Como um avião do garimpo atropelou e matou um Yanomami

Relato de testemunhas obtido pelo Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana revela que garimpeiros tentaram comprar o silêncio dos indígenas com ouro. A imagem acima mostra pista do garimpo na aldeia Homoxi na TI Yanomami, onde houve o acidente que vitimou o indígena (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

06 Agosto 2021

 

Eram por volta de 14h30 de 28 de julho deste ano quando um indígena do povo Yanomami morreu atropelado por um monomotor de garimpeiros na aldeia Homoxi, às margens do rio Mucajaí, em Roraima. O piloto, segundo uma testemunha, primeiro freou e depois acelerou na direção de Edgar Yanomami, de 25 anos. “Ele morreu na hora, quebrou a cabeça dele. E relataram que o mesmo piloto, que tem apelido de ‘Marreco’, matou uma garimpeira atropelada, na mesma pista, há dois meses”, disse Junior Hekurari, presidente do Conselho Distrital de Saúde Yanomami e Ye’kuana (Condisi-YY), à Amazônia Real.

 

A reportagem é de Emily Costa, publicada por Amazônia Real, 04-08-2021.

 

Após o acidente, os garimpeiros adulteraram a cena do crime, levando o corpo de Edgar, sua mulher e os três filhos, que ainda são crianças, para a aldeia Yamasipiu, na região vizinha de Haxiu. “Eles (garimpeiros) ficaram 30, 40 minutos no local e falaram: ‘Vamos levar para outra comunidade, vai vir polícia, vão fazer denúncia à Sesai’. E não denunciaram, né? Eu soube algumas informações pela radiofonia, e a Sesai também não me comunicou”, protestou Hekurari.

 

A notícia chegou até o presidente do Condisi YY quase quatro horas depois pela radiofonia da sede do Distrito Sanitário Especial de Saúde Indígena (Dsei-Y), órgão vinculado à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde. Junior Hekurari chamou de volta a base de Homoxi, e diante do silêncio, decidiu solicitar à Sesai um voo de helicóptero fretado. “Mas não tinha, estava em manutenção, e então eu fui de avião. Houve dificuldade, e se estivesse de helicóptero, eu iria em Yamasipiu para ver o corpo do Edgar”, afirmou.

 

Na tarde do dia seguinte, Junior Hekurari pousou na comunidade Homoxi, mas não sem dificuldades, em uma terra controlada pelos garimpeiros. O piloto da aeronave que o transportava teve de pedir permissão pelo rádio. “A gente deu umas 10 voltas sobrevoando, negociando com os pilotos, para a gente poder pousar, porque eles (garimpeiros) não queriam autorizar”, disse ele, à reportagem.

 

“Eu fiquei assustado quando cheguei lá. A comunidade Homoxi, onde tinham duas malocas, foi derrubada em junho. Os Yanomami estão dormindo debaixo de acampamento de lona que os garimpeiros dão, porque onde tinha comunidade deles, o que tinha, os próprios garimpeiros destruíram, derrubaram tudo. É um garimpo muito grande. O movimento de helicóptero também. Enquanto eu estava lá, cerca de dez helicópteros pousaram, carregando material, deixando material”, relatou o presidente do Considi-YY, que esteve em Homoxi, entre 13 e 16 horas do dia 29 de julho.

 

Os relatos do acidente

 

Na hora do atropelamento, um outro indígena Yanomami acompanhava Edgar. Ele contou a Junior Hekurari que os dois caminhavam na metade da pista em direção ao posto de saúde. Nesse momento, o avião de Marreco pousou. Como a pista fica a aproximadamente 700 metros do posto de saúde, o avião parou de acelerar. “Mas, de repente, ele acelerou de novo, atingiu o Yanomami e decolou”, descreveu Hekurari.

 

Casa da UBSI no Homoxi na TI Yanomami (Foto Condisi-YY)

 

Em Homoxi, a cerca de 20 minutos de voo do 4º Pelotão Especial de Fronteira em Surucucu, Junior conversou com um cunhado e um primo da vítima. Ouviu que os Yanomami receberam ouro do garimpo ilegal para ocultar o acidente. “Os garimpeiros falaram para eles não denunciarem, e deram ouro. Eles me mostraram. O cunhado dele e o primo mostraram. Era (um pacote) pesado, aí eu perguntei ‘posso tirar foto?’ e disseram ‘não’. Tinham muitos garimpeiros no meio, vendo eu conversando com eles. Aí eu conversei também com um dos garimpeiros, e todo mundo estava ‘Ah, a gente não quer se comprometer com isso”, lembrou.

 

Junior Hekurari disse que também esteve na Unidade Básica de Saúde Indígena (UBSI) Homoxi, que atende cinco comunidades da região, e, segundo ele ouviu dos Yanomami, o local é controlado pelos garimpeiros. A UBSI é uma das três que constam na denúncia do Condisi-YY sobre a venda de 106 doses de vacinas contra Covid-19 por 15 gramas de ouro cada. A população de Homoxi é de 254 Yanomami, segundo o Condisi-YY.

 

Em nota, a Sesai confirmou à Amazônia Real que investiga a denúncia da venda de doses de vacina na UBSIs de Homoxi, Parafuri e Parima, mas negou que a unidade esteja sob controle dos garimpeiros. “O Polo Base de Homoxi é composto por uma Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI) que atua de maneira permanentemente com três profissionais: um enfermeiro, um técnico de enfermagem e um dentista. Eles cumprem a escala de 30 x 30 dias na localidade realizando atendimentos e visitas domiciliares”. O Ministério Público Federal em Roraima também investiga a denúncia de troca de vacina por ouro na Terra Indígena (TI) Yanomami.

 

Situação caótica

 

“Quando cheguei em Homoxi tinham indígenas Yanomami chorando bastante, abalados com o acidente que aconteceu. E perguntavam por que aconteceu isso, queriam entender. Eu pensei que só tinham 10 garimpeiros, mas acho que são 500, 1 mil garimpeiros trabalhando. É uma situação caótica e de vulnerabilidade total, o garimpo que engoliu as malocas vai derrubar a própria UBSI qualquer dia desses, porque está chegando muito perto”, acrescentou Hekurari.

 

Garimpo na região do Homoxi na Terra Indígena Yanomami (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

 

Localizada na fronteira com a Venezuela, a região de Homoxi é distinta de Palimiu, onde vem ocorrendo uma série de ataques armados a outras comunidades afetadas pelo garimpo no rio Uraricoera, e de Parafuri, onde também há relatos de uma crescente invasão de garimpeiros.

 

Em março, o relatório “Cicatrizes na Floresta”, da Hutukara Associação Yanomami (HAY) e da Associação Wanasseduume Ye’kwana (Seduume), apontou a degradação do equivalente a 500 campos de futebol (2.400 hectares) em toda a TI Yanomami (de 9, 6 milhões de hectares) no ano de 2020 e alertou para a situação em Homoxi, onde a degradação se intensificou a partir do segundo semestre.

 

Foi notada também “a aproximação incomum de algumas lavras e acampamentos de comunidades indígenas”, o que se repetia nas regiões vizinhas de Xitei e Kayanau. “Historicamente, o avizinhamento (do garimpo) fragiliza a saúde das famílias indígenas, gerando desestruturação econômica e conflitos violentos”, pontuou o relatório.

 

“A situação do Homoxi é extremamente precária. O garimpo está no posto de saúde, onde tem a pista. A terra está muito invadida, destruída”, disse Dário Yanomami, vice-presidente da HAY à Amazônia Real. “Lá é uma central, os aviões chegam quase 12 horas por dia, de manhã bem cedo, até às seis e meia, quando termina a circulação de pessoas, helicópteros, combustível, alimentação”, disse.

 

Quem vai pagar a vida do jovem atropelado? O governo? A União? Os próprios garimpeiros? O piloto que matou?”, perguntou Dário Yanomami. “Nós, Yanomami, somos humanos, nós somos pessoas iguais a vocês. Cidade é igual aldeia”.

 

As investigações

 

Procurada pela Amazônia Real, a Funai informou no último sábado (30) ainda não ter confirmação da morte do Yanomami em Homoxi. Nesta terça-feira (3), a reportagem voltou a procurar a Funai, mas não obteve mais retorno do órgão.

 

Indígenas sendo ouvidos pelas forças na Operação Omama (Foto: Funai)

 

A Funai informou apenas que, com Exército, PF, Ibama e Força Nacional, tem atuado em ações de fiscalização e combate a ilícitos na TI Yanomami, seja na desintrusão de garimpeiros, em apoio ao Exército no combate ao garimpo ilegal na calha do rio Mucajaí e Couto Magalhães e ao Dsei Yanomami nas aldeias Palimiu e Korekorema.

 

A Anac, responsável pelo setor de aviação civil, informou em nota que após tomar conhecimento sobre o acidente na imprensa “solicitou à Polícia Federal informações sobre a aeronave envolvida no ocorrido, bem como outras informações que possam identificar o piloto e operador responsável pela operação, para compor processo de investigação instaurado pela Agência”.

 

A PF em Roraima e a 1ª Brigada de Infantaria de Selva, também foram procurados pela Amazônia Real, mas ainda não se manifestaram sobre o caso.

 

Cicatrizes se abrindo

 

A aldeia Homoxi fica em área de fronteira com a Venezuela e é entrecortada pela nascente do rio Mucajaí, afluente do rio Branco, o maior curso d’água de Roraima. É o rio Mucajaí que teve parte do seu trajeto alterado por garimpeiros. Em abril, eles filmaram o resultado da ação e as imagens foram parar em redes sociais. “Esse aqui é o rio Mucajaí, olha a largura que nós deixamos ele. Foram três par de máquina [sic] para fazer o desvio de 130 metros”, orgulha-se o autor da filmagem. “Agora estamos trabalhando no leito do rio.”

 

Garimpo é visto próximo a malocas na região do Homoxi na Terra Indígena Yanomami. (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

 

No mesmo mês, em 9 de abril, a HAY realizou um sobrevoo sobre a região Homoxi, onde constatou intensa mineração ilegal, “estruturas grandiosas e gigantesco impacto da atividade”, conforme relatório divulgado em maio.

 

Naquele 9 de abril, a 1ª Brigada de Infantaria de Selva, a Polícia Federal e o Ibama atuavam na operação Verde Brasil 2. Os agentes em campo, no entanto, só acharam 30 pessoas e apreenderam sete motores em Homoxi, informou o próprio Exército. A mesma região já havia sido alvo de outra incursão de fiscalização recente da mesma operação (entre 5 e 14 de março) , mas cujos “resultados foram pífios”, segundo o relatório de maio da Hutukara.

 

“Assim como no Kayanau (outra região, acima de Homoxi), a pista comunitária e o posto de saúde de Homoxi encontram-se controlados pelo garimpo. No local, porém, o impacto do garimpo é ainda mais gritante. Na cabeceira da pista, o leito do Mucajaí tornou-se uma imensa cratera”, diz o relatório da Hutukara.

 

“O sobrevoo flagrou garimpeiros circulando próximos ao posto de saúde, dezenas de vasilhames de combustível e até barracões na ponta da pista comunitária.”

 

Infraestrutura garimpeira

 

O relatório da HAY diz que ainda “em novembro de 2020 lideranças da região enviaram um depoimento denunciando a invasão de Homoxi e Xitei pela atividade garimpeira, onde os invasores haviam se apropriado das pistas de pouso e da estrutura dos postos de saúde locais. O depoimento também aponta o aumento da infraestrutura nos núcleos de garimpo, que contam com maquinários, internet, lanchonetes, logística para suprimento de alimentos e combustível, e muitas armas de fogo”.

 

Operação Omama na Terra Indígena Yanomami (Foto: 1º BIS

 

Em 29 de junho, cinco dias depois da publicação da série Ouro do Sangue Yanomami, da Amazônia Real em parceria com a Repórter Brasil, que mostra como ocorre a extração ilegal do minério em Roraima, o governo reagiu. Uma força-tarefa com Polícia Federal, Funai, Exército, Ibama, Força Nacional e ICMbio deflagrou a operação Omama para cumprir a desintrusão (retirada) dos garimpeiros da Terra Yanomami, cuja realização já havia sido determinada um mês antes pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

 

A notícia sobre a realização da ação, inclusive, vazou para os garimpeiros antes mesmo de ela acontecer. Como mostrou a Amazônia Real, três dias antes da deflagração, garimpeiros já se organizavam via grupos de WhatsApp para se esconder na mata, além de proteger os equipamentos usados na mineração ilegal.

 

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