05 Janeiro 2022
"É surpreendente que a violação dos cânones em território canônico atribuído a Constantinopla seja agora coberta e justificada por Moscou. Em particular, a aceleração do cisma é surpreendente, enquanto muitas Igrejas Ortodoxas ainda estão incertas, não convencidas da decisão de Bartolomeu, mas não dispostas a interromper a comunhão eucarística praticada por Moscou. No entanto, duas vítimas já são visíveis: o enfraquecimento do anúncio evangélico e o congelamento do diálogo ecumênico", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Settimana News, 04-01-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
"Quem com cisma fere, com cisma será ferido": este parece ser o sentimento predominante que preside a decisão do sínodo russo de instituir duas dioceses próprias para toda a África (29 de dezembro). Na tradição ortodoxa, não é um problema criar dioceses dentro do território canônico da própria Igreja, mas é considerado um gesto grave quando tudo isso acontece no território de outra Igreja.
Em áreas geográficas não ortodoxas, Constantinopla invoca sua própria responsabilidade, mas o vínculo é muito maior se nelas, como no caso do patriarcado de Alexandria, do qual dependem as atuais presenças ortodoxas na África, a autoridade patriarcal já está ativa e reconhecida.
A decisão moscovita está ligada ao reconhecimento por Teodoro II de Alexandria da Igreja autocéfala da Ucrânia (Metropolita Epifânio). A decisão de conceder autocefalia (6 de janeiro de 2019) cabe ao patriarca de Constantinopla, Bartolomeu, fortemente contestado por Moscou, que considera a Ucrânia seu território canônico e a Igreja pró-Rússia local (Metropolita Onufrio) como a única Igreja canonicamente reconhecida.
O consenso para a decisão de Teodoro II de Alexandria (que se somou ao da Grécia e de Chipre) à decisão de Bartolomeu desencadeou a ira do patriarcado de Moscou. A atual decisão é a consequência.
O caminho de Moscou é claro. Em dezembro de 2019, Moscou retira seis paróquias distribuídas na África e nascidas da "missão" da Igreja Russa da obediência a Teodoro II de Alexandria. Em 24 de setembro de 2021, o sínodo russo dá um mandato ao bispo Leônidas de Vladikavkaz para estudar e responder aos inúmeros apelos do clero da Igreja Ortodoxa de Alexandria para sair da obediência a Teodoro II e se junte àquela de Cirilo de Moscou.
Em 29 de dezembro de 2021, o sínodo decide aceitar o pedido de 102 sacerdotes e institui um exarcado para a África com duas dioceses: a primeira no norte do continente africano, com sede no Cairo. O segundo para a parte sul do continente com base na África do Sul. A decisão foi preparada por contatos diretos entre dois padres russos (A. Novikov e G. Maximov) e padres africanos locais que mostravam interesse em mudar a própria obediência.
A sede central do exarcado não será na África, mas em Moscou, na catedral dedicada a todos os santos e será presidida pelo arcebispo Leônidas de Vladikavkaz com o título de exarca da África. Missionários e ajuda às igrejas paroquiais africanas partirão da sede moscovita.
A resposta do patriarca de Alexandria leva a data de 30 de dezembro: "O antigo patriarcado de Alexandria expressa sua profunda tristeza pela decisão sinodal do patriarcado russo de instituir um exarcado nos territórios canônicos da jurisdição da antiga Igreja de Alexandria, decisão tomada nos dias da memória litúrgica da natividade de Jesus e da divina Epifania, tempo dedicado a honrar Cristo Rei da paz. O patriarcado continuará a desempenhar seus deveres pastorais para com o rebanho que lhe foi confiado”.
Uma próxima sessão do sínodo é anunciada. Nos meses anteriores, Teodoro II visitou muitas das comunidades africanas, obtendo a impressão de força e fidelidade substanciais. Um sinal disso é a transferência para a África do Sul da sede da diocese pró-Rússia, enquanto anteriormente se falava da Tanzânia. Teodoro também escreveu uma carta a todas as Igrejas Ortodoxas para ilustrar a situação, as inevitáveis tensões internas e a dramática ferida nos cânones que regulam as relações entre as Igrejas.
É provável que surjam algumas reclamações nas igrejas pró-russas. Um padre da Igreja Ucraniana do Metropolita Onufrio, F. Pushkov, definiu a operação como "equivalente a uma blasfêmia ao Espírito".
O arcebispo Leônidas, exarca da África, ao contrário a reconheceu como “uma etapa histórica”: “A Igreja Ortodoxa Russa ganha um estatuto mais completo e assume a responsabilidade por esse evento histórico. Não vamos mais tolerar a injustiça e o desprezo pelos cânones, por quem quer que sejam violados”. A tarefa da Igreja na África será em particular defender as minorias cristãs e proteger e fazer respeitar os direitos dos crentes. Não são desconhecidos os motivos que convenceram uma parte do clero africano a recorrer a Moscou.
Uma hipótese formulada por Peter Anderson é a promessa de um papel maior e a abertura para uma carreira episcopal. A este respeito, o arcebispo Leônidas não exclui a possibilidade de expandir as estruturas do exarcado e de nomear bispos africanos, em entendimento com o Sínodo de Moscou.
O ressentimento russo também será desencadeado contra a pequena comunidade da Turquia? Parece que sim. Constantinopla está alarmada porque, pela primeira vez, haveria duas autoridades patriarcais na Turquia, a do Fanar e a de Moscou.
Em entrevista à agência Ria Novosti, o metropolita Hilarion, presidente do departamento de relações exteriores do Patriarcado, deixou isso claro. Falando da decisão relativa ao clero do patriarcado de Alexandria afirma: “Não podíamos recusar o pedido do clero, que estava percebendo a posição errônea do seu patriarca (Teodoro II), de ser acolhido no seio da nossa Igreja. Da mesma forma, não podemos negar o cuidado pastoral aos fiéis ortodoxos na Turquia a partir do momento em que o patriarca de Constantinopla se alinhou ao lado do cisma”.
Relembrar com satisfação os bispos que, em Chipre e na Grécia, criticaram expressamente a escolha de Bartolomeu de conceder a autocefalia à Ucrânia. Eles serão solicitados e ajudados para uma rebelião mais aberta. Sabe-se que padres russos contataram a corrente cismática grega dos "veterocalendaristas" (aqueles que recusaram a atualização do calendário litúrgico promovido no início do século XX). No entanto, eles preferiram recorrer ao bispo Filarete, autoproclamado patriarca de Kiev. Em todo caso, Moscou alimenta as dificuldades na Igreja Grega.
De fato, antecipando a esperada condenação do concílio dos bispos russos contra Bartolomeu de Constantinopla, marcada para novembro de 2021 e adiada para a próxima primavera do hemisfério norte, Hilarion conta assim o que está acontecendo: “Infelizmente, criou-se uma situação que se torna cada vez mais difícil de resolver. Essa condição é muito semelhante aos eventos de meados do século XI. O então patriarca de Constantinopla e o papa brigaram. A separação cismática se seguiu. Não creio que os legados do papa, que depositaram a bula da excomunhão no trono da Catedral de Santa Sofia, tenham imaginado que a divisão duraria séculos. E o patriarca de Constantinopla, ao iniciar ações retaliatórias, dificilmente poderia ter previsto isso.
Mas as igrejas seguiram seu próprio caminho. Com o passar dos séculos, a divisão cresceu e apenas nove séculos depois começaram as primeiras tímidas tentativas de reaproximação. O primeiro passo para sanar a situação atual da Ortodoxia mundial deveria ser um retorno à posição das Igrejas Ortodoxas até 2018, quando as decisões (como a autocefalia) estavam vinculadas à modalidade conciliar, não deixadas para decisões pessoais. Mas é difícil imaginar que o patriarca de Constantinopla queira voltar atrás em sua decisão. Ele se considera autorizado a tomar decisões por sua própria conta, sem consultar as outras Igrejas, contra a sua vontade e em seu detrimento. E os bispos do patriarcado de Constantinopla repetem-nos continuamente "a autocefalia é um fato consumado". Bem, se for assim, então também a divisão na Ortodoxia é um fato consumado".
Por que Moscou recorreu a uma decisão tão grave e clamorosa em nome de uma "deriva cismática" ainda indefinida, perseguindo a cisão nas Igrejas irmãs?
Aqui estão algumas das hipóteses propostas: como um impedimento para outras Igrejas dispostas a reconhecer a autocefalia ucraniana; como impulso obrigatório para um novo encontro pan-ortodoxo, dado o fracasso da proposta cultivada na reunião de Amã (fevereiro de 2020); como moeda de troca por uma retratação de Teodoro II. É surpreendente que Moscou tenha recorrido a um sistema de governo inspirado na Propagande fide do Vaticano (houve inúmeras visitas de hierarcas russos para conhecer sobre o funcionamento dos dicastérios do Vaticano) adotando um "modelo papista" após ter acusado Bartolomeu de papismo.
É surpreendente que a violação dos cânones em território canônico atribuído a Constantinopla seja agora coberta e justificada por Moscou. Em particular, a aceleração do cisma é surpreendente, enquanto muitas Igrejas Ortodoxas ainda estão incertas, não convencidas da decisão de Bartolomeu, mas não dispostas a interromper a comunhão eucarística praticada por Moscou. No entanto, duas vítimas já são visíveis: o enfraquecimento do anúncio evangélico e o congelamento do diálogo ecumênico.
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Cisma ortodoxo: Moscou acelera - Instituto Humanitas Unisinos - IHU