Reforma Tributária altera tributação do consumo, mas não toca na renda. Entrevista especial com Marciano Seabra de Godoi

"A Reforma Tributária atualmente em discussão no Congresso Nacional limita-se a alterar a tributação do consumo. É urgente enfrentar também as imensas distorções existentes na tributação da renda, do patrimônio e das heranças no Brasil", adverte o doutor em Direito Financeiro e Tributário

Foto: Lula Marques | Agência Brasil

Por: Patricia Fachin | 07 Julho 2023

O texto da Reforma Tributária, aprovado na Câmara dos Deputados na noite de ontem, 06-07-2023, por 375 votos favoráveis e 113 contrários, "caminha na direção correta" ao unificar tributos, mas deixa "em aberto inúmeras questões decisivas, que serão definidas posteriormente por meio de lei complementar", diz Marciano Seabra de Godoi. Entre estas, ele destaca a não correção das distorções sociais geradas pela reforma silenciosa começada nos anos 1990. "A Reforma Tributária constitucional votada pela Câmara não corrige a injusta e regressiva tributação da renda que foi conformada por reformas legislativas operadas na década de 1990. O governo federal vem anunciando que a reforma da tributação da renda ocorrerá no segundo semestre de 2023, mas é muito improvável que isso aconteça. São imensas as resistências do Congresso e da própria sociedade brasileira a uma reforma que, de fato, aumente a tributação dos indivíduos das faixas mais altas de renda e patrimônio", pontua.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Godoi comenta os principais pontos da proposta aprovada ontem à noite e a analisa à luz da Doutrina Social da Igreja. Para ele, "os princípios e valores da Doutrina Social da Igreja relacionados mais de perto à vida econômica e empresarial descartam a visão utilitária em que o mercado competitivo de pretensas leis naturais (e racionais) se autonomiza e ocupa o centro da ética social. No lugar dessa visão individualista, a doutrina social preconiza o respeito à solidariedade e à chamada destinação universal ou o uso comum dos bens, submetendo a propriedade privada (vista como um meio e não como um fim em si mesma) a uma série de condicionantes e limitações com o objetivo de impedir que a sua existência acabe impedindo que todos os cidadãos tenham acesso efetivo aos recursos necessários para viver com dignidade. Isso não é uma visão que começa com o Papa Francisco, é uma visão que começa antes de João Paulo II", explica.

Marciano Godoi (Foto: Arquivo pessoal)

Marciano Seabra de Godoi é graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e em Ciências Econômicas pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais  PUC Minas, mestre em Direito Tributário pela UFMG e doutor em Direito Financeiro e Tributário pela Universidade Complutense, de Madri. Ele leciona na PUC Minas e atua como consultor tributário. É coordenador do LLM Direito Tributário na PUC Minas. Foi orientador do Programa de Pesquisa em Finanças Públicas em Política e Gestão Tributária da Escola de Administração Fazendária – ESAF, do Ministério da Fazenda, em 2016.

Confira a entrevista.

IHU – O que está em jogo na proposta da Reforma Tributária aprovada pela Câmara dos Deputados nesta quinta-feira?

Marciano Seabra de Godoi – Está em jogo uma profunda alteração da forma de tributação de bens e serviços na economia brasileira. Essa tributação de bens e serviços, conhecida como “tributação do consumo” ou “tributação indireta”, possui historicamente inúmeros defeitos (por exemplo, excessiva complexidade; inúmeros benefícios fiscais concedidos de modo ilegal, opaco e sem controle /governança; contenciosidade excessiva gerando um valor desproporcional de disputas em órgãos administrativos e judiciais) e todos no Brasil a criticam. Mas, quando se trata de reformá-la em profundidade, inúmeras divergências afloram.

IHU – Quais os argumentos favoráveis e críticos à proposta aprovada?

Marciano Seabra de Godoi – O coração da proposta de Reforma Tributária que a Câmara aprovou é um movimento de unificação e uniformização da tributação do consumo. No regime atual, governos estaduais e prefeituras de capitais/grandes cidades detêm grande autonomia para definir unilateralmente como se dá a tributação de bens e serviços em relação às empresas que estão em seu território. O resultado desse imenso capital político nas mãos especialmente dos governadores é a existência de 27 sistemas diferentes para a tributação estadual de mercadorias e serviços de comunicação/transporte intermunicipal pelo ICMS. Conhecer e aplicar esses 27 sistemas ao mesmo tempo é tarefa hercúlea e muito dispendiosa para as empresas. Além disso, os governadores usam e abusam de benefícios tributários (muitas vezes opacos) para atrair empresas e negócios para seus territórios (inclusive quanto ao local formal de importação de mercadorias estrangeiras), o que gera distorções e ineficiência econômica, sem qualquer governança ou controle social sobre a efetividade dos alegados benefícios socioeconômicos de desenvolvimento regional.

 

 

O ponto mais polêmico da proposta é exatamente aquele que retira dos governos de estados e municípios o poder de, individualmente, ditar as normas de seus atuais impostos sobre o consumo. Em substituição a esse sistema, a proposta prevê a existência de um imposto (IBS) mais amplo que a soma atual do ICMS e do ISSQN, com legislação, aplicação e arrecadação unificadas nacionalmente, sob a batuta de um Conselho Federativo, cujo funcionamento e competências são somente esboçados na proposta, deixando importantes questões para definição posterior por lei complementar (aliás, essa é uma característica marcante da proposta: remeter uma enorme quantidade de definições para leis complementares...).

Outro ponto central da proposta é a definição de que a arrecadação do imposto sobre o consumo deve caber ao estado de destino dos bens e serviços, e não ao estado de sua origem. Quanto a essa mudança, porém, direcionada a impedir a chamada "guerra fiscal", a proposta estabelece um regime de transição de nada menos do que 50 anos, diluindo no tempo os impactos orçamentários da mudança.

As prefeituras das capitais e alguns estados ensaiaram uma forte oposição à proposta, alegando que ela comprometeria o federalismo que é considerado cláusula constitucional imodificável. Não me parece haver inconstitucionalidade na proposta por suposta violação do federalismo, mas é preciso reconhecer que a proposta de fato retira poder e capital político e econômico dos estados e capitais, quando se compara a situação atual com o sistema criado pela proposta. Já as prefeituras de médias e pequenas cidades, bem como a maioria dos estados, apoiaram a proposta desde o seu início, valendo-se dos argumentos da simplificação e maior eficiência econômica. Os diversos mecanismos de transição e compensação de perdas arrecadatórias contribuíram para construir esse consenso.

IHU – Quais são as principais disputas e os impasses em relação ao texto da Reforma Tributária?

Marciano Seabra de Godoi – Além da questão colocada anteriormente (centralização/unificação das regras do novo imposto e perda de poder individual dos estados), outro impasse inicial foi a questão da alíquota do novo imposto. O governo federal e os economistas idealizadores da proposta desejavam que a alíquota fosse única para todos os produtos e serviços, alegando que alíquotas diferenciadas ou reduzidas para alguns setores geram ineficiências e não levam aos benefícios socioeconômicos esperados, como a redução do preço efetivo dos produtos e serviços objeto das alíquotas reduzidas. Como era de se esperar, prevaleceu entre os deputados e deputadas o entendimento de prever alíquotas reduzidas para alguns setores (como educação, saúde etc.) e alíquota zero para produtos da cesta básica, que serão definidos posteriormente em lei complementar. Com essa definição de alíquota zero para produtos da cesta básica e alíquotas reduzidas para diversos tipos de bens e serviços, a meu ver deixa de fazer sentido a previsão da proposta de que lei complementar definirá mecanismo de devolução do IBS (o chamado “cashback”) para determinadas pessoas físicas, como forma de redução das desigualdades sociais.

IHU – Quais setores serão beneficiados?

Marciano Seabra de Godoi – Há um certo consenso de que o setor industrial tende a ter alguma redução de carga tributária, com o setor de serviços, especialmente aquele direcionado a pessoas físicas, arcando com um provável aumento de carga tributária. O setor de locações de bens, hoje incrivelmente não tributado por nenhum imposto sobre o consumo, finalmente passará a ser tributado. As sociedades de profissionais liberais, a não ser que consigam aprovar uma exceção de última hora (o que é bastante provável tendo em vista seu poder de influência sobre os congressistas), também terão aumento de carga tributária sobre os seus serviços, atualmente tributados por uma sistemática excepcional estabelecida em 1968, que impede que a tributação recaia sobre o preço dos serviços.

IHU – Em 2020, o senhor explicou que a distorção tributária brasileira se origina na reforma silenciosa iniciada logo após a promulgação da Constituição de 1988. A atual proposta de reforma corrige essas distorções ou rompe com a reforma silenciosa que ocorreu?

Marciano Seabra de Godoi – Não. A Reforma Tributária constitucional votada pela Câmara não corrige a injusta e regressiva tributação da renda que foi conformada por reformas legislativas operadas na década de 1990. O governo federal vem anunciando que a reforma da tributação da renda ocorrerá no segundo semestre de 2023, mas é muito improvável que isso aconteça. São imensas as resistências do Congresso e da própria sociedade brasileira a uma reforma que, de fato, aumente a tributação dos indivíduos das faixas mais altas de renda e patrimônio.

