Sob repúdio de organizações indígenas e socioambientais, ruralistas correm para aprovar projeto antes de votação no STF.
A reportagem é de Murilo Pajolla, publicada por Brasil de Fato, 25-05-2023.
Organizações indígenas, socioambientais e de direitos humanos manifestaram nesta quinta-feira (25) repúdio à aprovação do regime de urgência na votação do Projeto de Lei (PL) 490, que institui o marco temporal da demarcação de terras indígenas.
Após a Câmara aprovar a tramitação acelerada na noite de quarta-feira (24), o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), afirmou que pretende colocar a matéria em votação na próxima semana.
Arthur Lira (PP-AL) admitiu pressa para se antecipar ao STF.
(Foto: Pablo Valadares |Câmara dos Deputados)
“Ruralistas têm urgência em apagar nossa história, destruir nossos biomas, seguir com o genocídio que enfrentamos há 523 anos, para passar a boiada”, disse em nota a Articulação dos Povos Indígenas Indígenas do Brasil (Apib).
Na Câmara, o PL do Marco Temporal precisará de maioria simples para ser aprovado. O próximo passo é a apreciação pelo Senado, cujo presidente Rodrigo Pacheco (PSD-MG) não sinalizou se pretende acelerar a tramitação antes que o Supremo Tribunal Federal (STF), retome a análise do tema no dia 7 de junho.
Os articuladores do marco temporal no Congresso são parlamentares ruralistas, bolsonaristas e do chamado “centrão”. E eles têm pressa pela aprovação e o objetivo é se antecipar ao Supremo.
“O que estamos fazendo é para deixar claro que esse projeto precisa ser discutido no plenário desta Casa para evitar que o STF o decida”, admitiu Lira.
A análise na Corte está suspensa por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. Até agora dois ministros votaram: o relator Edson Fachin, contra o marco temporal, e o ministro Nunes Marques, a favor.
Juliana Batista, advogada do Instituto Socioambiental (ISA), diz que o presidente da Câmara “afronta os outros poderes e busca intimidar o STF, imitando as crises institucionais forjadas por Bolsonaro, ao colocar o PL 490 na pauta”.
“A questão é constitucional, será judicializada e só irá gerar mais violência e insegurança jurídica, criando falsas expectativas de anulação das demarcações”, opinou a advogada em reportagem publicada no site do ISA.
O regime de urgência do PL 490 foi aprovado na Câmara por 324 votos contra 131. O PT orientou sua bancada pelo voto contrário, mas o governo federal não exigiu que as siglas aliadas seguissem o partido.
“De forma questionável, a liderança do governo liberou a sua base para a votação, onde cada parlamentar vai votar segundo os seus interesses”, criticou o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), que organização que monitora o orçamento público sob a ótica dos direitos humanos.
Para o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a postura contradiz os compromissos eleitorais do presidente Lula (PT).
“Nos causa perplexidade o fato de que o atual governo federal, que se elegeu com o compromisso de salvaguardar os direitos dos povos indígenas e avançar em sua efetivação, tenha liberado os parlamentares da base governista durante a votação da urgência deste gravíssimo projeto de lei”, escreveu o Cimi.
A votação do marco temporal em regime de urgência engrossou a lista de derrotas do governo federal na área ambiental. Na quarta-feira (24), o Congresso aprovou parecer favorável à proposta que retira força das pastas do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas.
A ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, admitiu que a situação é desfavorável ao governo federal e falou em “diálogo” para reverter os retrocessos no Legislativo.
"Uma parte do Congresso, que é a maioria, quer impor ao governo eleito do presidente Lula o modelo de gestão do governo Bolsonaro", avaliou.
A ministra do Ministério dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, chamou o PL de “genocídio legislado”. “É uma teoria que inverte toda história do Brasil. Um projeto de lei que atenta contra a constituição brasileira”, escreveu nas redes sociais.
O posicionamento foi seguido pela presidenta da Funai, Joenia Wapichana. “Aprovar a urgência do PL 490/07 e da MP 1154/2023 é negar a história, os direitos e a dignidade dos povos indígenas”, publicou.
A coordenadora da Frente Parlamentar dos Povos Indígenas, deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG), disse que a votação em regime de urgência é obra de um “Congresso assassino”.
“Enquanto mulher indígena e presidente da bancada do cocar, irei fazer o possível para enfrentar a bancada ruralista. Ninguém gosta de falar em genocídio aqui, mas [o PL 490] é um genocídio legislado”, afirmou a parlamentar.
O marco temporal é uma tese jurídica defendida pelo agronegócio, repudiada pelas organizações indígenas e considerada inconstitucional por juristas e advogados - indígenas e não indígenas.
A proposta muda radicalmente o critério para demarcações ao estabelecer que apenas as terras já ocupadas por povos indígenas em 5 de outubro de 1988 - data da promulgação da Constituição - podem ser reivindicadas por eles.
Um grupo indígena que tenha ocupado um território por séculos, mas que não estivesse no local na data exata estabelecida pelo marco temporal, pode ficar sem direito à demarcação.
A maioria das lideranças indígenas e especialistas consideram que o critério poderá paralisar novas demarcações e também permitir o questionamento na Justiça de processos demarcatórios já concluídos.