Publicada há 60 anos, em 11-04-1963, a encíclica sobre a paz do Papa João XXIII parece ter sido escrita hoje: atual na análise da situação mundial e das propostas sugeridas para enfrentá-la corretamente.
No início desta década, 169 conflitos foram contabilizados no mundo todo, segundo dados do “Programa de Dados de Conflitos”, da Universidade Sueca de Uppsala, divulgados pela jornalista italiana Lucia Capuzzi, em artigo no Avvenire, de maio de 2022.
Entre eles, destacam-se 53 conflitos internos ou intraestatais nos países; 72 envolvendo milícias de vários tipos disputando o controle de territórios; e 21 crises de organizações estatais ou não estatais visando deliberadamente os civis. Somente três deles "envolvem um confronto militar 'clássico' entre estados: Índia-Paquistão pelo controle da Caxemira, China-Índia pela questão do Aksai Chin ou Arunchal Pradesh e Israel-Irã, além agora da Rússia e Ucrânia". O fio comum que une esse multifacetado poliedro bélico, destaca, Capuzzi, é "a tendência crescente por parte de atores externos de apoiar militarmente um dos contendores". O resultado é mais de 81.447 vítimas. Trata-se, nas palavras e denúncias do Papa Francisco, da "terceira guerra mundial aos pedaços”.
O contexto internacional indica que "a paz permanece palavra vazia de sentido, se não se funda na ordem fundada na verdade, construída segundo a justiça, alimentada e consumada na caridade, realizada sob os auspícios da liberdade", conforme disse o Papa João XXIII, na carta encíclica Pacem in terris, publicada há 60 anos, em 11-04-1963, durante a realização do Concílio Vaticano II.
Na atual conjuntura geopolítica, a "encíclica sobre a paz do Papa João XXIII parece ter sido escrita hoje, tal é a atualidade da análise da situação mundial e das propostas sugeridas para enfrentá-la corretamente. A explicar essa atualidade é, por um lado, o cenário geopolítico de hoje, que apresenta fortes semelhanças com o cenário daqueles anos: a ameaça de uma guerra mundial era então iminente pela instalação de mísseis soviéticos em Cuba e hoje reaparece com a invasão da Ucrânia pela Rússia e com a multiplicação de graves conflitos em diferentes áreas do planeta", disse o teólogo italiano Giannino Piana, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, na Itália, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas.
A Pacem in terris, menciona, além de ser a última intervenção de João XXIII, "constitui o ápice e a síntese de seu magistério" e "teve enorme ressonância na opinião pública mundial com um número muito significativo de comentários, tanto no âmbito do mundo católico quanto daquele secular – era o primeiro documento papal não exclusivamente dirigido aos católicos, mas 'a todos os homens de boa vontade' (n. 4) – a tal ponto que ainda hoje é difícil dizer algo novo, acrescentar alguma nova consideração". Para ele, o ponto mais significativo do texto continua sendo a afirmação de que “não é mais possível pensar que nesta nossa era atômica a guerra seja um meio apto para ressarcir direitos violados (alienum a ratione). Essa forte declaração, que é o coração de toda a mensagem, aquela em torno da qual tudo gira, tem um caráter decididamente revolucionário, representa uma verdadeira tomada de distâncias da postura anterior e constante da tradição eclesial".
Escrita no contexto político da Guerra Fria, depois da construção do Muro de Berlim e na sequência da Crise dos Mísseis em Cuba, a encíclica é "a mensagem mais oportuna, mais sábia, mais operacional para o mundo moderno”, disse Frei Carlos Josaphat ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em 2019, um ano antes de seu falecimento. Ao lado da Mater et magistra, a Pacem in terris constitui “a melhor formulação ética da dimensão social do Evangelho, a qual se torna operacional pelo empenho de não ficar em uma elaboração teórica, abstrata. Mas, inaugurando uma análise dos sistemas industriais, econômicos, agrícolas, elas lançam uma grande luz sobre as raízes e causas das exclusões e desigualdades sociais”, ressaltou o frei dominicano.
Na Mater et magistra, o papa bom, como ficou conhecido, compreende a paz como bem público universal, o "objeto do desejo profundo da humanidade de todos os tempos". O bem comum, explicou, "consiste no conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana".
Em contraposição, a guerra "é um fracasso da política e um fracasso da humanidade" porque todo conflito bélico "deixa o mundo pior do que o encontrou", sublinhou o Papa Francisco em janeiro de 2023, no discurso à Delegação do Instituto de Estudos Internacionais de Salamanca.
Os dados divulgados pelo relatório Global Trends, do Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – Acnur, relativos a 2021, ilustram as palavras dos dois pontífices. Somente naquele ano, 89,3 milhões de pessoas fugiram do próprio país em busca da paz:
"Para cada três pessoas que deixaram suas casas em 2021 por estarem em perigo de vida, pelo menos duas fugiram da guerra na Síria (6,8 milhões), da pobreza da Venezuela (4,6 milhões), da violência dos talibãs no Afeganistão (2,4 milhões) ou dos conflitos e perseguições no Sudão do Sul (2,4 milhões) e Mianmar (1,2 milhão). Enquanto os menores representam 30% da população mundial, 42% da população global que foge é composta por crianças e jovens de até 17 anos", informa a reportagem de Agnese Palmucci, publicada no Avvenire.
Dados da Acnur sobre refugiados e deslocados (Foto: Acnur | Edição: IHU)
O Iêmen, país árabe localizado no sudoeste da Península da Arábia, exemplifica o pontífice, está há mais de dez anos em guerra. "As crianças do Iêmen não têm o que comer. Os Rohingya, transferindo-se de um lado a outro porque foram expulsos, estão sempre em guerra". Na Síria, país localizado na Ásia Ocidental, "12, 13 anos de guerra, e ninguém sabe se há prisioneiros e o que acontece ali dentro".
Em fevereiro deste ano, em conversa com 82 jesuítas, por ocasião da Viagem Apostólica à República Democrática do Congo, o papa chamou novamente a atenção para o drama da violência no mundo:
"Evidentemente, aqui, está claro que o tema do conflito, das lutas entre facções, é muito forte. Mas abramos os olhos para o mundo: o mundo inteiro está em guerra! A Síria está em guerra há 12 anos, e depois o Iêmen, Mianmar, com o drama rohingya. Também há tensões e conflitos na América Latina. E, depois, esta guerra na Ucrânia. O mundo inteiro está em guerra, vamos nos lembrar bem disso. Contudo, eu me pergunto: a humanidade terá a coragem, a força e, inclusive, a oportunidade de retroceder? Segue-se adiante, adiante, adiante rumo ao abismo. Não sei. É uma pergunta que me faço. Lamento dizer isso, mas estou um pouco pessimista."
O líder católico destacou a crueldade envolvida nos conflitos:
"Estou surpreso, nesses dias, com os relatos de violência. De forma especial, chama-me a atenção a crueldade. As notícias que recebemos das guerras no mundo falam de uma crueldade até difícil de pensar. Não apenas matam, mas matam com crueldade. Para mim, isso é algo novo. Isso me faz pensar. As notícias da Ucrânia nos falam de crueldade. E, aqui, no Congo, ouvimos isto dos depoimentos diretos das vítimas."
Segundo o pontífice, "neste último século houve três guerras mundiais, 1914-1918, 1939-1945 e a atual, que é uma guerra mundial". Diante do caos, a questão é, disse ele: "como o interpretamos? Se pensarmos que o orçamento mais importante é para a fabricação de armas, e com um ano sem fabricar armas se resolve o problema da fome em todo o mundo. Ou seja, já temos uma orientação belicista de destruição, e se pensamos que hoje em dia a técnica das armas chegou a tal ponto que com uma única bomba se pode destruir uma cidade inteira como esta, o que esperamos? Parece que não entendemos para onde estamos indo".
No esforço de dialogar com a humanidade, tornar a Igreja atuante e colocá-la a serviço dos que mais sofrem por causa das injustiças sociais e políticas, o "Concílio Vaticano II, pegando a pista da Pacem in terris, declarou o Evangelho como a mais segura salvaguarda da 'dignidade pessoal e da liberdade humana' e anunciou a promoção dos direitos humanos como um dos dois principais serviços que a Igreja Católica presta o mundo", disse o jesuíta norte-americano Drew Christiansen, professor de teologia da Boston College, em Massachusetts, e ex-editor-chefe da America, revista jesuíta dos EUA. Segundo ele, "desde a antiguidade, o bem comum tem sido um conceito crucial na teologia social e política católica, que faz referência ao bem compartilhado de toda uma sociedade ou entidade política".
Citando as palavras de Dom Aloísio Lorscheider (1924-2007), frade franciscano e ex-presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, segundo as quais “o Vaticano II faz-nos passar de uma Igreja-cristandade para uma Igreja-missão, uma Igreja toda ela missionária”, Marcos Sassatelli, frade dominicano, doutor em Filosofia e em Teologia Moral, convida os cristãos a não só ouvirem as palavras do Papa Francisco como também a se envolverem e implicarem-se nesta missão:
"É urgente! Ouçamos as palavras do nosso irmão o Papa Francisco e seu premente apelo: 'Soube que são muitos na Igreja aqueles/as que se sentem mais próximos dos Movimentos Populares. Muito me alegro por isso! Ver a Igreja com as portas abertas a todos vocês, que se envolve, acompanha e consegue sistematizar em cada Diocese, em cada Comissão ‘Justiça e Paz’, uma colaboração real, permanente e comprometida com os Movimentos Populares. Convido-vos a todos, bispos, sacerdotes e leigos (todos os cristãos/as), juntamente com as organizações sociais das periferias urbanas e rurais, a aprofundar este encontro'. É esse o caminho para sermos - hoje - Igreja-missão (Igreja 'em saída')!"
Nesta direção, o Papa Francisco tem exortado as igrejas a serem "serviço gratuito, não supermercados” porque "o Filho do Senhor 'está presente', especialmente 'nos enfermos, nos que sofrem, nos famintos, nos encarcerados'”.