23 Novembro 2023
"Se a democracia está em crise no mundo e os extremistas estão ganhando, é porque há um cansaço das famílias políticas que se perpetuam como as monarquias", escreve Juan Arias, jornalista e escritor espanhol, em artigo publicado por El País, 21-11-2023.
Segundo ele, "talvez a surpresa das eleições argentinas tenha sido um chamado que ecoará pelo mundo inteiro, obrigando a velha academia intelectual, a política já cansada, burocratizada e corrompida, e o descarrilado trem da democracia a voltarem às suas origens. Goste-se disso ou não".
O mundo político está se perguntando como é possível que tenha vencido, e por uma grande margem, as eleições na culta Argentina o candidato apelidado na escola secundária como "El Loco" e descrito como "extravagante", "iconoclasta", "provocador", que pedia conselhos ao seu cachorro morto e que gritava "Viva a liberdade, caramba!".
Sem dúvida, a partir de agora, se multiplicarão as análises e conjecturas. Se investigará novamente a biografia e o percurso político do vencedor que derrotou o Golias do peronismo, que parecia imortal.
Embora ainda não tenhamos todos os dados, tudo indica que os jovens votaram em massa por Milei, aqueles que, por natureza, amam a ruptura, o novo, seja bom ou ruim. Os jovens procuram o inovador, o diferente. Isso é verdade hoje e sempre foi. Eles se fascinam pela liberdade. O jovem é iconoclasta e extremista. Freud já explicou isso com o complexo de Édipo.
O grande equívoco da política de hoje, a nível global, é ter encurralado os jovens ao se encher de veteranos que resistem em deixar o poder para as novas gerações. São os jovens que melhor assimilam, por exemplo, as novidades tecnológicas, por isso eles adoram as inovações digitais.
Os jovens amam a liberdade por essência. Também no trabalho. Eles não querem mais, como seus pais no passado, passar toda a vida trabalhando na mesma coisa. Gostam de mudar, ter sua própria empresa, ser livres para escolher.
E hoje, se a democracia está em crise no mundo e os extremistas estão ganhando, é porque há um cansaço do que Milei soube definir muito bem como "a casta". Uma casta política que se perpetua, de pais para filhos, como nas monarquias. Os veteranos não dão espaço para os jovens, e quando os incluem na política é para infectá-los e perpetuá-los com seus velhos defeitos. Eles têm que aceitar a casta.
No Brasil, a classe política foi muito bem definida como "o mecanismo", onde, se você entra, não sai mais. Ou você aceita e se corrompe com ele, ou é expulso. Daí que esses jovens que chamamos de rebeldes, que não se conformam em imitar os mais velhos, que precisam inventar sua própria vida, corram o risco de transformar em ídolos aqueles que os mais velhos chamam de excêntricos ou loucos.
Não que os jovens sejam na política melhores ou piores que os veteranos. Certamente, eles têm menos experiência e são mais inconformistas. Isso está em suas veias. E isso não é novidade. Os líderes que os jovens veneraram foram iconoclastas, rebeldes. Isso vale para tudo. O ditado popular que diz que o ser humano nasce incendiário e morre bombeiro expressa isso muito bem.
Na política, assim como na religião, os jovens têm sido fascinados principalmente pelos extremos. Por isso, eles podem até se tornar mais violentos do que os adultos. Por que eles gostam tanto de filmes com sangue, jogos de terror?
Os mais velhos hoje sabemos quem foi realmente o mítico Che Guevara, com seus idealismos e também com sua carga de violência e crueldade. E, no entanto, para milhões de jovens, ele representou um novo deus na terra. Eles o veneraram como um santo.
No outro campo, o religioso, que tanto moldou a humanidade, basta lembrar que, por exemplo, a figura do judeu Jesus de Nazaré, fundador do cristianismo nascido das entranhas do judaísmo, não foi o cordeiro dócil que certa piedade religiosa retratou. Ele foi um iconoclasta com a casta política e religiosa de seu tempo. Revolucionou e escandalizou com suas críticas ao poder tirano do rei Herodes, a quem desafiou e chegou a chamar de "raposa".
Na essência do cristianismo reside a rebeldia. Não é uma religião do conformismo. "Sede frios ou quentes, porque se fordes mornos, vomitar-vos-ei da minha boca", diz a Bíblia. E também o judeu que revolucionou sua própria religião incentivava a ser "astutos como as serpentes".
Jesus, o manso para os devotos, foi o jovem capaz de escandalizar em sua época com sua revolução a favor das mulheres, inclusive das prostitutas. Ele foi capaz, sabendo que estava arriscando a vida, como de fato aconteceu, de desafiar a casta sacerdotal que explorava os mais pobres, virando de cabeça para baixo as mesas dos cambistas dentro do Templo sagrado dos judeus.
Ele foi crucificado jovem porque desafiou as castas religiosas e políticas. Mais tarde, quando o cristianismo primitivo e revolucionário começou a se acomodar e a se tornar mais a Igreja dos privilegiados do que dos abandonados à margem da vida, quando começou a se masculinizar e a relegar as mulheres a objetos de pecado, perdeu seu encanto e afastou os jovens.
Não, por favor, não estou louco ao comparar Milei e sua vitória inesperada com os grandes líderes políticos e religiosos mundiais adorados pelos jovens. Mas talvez descubramos que, desta vez na Argentina, tenham sido principalmente esses jovens e as mulheres, sempre negligenciadas na política da casta, que preferiram o pseudo-revolucionário, Milei, ao clássico Massa, filho da casta, correto, tranquilo, sem surpresas e sem esperanças de revolucionar a democracia gasta, cansada e corrupta de hoje.
Há nos evangelhos cristãos uma passagem interessante que ganha atualidade na política de hoje. O intelectual fariseu Nicodemos estava intrigado com a fascinação que o desarrumado profeta Jesus exercia sobre ele, sempre cercado por analfabetos e deserdados do poder, o que hoje chamamos de ralé.
O intelectual e culto Nicodemos ficou intrigado com aquele Jesus iconoclasta que se divertia com as paradoxos e escandalizava quando amaldiçoou uma figueira que não tinha frutos, mesmo não sendo época de figos. Tanto intrigava aquele jovem revolucionário que ele pediu para encontrá-lo, mas à noite, secretamente.
Jesus desconcertou o intelectual quando disse a ele que precisava voltar ao ventre de sua mãe para renascer. Foi uma provocação. Foi dizer a ele que precisava rever sua vida, esquecer-se de pertencer a uma casta que resistia a mudanças, a se superar, a abrir os olhos, a entender que de alguma forma a religião, política e seus valores democráticos e de justiça social precisam renascer ou estão destinados a morrer.
Talvez a surpresa das eleições argentinas tenha sido um chamado que ecoará pelo mundo inteiro, obrigando a velha academia intelectual, a política já cansada, burocratizada e corrompida, e o descarrilado trem da democracia a voltarem às suas origens. Goste-se disso ou não.
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Milei não ganhou. A “casta” perdeu. Artigo de Juan Arias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU