No início de janeiro, reproduzimos no sítio do IHU a entrevista com a jornalista iemenita Nobel da Paz Tawakkol Karman sobre a catástrofe humanitária, pior do mundo segundo a ONU, que enfrenta o país localizado no sudoeste da Península Arábica.
A seguir, a segunda parte da entrevista na qual a renomada e valente jornalista Tawakkol esclarece pontos expostos na conversa anterior. E responde outra importante questão colocada pelo entrevistador, "esquecida" pelos colegas ocidentais: veio à tona que armas fornecidas pelos sauditas e americanos para "defender" o Iêmen do terrorismo, e "pacificá-lo", vão parar em "mãos erradas" segundo meios de comunicação ocidentais.
Pois tais mãos pertencem a ninguém menos que os terroristas da Al-Qaeda em solo iemenita (de novo, na inglória história dos Estados Unidos no Oriente Médio; filme dos "equívocos" sempre favorecendo terroristas e ditadores que, aliás, a América Latina também conhece, perfeitamente): acidentalmente mesmo, como noticiou sem muito ruído a CNN tempos atrás, para logo jogar no vazio a "mera" informação? (US arms sold to Saudi Arabia and UAE end up in wrong hands | cnn.com)
Confira abaixo a íntegra do complemento da entrevista concedida por Tawakkol Karman, por e-mail da capital iemenita de Sana'a, ao jornalista Edu Montesanti.
A entrevista foi enviada por Edu Montesanti ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Você disse na primeira parte da entrevista, Tawakkol, que "a coalizão liderada pela Arábia Saudita fez muitas coisas vergonhosas no Iêmen, comportando-se como potência de ocupação irracional", afirmando ainda que "isso não vai durar". Especifique a quais coisas vergonhosas você se referiu, e por que você acha que isso tudo não vai durar.
Os atos vergonhosos da coalizão são excessivamente numerosos para listá-los, mas remeto aos relatórios do GEE [Grupo de Especialistas Eminentes no Iêmen, formado pela ONU para investigar crimes de guerra e contra a humanidade em território iemenita] sobre o Iêmen e de algumas instituições internacionais, bem como às investigações realizadas pelas principais agências de notícias e jornais.
Em poucas palavras, no entanto, a coalizão saudita-emiradense mirou deliberadamente reuniões de civis, que resultaram em milhares de vítimas. Também enfraqueceu o exército ao criar milícias armadas com lealdade antipatriótica, ocupou portos, impediu a exportação de gás, montou prisões próprias dentro do território iemenita, prendeu aqueles que se opunham às suas políticas e os enviou para suas bases no Chifre da África, onde foram expostos a interrogatório e tortura.
Infelizmente, a coalizão cometeu muitos atos ilegais e imorais. Ninguém poderia imaginar que a coalizão liderada pela Arábia Saudita enfraqueceria o Iêmen de maneira tão grosseira.
Mapa e situação geopolítica do Iêmen | Ilustração: Bahá’í International Community.
Você afirmou que os sauditas e os Emirados Árabes Unidos tentam fragmentar o Iêmen: como e com que objetivo Riade e Abu Dhabi agem desta maneira?
Eles estão fazendo isso, enfraquecendo o exército oficial, apoiando e financiando milícias dirigidas pelo regionalismo e removendo qualquer político iemenita que rejeite seus esforços para dividir o país. Ficou claro que os sauditas e os emirados mentiram ao mundo, quando anunciaram que sua intervenção no Iêmen visava restaurar a autoridade legítima.
Na verdade, eles minaram essa autoridade dividindo o país em esferas de influência distribuídas entre milícias afiliadas. Este status quo acabará por conduzir, segundo acreditam, à divisão do país em mini-estados.
Como muitos outros, alertei sobre esse destino. Mas, infelizmente, todos os líderes patrióticos iemenitas que poderiam ter enfrentado os planos sinistros, com cuidado orquestrados contra e por todo o Iêmen, têm sido alvejados.
O GEE não agiu com seriedade, ou não conseguiu executar um bom trabalho no Iêmen? O que deu errado, por que nada funcionou?
Sem dúvida, o Iêmen foi sujeito a atrocidades inimagináveis, mas ninguém se importa. Pode haver ressalvas, e bastante válidas sobre o GEE, mas a solução aqui não está em eliminar o grupo, contudo em corrigir seu desempenho.
O Iêmen é um país onde tudo é violado. Portanto, é necessário que um tribunal internacional seja estabelecido no caso do Iêmen, que terá poder de investigar todas as violações contra civis, sejam eles iemenitas ou não.
É lamentável que o Iêmen, como causa justa, transformou-se em moeda de troca utilizada por países ocidentais e atores estatais envolvidos na guerra do Iêmen, principalmente Arábia Saudita, Emirados Árabes e Irã.
Tem sido notícia que as armas sauditas, fornecidas pelos Estados Unidos, acabam nas mãos da Al-Qaeda. Mas no Ocidente, as escassas notícias sobre o assunto diziam que tais armas acabaram "acidentalmente" nas mãos "erradas" da Al-Qaeda: como a Al-Qaeda age no Iêmen, as armas acabaram, ou ainda acabam nas mãos deles? "Acidentalmente", você acha? Tanto os Estados Unidos quanto os sauditas têm um histórico de apoio direto ao grupo terrorista... Como você vê isso, Tawakkol?
Anteriormente, pedi uma investigação sobre a incerteza sobre a Al-Qaeda e suas atividades ambíguas no Iêmen. Muitos indícios apontam que esta organização atua a serviço de alguns atores locais, regionais e internacionais.
Sempre há algo suspeito nos movimentos da Al-Qaeda, pois ela se anuncia onde não vai aparecer e não opera onde seria esperado.
A Al-Qaeda opera não apenas como organização terrorista, mas também como ferramenta usada para impor projetos políticos muitas vezes não do interesse do Iêmen.