06 Outubro 2022
"Desativando o poder constituído, os 'sinais dos tempos' abrem para a possibilidade de ouvir toda a verdade, um ato inesgotável e nunca concluído pelo sopro do Espírito. Porque o Espírito é o suporte da falta sobre a qual nenhum poder pode dominar. E a sinodalidade é o primeiro passo de uma Igreja que se abre a essa desativação do poder e do domínio, que quer decididamente habitar a falta enquanto espera ressoar também para ela o vindouro de uma verdade toda inteira à qual só se pode aspirar", escreve o teólogo e padre italiano Marcello Neri, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado por Settimana News, 05-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A infeliz comparação do card. Koch entre os resultados do Caminho Sinodal Alemão e a devoção religiosa de alguns cristãos da época do nazismo por Hitler, decorre de sua preocupação com uma rendição ao espírito dos tempos pela Igreja alemã como representada nos textos elaborados pelos sinodais.
Em suma, a centralidade do tema conciliar dos "sinais dos tempos" como verdadeiro lugar teológico da fé, ao qual também a Igreja institucional deve sua obediência, beiraria não só a heresia, mas também o apoio incondicional ao mais sinistro totalitarismo.
Nesse espírito, Koch contrapõe os "maus" católicos de hoje aos "bons" evangélicos de ontem - aqueles da Declaração de Barmen e da Igreja confessante, que nela afirma sua identidade evangélica e declara aqueles que não se encontram nela como fora da comunhão eclesial da Igreja Evangélica na Alemanha.
“Jesus Cristo, como testemunham as Sagradas Escrituras, é a palavra de Deus que devemos escutar, na qual devemos ter confiança e à qual devemos obedecer na vida e na morte. Rejeitemos, portanto, a falsa doutrina segundo a qual a Igreja em seu anúncio deveria e poderia reconhecer, ao lado desta palavra de Deus, outros eventos e poderes, formas e verdades como revelação de Deus” / (Barmer Theologische Erklärung, These 1).
A dupla comparação instruída pelo card. Koch (falsos-verdadeiros cristãos: católicos hoje e evangélicos ontem; falsa-verdadeira doutrina: Caminho Sinodal Católico e Declaração de Barmen evangélica), entendida em sua opinião em espírito ecumênico, é problemática precisamente por causa de sua relação com a relação ecumênica do Igreja Católica com aquela evangélica.
É assim porque representa um gesto de poder do magistério católico que unilateralmente (e seletivamente) se apropria de um artigo confessante de outra Igreja. Ou seja, de alguma forma, converte o ensino da Igreja Evangélica em magistério daquela Católica – sem respeitar a eclesiologia da primeira, que exatamente não pretende ser a segunda.
E o faz sem tirar nenhuma consequência eclesial para a Igreja Católica a respeito daquele lugar teológico, porque é a isso que Koch eleva a Declaração de Barmen quando é contraposta à teologia do discernimento dos "sinais dos tempos" tentada pelo Caminho Sinodal Alemão - declarada, por fim, um não-lugar.
O poder magisterial e doutrinário católico é tão invasivo e inconsciente que nem nos apercebemos de exercê-lo de maneira ecumenicamente indevida: tomo o seu, sem lhe pedir, para dizer aos meus que estão errando - exatamente porque eu posso fazer isso sem ter que lhe prestar explicação por essa pilhagem de sua confissão.
Não só: eu declaro você lugar teológico na medida em que isso serve a mim para resolver um problema em minha casa. Cumprida essa função, pode regressar com segurança à sua insuficiente realidade eclesial, que sempre lhe deixa aquém da minha Igreja - aquela verdadeira e única, que Jesus quis.
Para o card. Koch dever-se-ia perguntar se a Declaração de Barmen é em si um lugar teológico (também) para a fé católica, precisamente eu seu ser e permanecer confissão evangélica da fé (ou seja, não católica)? Ou foi usada apenas para fins funcionais para resolver disputas internas à Igreja Católica - isto é, declarando sua irrelevância para a justa fé católica fora de sua momentânea apropriação pelo magistério católico?
Se assim fosse, a Declaração de Barmen seria exatamente um não-lugar teológico, tal como o Caminho Sinodal da Igreja Católica Alemã à qual é (instrumentalmente) contraposta.
Ao desejar indicar um justo lugar teológico, o card. Koch, ao mesmo tempo, esvazia qualquer conteúdo normativo que residiria unicamente em sua assunção por um entre os muitos lugares teológicos que a fé católica conhece e pratica - o magistério, justamente. E o faz porque o magistério católico pode, e não deve prestar contas desse seu poder a outros.
Ao espírito do tempo se pode, portanto, responder apenas com o exercício totalitário do poder do magistério católico - que à sua vontade faz e desfaz lugares teológicos a seu bel prazer. Dando a impressão de que os outros lugares teológicos, que inclusive compõem o corpo institucional da Igreja Católica e orientam a sua fidelidade à vivência de Jesus, norma que escapa a qualquer princípio de regulação eclesial, são inadequados para atestar hoje a verdade do Deus cristão. Aliás, são até perigosos e, portanto, devem ser desativados magisterialmente.
Sob uma pátina viscosa de amor pela verdade da fé, a que agora poucos acreditam, a operação realizada pelo card. Koch, e outros epígonos da verdadeira eclesialidade, visa exatamente desativar, junto com os lugares teológicos, a sinodalidade da Igreja Católica que o Papa Francisco está tentando edificar em favor do catolicismo vindouro. O sentido de fé do povo de Deus, que discerne os "sinais dos tempos", nada mais seria do que a forma camuflada de uma rendição da verdade cristã ao espírito dos tempos - diante do qual só o magistério solitário pode.
Mas toda a arquitetura dos lugares teológicos desenhados por Cano visa justamente impedir essa solidão do magistério (ou de qualquer outro lugar, ainda que fosse a "só Escritura" - cuja normatividade indisponível, da Escritura justamente, nunca foi formalmente posta em discussão pela Igreja Católica, mesmo que tenha sido relegada ao papel de mera pro forma do Tridentino ao Vaticano II).
Quando o magistério se exerce e pensa como tutor exclusivo, sem se deixar instruir por outros lugares teológicos, deixa de ser um destes - isto é, deixa de ter qualquer valor normativo para a fé e reduz-se a simples aplicação de um poder não teológico, isto é, meramente mundano.
Anos atrás, Max Seckler explicou essa arquitetura geral do sistema de Cano: os lugares teológicos são válidos como tais apenas em sua função de formar um tecido testemunhal que não pode ser dividido em seus elementos individuais - tornando um, ou alguns deles, a norma indefectível dos outros. Quando isso acontece, o tecido dos lugares teológicos se rasga e a fé católica não dispõe mais de nenhum suporte real para que sua crença possa ser concretamente uma fé em Jesus - o unigênito entre muitos irmãos e irmãs, última palavra de Deus. Quando isso acontece, aquela palavra não é mais última apenas em relação ao seu conteúdo, mas também não pode mais ser sentida: é como se não fosse.
Não há cristianismo sem discernimento, exatamente porque aquela Palavra continua a falar e deseja ser ouvida - por todos, hoje, em todos os lugares. Tempo e lugar (o que comumente chamamos de história) não são, portanto, irrelevantes para que a Palavra possa ressoar e ser percebida pelos homens e pelas mulheres. E é assim desde o início, até no núcleo incandescente daquelas Escrituras que veneramos como sagradas - subtraídas da nossa manipulação.
E o entrelaçamento originário entre Palavra (de Deus) e história (humana) tornou-se carne: isto é, não permaneceu externo a essa mestiçagem constitutiva: ao contrário, identificou-se com isso como modo de sua própria verdade; para que o aparecimento da verdade é condição de sua confiabilidade e justiça para cada mulher e cada homem que estão no mundo. Aliás, é a qualidade que decide a dignidade daquela mesma verdade. É originalmente que a "regra da encarnação" (Stella Morra) é complexa, de modo que somente uma pluralidade conjunta de lugares pode atestar o seu estar entre nós depois de seu não estar mais aqui conosco.
Mas não é apenas complexa, é também dinâmica - como João nos lembra: " Mas, quando vier aquele Espírito de verdade, ele vos guiará em toda a verdade; porque não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará o que há de vir.
Ele me glorificará, porque há de receber do que é meu, e vo-lo há de anunciar.
Tudo quanto o Pai tem é meu; por isso vos disse que há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar” (Jo 16, 13-15).
Toda a verdade é algo aberto e sempre incompleto; algo a que somos introduzidos pela voz do Espírito, cada vez de novo e toda vez de uma maneira diferente - de uma palavra sem conteúdo, um som, um sopro sobre o qual não temos nenhum domínio, que escapa ao alcance do conhecimento e da antecipação.
Entre a verdade que um dia existiu e toda a verdade há uma lacuna sobre a qual nenhum poder pode (nem mesmo o do magistério). “Sinais dos tempos” é o nome que o Vaticano II deu a essa lacuna, a esse não poder da Igreja. Se a eles nos reportamos em nome do poder, clerical ou leigo, o contorno que os torna apreciáveis como tais é destruído: fazemos como se não houvesse mais aquela lacuna que distingue o tempo depois de Jesus - falta dele que acende a possibilidade de toda a verdade.
Por isso, os "sinais dos tempos" devem ser manejados com cuidado e sem arrogância, por todos - inclusive bispos e magistério. Porque ninguém pode sobre eles. Mas justamente por isso os ‘sinais dos tempos’ são aquilo sem os quais a Igreja não pode existir, se ela também, como instituição, quer ser introduzida a toda a verdade que ainda falta e sempre faltará. E talvez seja precisamente isso que o poder da e na Igreja teme: descobrir que lhe falta o que a faz ser.
Daí a necessidade do poder de desacreditar imediatamente os "sinais dos tempos" vendo neles apenas o mascaramento diabólico do espírito do tempo (julgado a priori contrário a toda verdade, sem prévio discernimento): preferindo o senhorio sobre a verdade que existiu na introdução a toda a verdade (ainda faltante, vinda do futuro anterior que é o tempo de Deus).
Desativando o poder constituído, os "sinais dos tempos" abrem para a possibilidade de ouvir toda a verdade, um ato inesgotável e nunca concluído pelo sopro do Espírito. Porque o Espírito é o suporte da falta sobre a qual nenhum poder pode dominar. E a sinodalidade é o primeiro passo de uma Igreja que se abre a essa desativação do poder e do domínio, que quer decididamente habitar a falta enquanto espera ressoar também para ela o vindouro de uma verdade toda inteira à qual só se pode aspirar.
Trata-se não só de um enorme processo de conversão pessoal e comunitária, mas também de uma reconstrução radical da Igreja e das suas estruturas institucionais - na forma de uma dupla aproximação: ao evento messiânico de Deus atestado pelas Escrituras, de um lado; e a toda a verdade vindoura e, portanto, ainda faltante, que se move nas harmônicas dos sopros do Espírito, pelo outro. Mas, justamente, trata-se apenas de aproximação - para que a falta nunca deixe de gerar a Igreja que ainda está por vir.
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Sinodalidade e lugares teológicos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU