‘Projeto de mineração de Bolsonaro vai virar uma confusão’, diz memória-viva do garimpo no Brasil

Foto: Marizilda Cruppe | Amazônia Real

29 Junho 2021

 

O minerador José Altino Machado, que está há 54 dos seus 79 anos na atividade da mineração, conta com exclusividade sobre as invasões à Terra Indígena Yanomami, em Roraima.

O aviador e minerador José Altino Machado, hoje com 79 anos de idade, ficou conhecido no país como o responsável pelas três maiores invasões de garimpeiros nas regiões de Xitei e Surucucu na Terra Indígena Yanomami nos anos 1970, 1980 e 1990, em Roraima. Com mais de meia década de atuação no ramo da mineração de cassiterita (estanho), em 1978 ele fundou a União Sindical dos Garimpeiros da Amazônia Legal (Usagal). Chegou a comandar mais de 350 mil homens em vários garimpos abertos na região amazônica.

 

José Altino entre indígenas Munduruku que apoiam o garimpo; sem papas na língua, ele faz críticas desde à atuação da Vale no território Yanomami até intervenções do governo que interferiram no garimpo (Foto: Acervo pessoal | Repórter Brasil)

 

Mineiro de Governador Valadares, Altino, como é mais conhecido, chegou a possuir uma frota de mais de 410 aviões e até hoje toca garimpos no rio Tapajós, no Pará. De fala mansa e sem papas na língua, ele conta nesta entrevista exclusiva à Amazônia Real como o Exército incentivou os garimpos no período da Ditadura Militar. Também foi apoiado em Roraima por políticos como o ex-presidente da República José Sarney e o ex-senador Romero Jucá, ambos do MDB.

O minerador goza de proximidade com o vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, presidente do Conselho Nacional da Amazônia Legal. Mas discorda do Projeto de Lei do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), pois em sua opinião só beneficiará as multinacionais. “Esse projeto do Bolsonaro vai virar uma confusão. Para começar, não fala de garimpagem das áreas indígenas. Fala de mineradoras, empresas multinacionais. Isso não é garimpagem”, contesta ele na entrevista abaixo.

Sobre o atual problema da atividade ilegal em terras indígenas, com escalada da violência, proximidade com o PCC (Primeiro Comando da Capital) e aumento da destruição ambiental, Altino não vê muita solução. “Pode até tirar [os garimpeiros], mas daqui 6 ou 7 meses volta todo mundo”.

 

José Altino O minerador é próximo do vice-presidente da República, general Hamilton Mourão; na foto, os dois conversam durante reunião na Câmara dos Deputados com a presença de Dirceu Frederico dos Santos Sobrinho, Presidente da Associação Nacional do Ouro, a ANORO (Foto: Romério Cunha | VPR)

A entrevista é de Kátia Brasil, publicada por Repórter Brasil, 24-06-2001.

 

Eis a entrevista.

 

As jazidas de minérios em Roraima foram descobertas entre 1975 e 1977, durante a Ditadura Militar, pelo Projeto Radam (Radar da Amazônia), do Ministério das Minas e Energia. Foi por isso que o senhor foi para Roraima?

Na década de 1960 fui vereador em Governador Valadares (MG), minha cidade, e onde fui também maior produtor de leite no Brasil à época. No princípio da década de 1970, fui também o maior produtor de milho do leste mineiro. No ano de 1967, fiz andanças pelos garimpos do Jari (AP). Em outubro de 1977, perdi uma filha de dois anos na piscina de casa. Aí abracei de vez a Amazônia e sua gente!

Como foi a primeira corrida do ouro neste período?

Entre 1977 e 78. Chegamos lá [na Terra Indígena Yanomami]. Tinha muita gente [garimpeiros], mais de 8 mil em torno daquela pista Surucucu, que nós abrimos. A avaliação da jazida era algo para mais de 6 ou 7 bilhões de dólares. As outras, lá no fundo da fronteira, atingem 10 bilhões. Lá em cima [em Surucucu] não existiam índios. Eles estavam nos altos da serra [do Parima]. Com a chegada do garimpo, uma vez ou outra, eles subiam, então nós servimos na época como atração para eles se abastecerem. Até que o governador Ramos Pereira [coronel do Exército Fernando Ramos Pereira] chamou todo mundo e falou: ‘Olha, está meio bagunçado o garimpo’. O governador disse para que todos nós saíssemos da região para poder organizar. Nós construímos a pista de pouso de aeronaves e ficamos todos lá. Voaram [garimpeiros] de Rondônia. Nós trabalhamos de forma organizada. Após a abertura do garimpo na Terra Yanomami, o Exército instalou um posto em Surucucu. Foi aquela coisa toda para usar uma pista que era de garimpeiros. Depois, o governo colocou lá a Companhia Vale do Rio Doce.

Os garimpeiros foram retirados da terra indígena pela Polícia Federal?

O governador Ramos Pereira iniciou a intervenção estatal. Quando fechou o garimpo, ele colocou lá o serviço de saúde e um posto da Funai, que serviu de atração para os indígenas de Surucucu. Aí é um dos crimes que acontecem no país, que é quando você pega o direito indígena, que já existe, e joga em cima de uma jazida tão rica como aquela.

Como a Vale do Rio Doce entrou na Terra Indígena Yanomami?

Foi durante o governo do general João Figueiredo (1979-1985). No dia 24 de agosto de 1984, a Vale entregou um relatório devolvendo os direitos privados da área e dizendo que em Roraima nada tinha de economicamente viável para ser explorada. No dia 26 entra na área o filho do presidente [Eliezer Batista] da Vale do Rio Doce, o Eike Batista. Esse foi o problema que nós ficamos muito chateados [com os militares]. Aí eu falei: ‘Assim não, a área lá é nossa. Nós construímos a pista e descobrimos a jazida’ e fechou. Agora pegar ela [a jazida] e dizer que não tem nada na área, uma das mais ricas do mundo. Depois o grande invasor sou eu? Vale, Funai e Exército nada gastaram para se apossar de tudo [dos garimpeiros], e os grandes invasores somos nós? Eita Brasil!

O senhor participou do movimento contra a chamada “internacionalização” de Roraima, apoiada pela União Democrática Ruralista (UDR). Por volta de 1985, durante o governo de José Sarney, aconteceu a segunda corrida do ouro na Terra Yanomami. Como foi essa ação?

Entramos em Surucucu pelo rio Uatatas ou Parima, a 3 km da fronteira [com a Venezuela]. Na entrada [do território Yanomami] eram só com 70 homens. A visão que eu tinha era que só estávamos retornando para uma área de trabalho nossa. Depois, chegamos a 620 [pessoas].

Nesta época houve uma repercussão muita grande e a Organização dos  Estados Americanos (OEA) chegou a demandar as autoridades brasileiras sobre a necessidade de se criar um Parque Yanomami. O senhor foi preso em flagrante pela Polícia Federal pela invasão do território.

Mesmo preso, não parei com os planos de explorar o garimpo em Surucucu. Na capela da penitenciária, onde eu estava preso, iniciamos as reuniões para a criação da Associação dos Faiscadores e Garimpeiros do Território Federal de Roraima, que foi a semente da Usagal [União Sindical dos Garimpeiros da Amazônia Legal].

 

Garimpo na região do Homoxi, na TI Yanomami, uma das exploradas por Altino; ele conta que ghegou a comandar mais de 350 mil homens em vários garimpos abertos na região amazônica. (Foto: Bruno Kelly | Amazônia Real)

 

O senhor voltou pela terceira vez ao garimpo em Surucucu?

Sim. Em 16 de fevereiro de 1989, o Sarney baixou os decretos nº 97.512 e nº 97.530, que reduziram a área total do território Yanomami a 2,4 milhões de hectares, compreendendo 19 áreas descontínuas ou “ilhas”. No ano seguinte, ele criou duas reservas garimpeiras: a Floresta Nacional de Roraima e a Uraricoera e Catrimani-Couto Magalhães. O garimpo explodiu! Com entrada e saída [do garimpo], nós atingimos 40 mil [pessoas]; era muita rotatividade. Presencialmente, o número de garimpeiros era nivelado em 26 mil homens. Nós tínhamos de 410 aviões [no hangar do aeroporto] e mil homens neste serviço em Boa Vista, além 154 pistas de aviação em lugares diferentes. Também tínhamos balsas nos rios e garimpos manuais fora das pistas.

Mas o Sarney deixou o governo e o então presidente Fernando Collor de Mello derrubou os decretos. A Constituição Federal de 1988 também proíbe a extração de minérios em terras indígenas. O que o senhor tem a dizer sobre essa proibição?

O comércio do ouro não é ilegal. A Constituição de 1988 criou nova sistemática de tributação para o ouro em estado natural ou industrializado: ‘ouro mercadoria’. Roraima é o único lugar no mundo que a cassiterita está associada ao ouro. O ouro que sai com a cassiterita paga toda a operação de exploração, vem praticamente de graça. Naquela época, a cassiterita com o estanho valia 1.600 dólares.

Mas o presidente Collor fechou o garimpo e iniciou a demarcação da terra indígena, como foi isso?

No dia 18 de março [1990], o Collor vestiu uma farda de general e foi para as bandas de Roraima. Ele chamou a imprensa do mundo para dizer que ia proteger os índios e criou a lei que fechou os garimpos, não se importando se existiam direitos anteriores e isso trouxe essa bagunça. Isso causou uma confusão sem precedentes porque a nossa atividade, ela não depende do poder do Estado para ser exercida. Nunca dependeu de grande capital, não depende de ter diploma. Ela praticamente democratiza a expansão da atividade. Os homens mais ricos que eu conheço do garimpo não têm nem conta em banco. Nós não temos tempo de colheita, plantio, nós tiramos o material e já está na mão. É uma atividade que reina soberana sobre qualquer determinação que há em confronto. Por isso que Roraima vive na miséria.

As operações de retirada dos garimpeiros continuaram no decorrer dos anos 1990. Entre os meses de junho e julho de 1993, aconteceram na aldeia Haximu – no alto Orinoco, na Venezuela – uma série de conflitos com garimpeiros. Na sequência de ataques, os garimpeiros mataram, a tiros e terçados, 16 yanomami. Foi o primeiro caso no Brasil a ser julgado como crime de genocídio. Cinco garimpeiros foram condenados. Qual é a sua versão desse fato que completa 28 anos este ano?

Fiquei sabendo [dos conflitos]. Eles [os garimpeiros] vieram, me contaram, eu falei com eles: ‘não revide, não procure, não vai, não aceite o revide!’. Eles foram e se armaram: foram para lá. Quando os índios vieram outra vez, aí deu a briga. Isso aconteceu do lado venezuelano. Eu me afastei [da Terra Indígena Yanomami], porque sou refratário a certos assuntos, mas o comportamento de um, dois, três, quatro homens influencia dessa maneira para botar na rua.

O senhor se arrependeu de minerar em uma área indígena, em razão dos danos socioambientais à floresta e os conflitos com mortes?

Por que haveria de me arrepender? Minha defesa e discurso podem ser mais feios ou menos utópicos que de outras facções políticas ou religiosas, mas são a pura realidade. Se é um pesadelo para alguns, é sustento para muitos. Além do mais, esses hoje tão indefesos Yanomami, no passado nem tão longínquo, tinham expectativa de vida em média de 32, 34 anos. É irresponsável a defesa cuja pregação era deixá-los como estavam. Na verdade, era um ‘oficial e irresponsável abandono’. Assim, sempre será fácil cuidar de qualquer sociedade. No Brasil tudo se faz e julga pelo ouvido, nunca pelo conhecimento e/ou cultura.

 

Em imagem dos anos 90, piloto de helicóptero da Força Aérea Brasileira (FAB) remove – da maloca do Homoxi, para o posto médico de Surucucus – vítima da invasão garimpeira na TI Yanomami (Foto: Charles Vicent | ISA)

O senhor disse que deixou a Terra Indígena Yanomami, mas não saiu do negócio da mineração, tanto que está no Tapajós…

Eu não tenho negócios e nem comando nenhum [garimpo]. Embora tenha áreas preservadas e respeitadas como sendo minhas, desde a década de 1980. Estão quietinhas lá [na terra Yanomami]. Eu estou aguardando a legitimação da proposta legal para exploração de área indígena. Tenho a impressão de que se eu for para lá, vou prejudicar os companheiros.

O senhor está se referindo ao Projeto de Lei (PL) 191/2020, do presidente Jair Bolsonaro, que regulamenta a mineração em terras indígenas?

Esse projeto do Bolsonaro vai virar uma confusão. Para começar, não fala de garimpagem das áreas indígenas. Fala de mineradoras, empresas. Isso não é garimpagem. Há quatro décadas que os garimpeiros estão lá [nos Yanomami] com parceiros, sócios e cúmplices na ilegalidade. Munduruku tem 60 anos e está todo mundo junto trabalhando.  Kayapó tem 35 anos todo mundo junto. Todas essas comunidades indígenas já estão juntas com as comunidades ditas civilizadas, tem anos e anos. Aí você vai fazer uma lei infeliz, porque a sociedade já se arrumou no vazio e na omissão do governo e da administração do mundo, e isso nunca chega na imaginação do deputado paulista, do deputado do Paraná, do Rio de Janeiro, que acha que tem que ser assim.

Então o senhor não é próximo ao Bolsonaro, mas frequenta o gabinete do vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, presidente do Conselho Nacional da Amazônia Legal.

O general Mourão eu conheci como coronel chefiando a segunda seção do CMA [Comando Militar da Amazônia], em Manaus. Então, a Amazônia e os assuntos [amazônicos] têm um lugar muito especial no coração e na cabeça deles [dos militares]. Eles não são capazes de ir empurrando os povos como outros governantes fazem e fizeram, porque eles conhecem [os indígenas], para eles é difícil, [até para] o próprio Mourão. O Conselho tem uma atuação limitada, circunscrita a organizar propostas, e nada vai adiante por “vaidades humanas”.

No cenário político atual, o governo federal organiza uma nova retirada dos garimpeiros da Terra Yanomami, onde vários conflitos são registrados.

Passaram-se 28 anos [do massacre de Haximu] e nunca deixou de existir garimpo. O que aconteceu é que modernizou o tipo de trabalho. Antigamente, você usava mais aviões. Com isso [havia] a obrigação de construções de pistas. Nós chegamos e construímos 150 em dois meses. Naquela época, só usava avião e pouquíssimos helicópteros. Agora, Roraima está com 40 helicópteros; isso facilitou demais a atividade. Pode até tirar [os garimpeiros], mas daqui 6 ou 7 meses volta todo mundo.

 

Equipes da série Ouro do Sangue Yanomami

Amazônia Real: Kátia Brasil (editora-executiva); Eduardo Nunomura (editor de especiais); Alberto César Araújo (editor de fotografia), Elaíze Farias (editora de conteúdo); Maria Fernanda Ribeiro, Clara Britto e Alicia Lobato (repórteres); Bruno Kelly (fotografia do sobrevoo) e Paulo Dessana (fotógrafo); Lívia Lemos (mídias sociais); Maria Cecília Costa (assistente executiva); Giovanny Vera (mapa); César Nogueira (montagem); e Nelson Mota (desenvolvedor).

Repórter Brasil: Ana Magalhães (coordenadora de jornalismo); Mariana Della Barba (editora); Mayra Sartorato (editora de redes sociais); Piero Locatelli e Guilherme Henrique (repórteres); Joyce Cardoso (estagiária).

 

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