24 Julho 2021
Se o papa falar de um problema, basta acusá-lo de não ter falado de outro problema, e, quando ele falar deste, basta dizer que ele não falou do primeiro. Você pode repetir esse jogo infinitamente, com sucesso garantido.
O comentário é de Manuel Belli, padre italiano e professor de Teologia Sacramental no Seminário de Bérgamo, na Itália, além de formador da comunidade do seminário. O artigo foi publicado em sua página pessoal no Facebook, 22-07-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Instruções práticas para um post perfeito que possa lhe conceder uma satisfação em insultar o papa:
1) A situação é particularmente propícia. Em primeiro lugar, existem dois papas. E, como se sabe, o melhor modo para atacar o “atual” é dizer que ele não é tão bom quanto o “ex”. Esse primeiro modo é infalível: ainda mais que as redes sociais têm uma memória muito curta, e ninguém vai lembrar que se fazia a mesma coisa com o ex. Quer um exemplo? Quando eu digo Williamson, isso lhe lembra de alguma coisa? Não? Justamente. Quando você vê, percebe que nem mesmo sobre o ex se diziam coisas boas sempre...
2) Quase todos os dogmas cristãos são um equilíbrio entre duas posições. É muito fácil atacar por esse lado, e você fará um bom papel. Tomemos um exemplo. Jesus é verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Mas nós não podemos falar de duas coisas ao mesmo tempo. Só podemos falar de uma coisa de cada vez. Assim, eis aí a armadilha perfeita: quando o papa fala de Jesus-homem, basta fazer um post onde você o acusa de não falar de Jesus-Deus, e, se ele fizer o contrário, aja em consequência. Mas devo lhe avisar: hoje gera muito mais sucesso atacar, porque o papa humaniza Jesus demais. Portanto, se você o acusar de uma “virada antropológica”, terá um sucesso enorme. Eu sei, eu sei: os papas anteriores eram elogiados precisamente por terem recepcionado a virada antropológica. E, sim, você também tem razão sobre o fato de que pareceria absurdo não falar de virada antropológica diante da encarnação. Mas fique tranquilo, eu já lhe disse. Aqui poucos entendem alguma coisa, e a memória é muito curta.
3) Felizmente, as pessoas só conseguem se ocupar de uma coisa de cada vez. Isso lhe oferecerá uma oportunidade de ouro para atacar com uma surpreendente facilidade: se o papa falar de um problema, basta acusá-lo de não ter falado de outro problema, e, quando ele falar deste, basta dizer que ele não falou do primeiro. Você pode repetir esse jogo infinitamente, com sucesso garantido.
4) Para qualquer evidência, sempre haverá pelo menos um professor dos Estados Unidos que diz que é tudo um complô. Se o papa fala de qualquer problema, busque no Google ou em algum blog. Para identificar os blogs para fazer a sua pesquisa, você também pode escrever “missa de sempre”, “ajudemo-los na casa deles” [em referência aos migrantes], “natureza imutável”, e outras frases insensatas desse tipo; tudo faz parte do pacote. Você sempre encontrará um graduado que dirá que não é verdade, que falará de algumas coisas que ninguém entende, e o jogo está feito. Para dar lhe alguns exemplos: se você está falando de emergência migratória, certamente encontrará um economista que diz que isso não é verdade; se você está falando de crise ambiental, como não encontrar 200 graduados que dizem que o que Greta Thumberg diz é tudo bobagem? Queremos refletir sobre a crise da saúde? Como não encontrar um purpurado, uma emissora de rádio e um ex-vaticanista que, por sua vez, encontram 100 médicos (que meu pai comprou no mercado) que dizem que se trata de uma ficção, e os poderes fortes, e a nova ordem mundial, e satanás etc. e etc.?
5) Os fariseus do Evangelho são excelentes para oferecer argumentos para você. Porque eles são muito bons em incitar as 99 ovelhas que acreditam que são justas e que não aceitam que Jesus vá ao encontro de outros. Aconselho que você não se dirija a pecadores que se sentem perdoados: infelizmente, eles ficam irremediavelmente contentes quando o papa se dirige aos últimos, e são irrecuperáveis. Você tem que atacar de frente aqueles que presumem ser justos. Você verá, será muito fácil: se o papa se atreve a ir ao encontro de outros que não eles, basta que você o acuse de destruir a identidade cristã (que eles fazem coincidir com as suas próprias posições), e o jogo está feito. Você vai acender todo o ressentimento deles. E fique tranquilo, os outros entenderão o seu joguinho, mas eles estarão muito reconciliados para começar a contar histórias.
6) Padres ricos e padres pedófilos são dois “ever green”. Se você conseguir mostrar que o papa, no fim das contas, também é rico e conivente, está feito. Como? Você acha que é realmente impossível? Fique tranquilo! Cite fatos aleatórios e seja genérico. Ninguém vai verificar, e basta que você insinue a dúvida.
7) Os amantes de rendas e ornamentos são uma categoria antropológica que nunca sai de moda. Com este papa, é brincadeira de criança acusá-lo de não respeitar a tradição. Além disso, foi publicado um motu proprio que se atreve a dizer que a tradição está viva, o que mais você quer? O quê? Você acha absurdo defender que a tradição de sempre da Igreja é praticamente Trento e pouco mais, ignorando como Trento foi inovador? Sim, não se preocupe: eles nem sequer leram todos os documentos tridentinos!
8) O que você disse? Que, se estes conselhos funcionam, parece-lhe impossível pensar que alguém possa atacar o papa de boa-fé? Você acha que quem faz isso abriu concessões um pouco embaraçosas em relação à fé? Ui, nunca tinha pensado nisso...
9) Se alguém escrever um post como este, o que você deve fazer? Ora, justamente o básico! Basta acusá-lo de ser um “radical chic metido a professor”, e pronto! O que isso significa? Mas o que isso importa?!
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