversificou em o que alguns chamaram de "micromilitâncias", baseadas em intervenções individuais ou de poucas pessoas, seja nas redes sociais ou nas ruas, alertando sobre diversos perigos do fascismo. Além de reconhecer o valor dessas iniciativas cidadãs, compreensíveis a partir do que muitos sentiam, também há uma contrapartida que nem sempre é percebida. De um lado, destaca-se a importância dessa mobilização, às vezes espontânea, mas, por outro lado, parece que não se reconhecem as limitações das ações políticas individuais e descoordenadas em um contexto eleitoral. Não se reconhece a importância, e até a necessidade, de estruturas partidárias, que sejam organizadas, democráticas e amplas, tanto para enfrentar uma eleição quanto para construir tradições de adesão política.
Deve-se considerar que, à medida que os partidos políticos se enfraquecem e o sistema que os abriga e coordena entra em erosão, as chances de derivas em direção a direitas reacionárias possivelmente aumentam. Por sua vez, quando uma extrema direita surge, como esse sistema de partidos está enfraquecido, não consegue detê-la com eficácia. Portanto, a alternativa não está apenas em enfrentar Milei, Noboa, Boluarte ou outros, mas também requer fortalecer as estruturas e o funcionamento dos partidos políticos. Ou seja, Milei é também o resultado do enfraquecimento do sistema de partidos tradicionais na Argentina.
Estas considerações levam a outra questão que não pode ser evitada: tanto uma direita convencional (como o caso de Lacalle Pou no Uruguai) quanto as novas, mais reacionárias, como Milei, Bolsonaro e outros, germinaram e eclodiram após governos progressistas.
Aqueles que afirmam que nestas eleições na realidade o kirchnerismo – peronismo perdeu têm em parte razão no sentido de que não foi a pessoa de Milei que triunfou, mas sim uma mudança no senso comum que tornou tolerável essa extrema direita. Voltando mais uma vez a Stuart Hall (e suas reflexões seguindo Gramsci), ocorreu uma crise que também é orgânica, cessando a legitimidade e aceitação das expressões políticas tradicionais. Mas isso ocorre, como Hall insistiu repetidas vezes, porque os progressismos e as esquerdas não combateram adequadamente essas mudanças culturais e políticas, e muitos, sem perceber, as aceitaram, sem que suas alternativas ou tentativas de renovação pudessem reconquistar a confiança da cidadania. Nisso, há múltiplos alertas para os processos políticos, por exemplo, na Colômbia, Brasil, Chile e Uruguai, onde também se luta para mudar os sentidos comuns e impor direitas reacionárias.
Embora muitas análises evitem essa questão, é necessário avaliar as condições sociais e políticas pelas quais os progressismos não avançam para a esquerda e, pelo contrário, provocam reações cidadãs nas quais atores de direita emergem das sombras e até conquistam os votos necessários para vencer uma eleição. Do ponto de vista de uma renovação da esquerda, refletir sobre essa questão é urgentíssimo.
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Milei e a nova direita na Argentina sob diferentes perspectivas. Artigo de Eduardo Gudynas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU