"O mote da chapa Lula/Alckmin nesta reta final da campanha deveria ser: comida de qualidade no campo e na cidade para todos os brasileiros. Pelo fim da fome e da má-nutrição", escreve Jean Marc von der Weid, ex-presidente da UNE (1969-1971), fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA), em 1983, membro do CONDRAF/MDA (2004-2016) e militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta.
O drama da fome assola o quotidiano de 33,1 milhões de brasileiros. A má-nutrição afeta a saúde de outros 94 milhões. Temos um alto índice de obesidade e sobrepeso que se combina em muitos casos, com a subnutrição.
Estes números catastróficos são resultado de problemas profundos que vem de longe. A fome parecia em vias de ser erradicada desde as melhorias na renda das famílias com o controle da inflação e o aumento da renda nos governos de FHC, com o Plano Real e, sobretudo, com as políticas de aumento real do salário-mínimo e o programa Bolsa Família nos governos de Lula e de Dilma. O número dos afligidos caíram a ponto do Brasil ser retirado pela FAO do mapa da fome no mundo. Apesar do sucesso destas políticas eles ainda eram cerca de 11 milhões, em 2015. Já a má-nutrição não foi encarada de frente e com profundidade e a dieta dos brasileiros foi mudando com o tempo, para ir se concentrando, cada vez mais, em alimentos superprocessados, com baixo teor em proteínas, sais minerais, vitaminas e fibras e excesso de calorias, sal, açúcar, gorduras e produtos químicos.
Com o golpe que depôs a presidente Dilma Roussef, a ascensão de Temer e, sobretudo, com o governo de Bolsonaro, as políticas que favoreceram a diminuição da fome foram postas de lado ou utilizadas como moeda de troca política, sem foco nem eficácia e o número dos famintos triplicou.
Não existe, nesta campanha eleitoral, nenhum tema de maior abrangência do ponto de vista do número de pessoas afetadas. O tema da destruição ambiental é ainda mais abrangente por afetar todos os brasileiros vivos e por nascer, além de ter efeitos sobre o clima em todo o planeta. Mas é um tema ainda pouco percebido pelo eleitorado com a urgência e dramaticidade que apontam os especialistas.
Enfrentar o drama da fome e da má-nutrição é a principal prioridade social para o nosso país e é preciso discuti-lo com profundidade, adotando medidas que tenham efeito real e duradouro. Nesta campanha as propostas ficaram muito aquém das necessidades de um programa consequente. Estamos presos ao debate sobre o tamanho dos auxílios financeiros para os mais pobres. Bolsonaro combateu o Bolsa Família quando era deputado. Durante a pandemia, o seu governo propôs uma ajuda de 200,00 reais. O Congresso subiu o valor para 500,00 reais e Bolsonaro, ao se ver derrotado, aumentou o valor para 600,00 para não ficar mal com o eleitorado. Depois disso ele deixou os beneficiários sem qualquer auxílio por meses até lançar o seu programa Auxílio Brasil, que distribuiu 400,00 reais para 19 milhões de famílias. Com a proximidade das eleições, o governo aumentou em 200,00 reais o auxílio, visando ganhar votos, a sua única preocupação desde sempre.
Até agora não foi feita nenhuma avaliação das necessidades das famílias afligidas pela fome de forma a justificar o tamanho dos auxílios financeiros. Porque 200,00, 400,00, 600,00 reais ou, na proposta de Ciro Gomes, 1200,00 reais? Alguém sabe qual o custo de uma alimentação nutricionalmente adequada? Alguém tem ideia da renda disponível nas famílias mais pobres? Alguém tem ideia de quanto estas famílias gastam em outras despesas impositivas tais como habitação, saúde, transporte? Quanto sobra para alimentação?
Esta constatação nos leva à conclusão de que o auxílio financeiro não pode ser pensado apenas como ajuda para a alimentação. A família pobre com 100,00 reais de renda per capita não pode usar todo o recurso que recebe do Estado para comprar comida ou não vai poder pagar aluguel, comprar remédios e usar o transporte público para ir trabalhar. A solução é trabalhar com o conceito de renda mínima, defendido há anos pelo ex-senador e agora eleito deputado paulista Eduardo Suplicy, hoje apoiado por vários economistas até entre os conservadores e liberais, aqui e no resto do mundo. Em outras palavras, vai ser preciso um programa onde os valores distribuídos sejam suficientes para cobrir todas as despesas essenciais, suplementando a renda auferida pelos mais pobres.
Por outro lado, não basta distribuir dinheiro sem que a oferta de alimentos seja suficiente para responder ao aumento de demanda provocado pelo auxílio, mesmo nos níveis limitados de hoje. A lei da oferta e da procura ainda não foi revogada e insiste em provocar aumentos nos preços dos alimentos a cada vez que aumentam os recursos nas mãos dos famintos. É preciso ter políticas que garantam o acesso aos alimentos, no curto prazo com importações daquilo que não é suprido pela agricultura nacional e, no médio e longo prazo, com a expansão da oferta de produtos das nossas terras. E como os preços dos alimentos no mercado internacional estão elevados, estas importações terão que ser subsidiadas ou o processo de erosão dos valores dos auxílios vai continuar. E, logicamente, a fome não vai ser eliminada.
Sem recursos suficientes para uma boa alimentação o que acontece é a adoção, por parte das famílias mais pobres, de estratégias de sobrevivência. A mais comum é a adoção de uma dieta cujo propósito é apenas encher barriga, comprando os alimentos mais baratos e mais capazes de afastar a sensação de fome. É assim que o brasileiro deixou de comer o feijão com arroz, uma combinação básica de boa qualidade nutricional (embora cobrando vários outros elementos complementares), para adotar o arroz com ovo e mais recentemente, o miojo com salsicha. Come-se bolacha e pão de miga e toma-se muito refrigerante. Os menos conhecedores dos problemas dos pobres acham que refrigerante é luxo, mas ele é um dos maiores fornecedores de calorias, calorias de má qualidade, obviamente. O governo adota esta dieta de forma oficial ao destinar apenas 30 centavos para cada merenda infantil. As merendeiras das escolas dos mais pobres estão distribuindo suco em pó aguado e bolachas contadas por cada criança. É só um disfarce da fome e sem qualquer resultado nutricional possível.
A dieta nutricionalmente necessária terá que ser estudada para cada região, maximizando-se o consumo de produtos in natura ou minimamente processados, com muito maior presença de legumes e de frutas. Com leite, ovos e carnes em proporções adequadas. A ideia de que o brasileiro precisa de picanha com cerveja pode ser atraente do ponto de vista eleitoral, mas não é verdade. Picanha com cerveja é para dias de festa e não pode ser um padrão alimentar, mesmo que para adultos. É bom lembrar que bebidas alcoólicas, a cerveja em particular, sempre foram, na história mundial da alimentação, uma fonte importante de calorias para os trabalhadores, mas essa “solução” não se justifica em tempos modernos, onde há clareza científica sobre fontes mais adequadas de calorias. Na dieta adequada, a ingestão de açúcar tem que ser muito reduzida, assim como a de sal.
Os efeitos de uma dieta adequada se farão sentir na saúde pública, com imensas economias em tratamentos de obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares, câncer e outras de menor incidência. Os óbitos por causas naturais no Brasil são, predominantemente, originados pelo excesso do consumo de sal, açúcar e produtos químicos utilizados nos produtos processados.
Como os hábitos alimentares vão sendo adquiridos em função das circunstâncias econômicas e sociais, vai ser necessário adotar um programa intenso de educação alimentar, que pode ser estimulado pelo uso de dietas adequadas na merenda escolar (que deve incluir três refeições por dia). Também vai ser necessário mudar a legislação para derrubar o excessivo uso de sal, açúcar e aditivos químicos nos produtos processados industrialmente. Restaurantes populares a preços subsidiados também deveriam ser locais de educação alimentar.
Um programa de combate à fome e à má-nutrição vai exigir a adoção de uma estratégia consistente de aumento da produção de todos os alimentos necessários para todos os brasileiros e brasileiras. Felizmente somos um país com enorme capacidade de produção agrícola. O problema é que a nossa agricultura está dominada pelo chamado agronegócio e, o agronegócio, muito naturalmente, funciona na base da busca do lucro. Não é, absolutamente, um crime nem um pecado procurar o lucro em um país capitalista. A questão é entender que a lógica da acumulação de lucros produz o quadro onde estamos atualmente. Temos a maior parte das nossas áreas de culturas anuais plantadas com soja e milho, voltados para as indústrias de óleo vegetal e, sobretudo, de ração animal, sejam elas baseadas no país ou no exterior (que é para onde vai a maior parte da nossa produção).
