"É fundamental a aprovação da PEC da transição para o início da nova governança, e o consequente enfrentamento das questões sociais e ambientais imediatas, porém, a médio prazo é imprescindível criar um novo instrumento que regulamenta os gastos do Estado, sem privilegiar os interesses do mercado, um instrumento que retome o pacto social e papel do Estado na redução de desigualdade, desenvolvimento territorial e garantia de direitos", escrevem Gerson Antonio Barbosa Borges e Aline Albuquerque Jorge.
Gerson Antonio Barbosa Borges é militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e doutorando em Geografia pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.
Aline Albuquerque Jorge é doutoranda em Geografia pela Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho”.
Nas últimas semanas, durante o governo de transição, temos escutado cotidianamente notícias que apresentam o “nervosismo” do mercado em torno das discussões referentes ao Projeto de Emenda à Constituição (PEC), que está em elaboração pela equipe do Presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Neste breve texto, apresentaremos o que é a então chamada PEC da Transição, seus antecedentes e relevância para o combate à fome, pobreza, preservação/recuperação dos biomas.
A fim de abordarmos a PEC da Transição, carece regressar ao ano de 2016, pós golpe jurídico/parlamentar/empresarial que depôs a Presidenta Dilma Rousseff. No mês de dezembro do referido ano, com articulação da base governista do Presidente Michel Temer, foi aprovado pelo congresso nacional o Projeto de Emenda à Constituição 95 (PEC 241 / PEC 55), a qual estabeleceu um teto de gastos públicos a datar em 1º de janeiro de 2017. Essa medida política/econômica congelou os gastos públicos por 20 anos, limitando o aumento dos investimentos à inflação do ano anterior, parâmetro analisado com base nos dados do Índice de Preços ao Consumidor (IPCA).
Na época, a tramitação e aprovação da Emenda à Constituição 95, também conhecida como “PEC da morte” originou inúmeros protestos em todo Brasil, tendo em vista o enfraquecimento do papel do Estado na redução de desigualdades e, consecutivamente, a descontinuidade do pacto social firmado a partir da Constituição Federal de 1988, que prevê a proteção e o reconhecimento de direitos como acesso à educação, saúde, entre outros.
Em síntese, devido a tendência de aumento populacional e a necessidade de mais e novos serviços públicos, os investimentos fundamentais nas áreas da saúde, meio ambiente, educação, infraestrutura, combate à fome e a pobreza propende a diminuir gradativamente, precarizando a vida e a reprodução da classe trabalhadora urbana e camponesa.
Não obstante, o teto de gastos tornou-se uma garantia que as classes dominantes, particularmente às associadas ao mercado (capitalismo financeiro/especulativo) continuarão rapinando super lucros às custas da população mais vulnerável, visto que a PEC só abrange os então chamados investimentos primários, isto posto, pagamentos de juros e amortizações da dívida pública não são afetados. Nesse sentido, por trás do discurso da necessidade de controlar os gastos públicos, a principal finalidade da PEC foi acentuar o papel do Estado no que tange a necessidade do Capital de constante acumulação.
Um exemplo que ilustra o desavergonhamento da PEC do teto de gastos é a impossibilidade de utilizar investimentos oriundos de doações e parcerias externas para o combate à pobreza, fome e o desmatamento, caso estes recursos somados ao orçamento público ultrapassem a inflação anual medida pelo IPCA. Em outros termos, mesmo o dinheiro ofertado por empresas e Estados nacionais, cujo objetivo esteja voltado para dirimir os problemas sociais e ambientais, não poderia ser utilizado.
O arrocho da PEC do teto de gastos é tão terrível, que mesmo o governo neoliberal de Bolsonaro, não conseguiu seguir a totalidade das diretrizes e orientações. Todavia, antes de atuar fora da constituição, a equipe econômica solicitou quatro vezes para o congresso alterações na PEC original, com finalidade de gastar mais do que estava previsto. De 2019 até este ano de 2022, o governo bolsonarista desembolsou 794, 9 Bilhões de reais acima do teto de gastos. O mercado, que está nervoso nesse momento de debate da PEC da transição, foi tchutchuca (calou-se) nas alterações orçamentárias de Bolsonaro guiado por seu "guru'' Paulo Guedes e o Centrão (conjunto de partidos fisiológicos que atuam para satisfazer seus interesses, dentre eles, o Partido Liberal (PL), ao qual Bolsonaro é filiado).
Entre os gastos extraordinários do governo bolsonarista se contabilizam os recursos (orçamento de guerra) utilizados para o enfrentamento da pandemia de Covid-19, mas também para o famigerado orçamento secreto, que em dois anos sua soma já ultrapassou os 40 Bilhões de reais. Nesse obscuro e corruptível formato, o relator da Lei Orçamentária Anual (LOA) destina emendas aos parlamentares aliados, com ausência de critérios e rastreabilidade, proporcionando grandes esquemas de corrupção, como foi no caso do município de Pedreiras no estado do Maranhão, com uma população de 39 mil habitantes, que no ano de 2021 registrou o número estratosférico de 540.600 exodontias (extrações dentárias), com recursos provindos do orçamento secreto. Para ser verdade, cada cidadão deveria ter extraído 14 dentes. O orçamento secreto foi utilizado como ferramenta para comprar apoio de parlamentares em votações relacionadas aos interesses do governo. Também foi uma forma de buscar a reeleição, sendo que Bolsonaro gastou mais de 40 milhões de reais com a campanha de 2022, número 1666% maior comparado ao total gasto na campanha de 2018, segundo valores informados ao Tribunal Superior Eleitoral.
Com adoção de políticas neoliberais servis ao mercado, negacionismo científico, liberação de verbas via sistemas obscuros e não rastreáveis; desarticulação e abandono dos instrumentos de combate à pobreza e à fome. O enfrentamento à pandemia da Covid-19 foi uma tragédia (anunciada) com mais de 600 mil mortes, concomitantemente, houve o aumento da insegurança alimentar, que chegou ao número alarmante de 125 de milhões de brasileiros, desses, 33,1 milhões já estão passando fome todos os dias (insegurança alimentar severa).
Em relação aos biomas e ao desmatamento, representando apenas os interesses do agronegócio e suas respectivas corporações, o governo adotou uma política negacionista, que atinge o tema das mudanças climáticas. Nos últimos três anos houve um aumento de 57% na derrubada das florestas. Apenas no mês de julho do vigente ano, foi derrubada uma área de floresta na Amazônia equivalente à cidade de São Paulo.
Frente a esta conjuntura de descaso político, ambiental e social, o governo Lula tem em suas mãos um orçamento incompleto para o ano de 2023. O orçamento criado pela base governista de Bolsonaro é o menor dos últimos oito anos. Com cortes drásticos no social, ambiental, saúde, educação e infraestrutura, falta dinheiro, por exemplo, para o pagamento dos 600 reais do Auxílio Brasil, compra de remédios via farmácia popular, merenda escolar, habitação popular e combate ao desmatamento.
O anteprojeto da PEC da transição solicita a utilização de 175 bilhões acima do atual teto de gastos para o pagamento do Auxílio Brasil e a utilização de recursos provindos de doações para investimentos em educação e meio ambiente. Igualmente, possibilita sanar despesas essenciais que não estavam no orçamento.
Diante do contexto é fundamental a aprovação da PEC da transição para o início da nova governança, e o consequente enfrentamento das questões sociais e ambientais imediatas, porém, a médio prazo é imprescindível criar um novo instrumento que regulamenta os gastos do Estado, sem privilegiar os interesses do mercado, um instrumento que retome o pacto social e papel do Estado na redução de desigualdade, desenvolvimento territorial e garantia de direitos.
Torna-se necessária a criação de uma força tarefa para restaurar as instituições públicas. A Petrobras carece reaver sua função social. O ministério da educação tem de ser libertado das trevas e retornar o eixo para a ciência e o desenvolvimento nacional. O ministério do meio ambiente deve ser desapropriado dos destruidores da natureza e retomar o combate ao desmatamento. O ministério da economia precisa ser apropriado em favor dos interesses nacionais, principalmente para retomar o desenvolvimento nacional e combater as desigualdades sociais.
Para enfrentar a fome e a pobreza, a recriação do Ministério do Desenvolvimento Agrário e a atuação integrada com o Ministério do Desenvolvimento Social e demais ministérios deve ser uma prioridade. Estes ministérios necessitam dialogar com os representantes da agricultura familiar e camponesa, para montar estratégias e políticas públicas que fortaleçam a produção e distribuição de alimentos saudáveis via cooperativas, feiras e mercados familiares/camponeses. É sabido que a agricultura familiar e camponesa, representa 77% da população do campo. Estes com menos de 30% das terras agricultáveis, acessando apenas 16% do crédito agrícola, produzem mais de 70% dos alimentos, conforme aponta o Censo Agropecuário do IBGE de 2017.
A CONAB (Companhia Nacional de Abastecimento) deve ser transformada em uma “CONABRAS”, voltada para o controle dos estoques públicos e distribuição de alimentos, articulada com políticas públicas de fortalecimento da agricultura familiar e camponesa.
Preservação/recuperação ambiental, abastecimento popular, produção de alimentos saudáveis e o combate à pobreza e à fome devem ser prioridades no orçamento, sobretudo, em um momento em que o país ainda sofre as consequências da pandemia, associado à escalada da fome, do desemprego e de diversos outros problemas sociais.