IHU – Em sua avaliação, a reforma precisa atuar na tributação do consumo e na da renda e do patrimônio. Em que medida esses aspectos são contemplados na atual proposta?

Marciano Seabra de Godoi – A atual proposta se refere quase exclusivamente à tributação do consumo, e creio que caminha na direção correta – apesar de deixar em aberto inúmeras questões decisivas, que serão definidas posteriormente por meio de lei complementar.

Não se toca na tributação da renda (bem mais sensível politicamente do que a tributação do consumo). Quanto à tributação do patrimônio, há na proposta de emenda constitucional algumas normas pontuais interessantes e necessárias, como aquelas que determinam que o imposto estadual sobre heranças e doações seja necessariamente progressivo e autorizam desde logo sua cobrança sobre heranças e doações oriundas do exterior; e as normas que autorizam a cobrança do IPVA sobre aeronaves e embarcações. Mas é preciso ter cautela quanto à eficácia concreta dessas normas: dependendo da formulação do texto final da emenda constitucional, o efeito concreto das mudanças pode ser frustrante e meramente retórico, permanecendo tudo como antes.

IHU – Que questões fundamentais não estão sendo contempladas na atual proposta de Reforma Tributária?

Marciano Seabra de Godoi – A tributação da renda e do patrimônio, entre nós, é muito mais alta proporcionalmente para a classe média assalariada do que para os indivíduos dos estratos mais altos de renda (especialmente recebedores de renda empresarial e do capital) e patrimônio. O aumento da tributação sobre renda e patrimônio desses estratos poderia permitir uma redução da tributação do consumo, com efeitos econômicos e sociais bastante virtuosos (mais crescimento com menos desigualdade). Essa é uma questão central que a reforma não toca.

 

 

IHU – O senhor analisa a proposta da Reforma Tributária à luz da Doutrina Social da Igreja. Quais são suas conclusões e apontamentos a partir dessa análise?

Marciano Seabra de Godoi – Os católicos brasileiros deveriam conhecer e dar mais atenção à Doutrina Social da Igreja. Os princípios e valores da Doutrina Social da Igreja relacionados mais de perto à vida econômica e empresarial descartam a visão utilitária em que o mercado competitivo de pretensas leis naturais (e racionais) se autonomiza e ocupa o centro da ética social. No lugar dessa visão individualista, a doutrina social preconiza o respeito à solidariedade e à chamada destinação universal ou o uso comum dos bens, submetendo a propriedade privada (vista como um meio e não como um fim em si mesma) a uma série de condicionantes e limitações com o objetivo de impedir que a sua existência acabe impedindo que todos os cidadãos tenham acesso efetivo aos recursos necessários para viver com dignidade. Isso não é uma visão que começa com o Papa Francisco, é uma visão que começa antes de João Paulo II.

 

 

A Doutrina Social da Igreja afirma com total clareza e convicção que uma das funções do Estado é regular a atividade econômica de modo a, valorizando os talentos e a livre iniciativa de cada um, buscar justiça e equidade na distribuição da renda e da riqueza. Sendo assim, a Doutrina Social da Igreja conclui que a criação e arrecadação dos tributos é tarefa essencial para alcançar os valores da justiça e da liberdade real para todos os cidadãos, e significa a especificação, em obrigações concretas, do dever geral de solidariedade social. Espero que, nesses tempos atuais de fake news e desinformação sistemática, essa visão da Doutrina Social da Igreja não seja tomada de modo distorcido como “comunista” ou “marxista”. Aliás, do jeito que as coisas estão nas redes sociais, é possível que grupos extremistas e fundamentalistas de direita considerem até mesmo a proposta de reforma tributária em discussão no Congresso como “comunista”, pelo simples fato de ter apoio e impulso do governo federal...

Como venho defendendo em inúmeros artigos e estudos, não é verdadeira a afirmação corrente de que há uma carga tributária imensa sobre “o contribuinte brasileiro”; a verdade é que, dependendo da posição que se ocupa no meio social e econômico, enfrentam-se cargas tributárias muito distintas. Como afirmei acima, e de modo totalmente contrário ao que preconiza a Doutrina Social da Igreja, a carga tributária em termos proporcionais sobre o patrimônio, a renda e a herança dos muito ricos no Brasil é menor do que aquela que incide sobre a classe média, especialmente sobre os assalariados do setor público e privado. A reforma tributária atualmente em discussão no Congresso Nacional limita-se a alterar a tributação do consumo. É urgente enfrentar também as imensas distorções existentes na tributação da renda, do patrimônio e das heranças no Brasil.

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