A maior área produtiva no setor agropecuário é a de pastagens e criamos mais bovinos do que gente no Brasil. Mas a carne de gado é exportada em boa parte e os seus preços no mercado interno estão alinhados com os da bolsa de Chicago. Com o preço da carne dolarizado e a demanda de carne da China, da Europa e dos países árabes bombando, o que sobra para o mercado interno é consumido pela parcela endinheirada do Brasil. Já houve tempo em que a classe C comia carne bovina todos os dias e picanha nos churrascos de domingo. Os tempos que o ex-presidente Lula gosta de recordar. Para as classes D e E, as carnes mais consumidas eram de porco ou de frango e mais parcimoniosamente.
Hoje, tudo isso mudou e, as classes D e E, engrossadas pelos que caíram da classe C com a crise econômica que se estendeu desde 2015, estão comendo ovo e, para os mais pobres, pelanca e osso. A produção nacional de arroz e de feijão está estagnada há tempos, e o consumo per capita vem caindo continuamente. Os preços destes alimentos básicos também acabam atrelados aos preços internacionais já que os produtores acabam se orientando para os produtos de exportação que são mais lucrativos. Pobre não é um mercado lucrativo e isto indica que, se quisermos garantir o consumo necessário de alimentos para todos, teremos que subsidiar a produção e o consumo. Aliás, subsídio é o que não falta para a produção do agronegócio exportador. O que falta é o subsídio para o mercado interno popular.
Quem ainda produz alimentos para o mercado interno é a agricultura familiar, mas mesmo esta não deixa de ser arrastada para a lógica do mercado, até porque, com o tipo de produção centrada no uso de insumos químicos, precisa remunerar o seu investimento pois estes são produtos caros e com custos crescentes.
Há alternativas técnicas conhecidas para escapar do uso dos insumos químicos (fertilizantes e pesticidas) e das sementes monopolizadas pelas empresas da biotecnologia (também muito caras e cada vez menos produtivas). Trata-se da técnica chamada de agroecologia que tem, além da vantagem de economia de custos de insumos, efeitos benéficos para o meio ambiente e para a saúde de agricultores e consumidores. Ao contrário do que propala a propaganda do agronegócio, a produção agroecológica não é de baixa produtividade embora ela tenha custos mais altos de mão de obra. A agroecologia tem ainda a imensa vantagem de não destruir os recursos naturais (solo, água e biodiversidade) e minimizar a emissão de gases de efeito estufa. Aplicada corretamente a agroecologia pode inclusive ser um importante fator para a absorção destes gases, ajudando a combater o aquecimento global.
Para resumir, um programa de produção de alimentos para erradicar a fome terá que incluir a conversão da agricultura familiar para a agroecologia. Isto implica na formação de técnicos e cientistas voltados para a agroecologia que deem suporte aos agricultores familiares. O Estado vai ter que intervir na orientação do mercado, com compras públicas de alimentos e reconstituição de estoques reguladores controlados pelo governo. Nada disso se faz do dia para a noite, mas o futuro depende de começarmos um amplo programa de conversão, com crédito facilitado e preços remuneradores garantidos pelo governo. Programas deste tipo já foram iniciados nos governos de FHC, Lula e Dilma, o PAA e o PNAE. Estes programas remuneravam os produtos agroecológicos com preços mais altos, mas faltou uma política sustentada de assistência técnica. Algo foi tentado neste sentido, mas com muitas insuficiências, em particular no formato dos projetos de financiamento desta atividade. Ficou desequilibrado e o resultado foi um progresso limitado na difusão da agroecologia. Tudo isso vai ter que ser corrigido em um novo governo Lula.
A proposta que defendo para este momento das eleições é o anúncio de uma campanha nacional pela erradicação da fome e da má-nutrição, estimulada pelo governo federal e com a participação dos governos estaduais e municipais e com o engajamento das organizações da sociedade civil. As igrejas de todas as confissões teriam um lugar importantíssimo nesta campanha, já que elas têm uma grande capilaridade e acesso organizado aos mais pobres, sobretudo aqueles em rincões mais afastados do nosso país, onde a distribuição de alimentos vai ter que ser organizada no lugar do mero acesso a mais recursos financeiros. Lula deveria fazer um apelo à colaboração humanitária de todas as forças da nacionalidade para o enfrentamento deste terrível problema que afeta mais da metade da nossa população.
O mote da chapa Lula/Alckmin nesta reta final da campanha deveria ser:
Comida de qualidade no campo e na cidade para todos os brasileiros. Pelo fim da fome e da má-nutrição.