O equívoco da lei. Artigo de Luca Bagetto

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15 Abril 2021

 

Em seu blog Come Se Non, 14-04-2021, o teólogo italiano Andrea Grillo escreve que, assim que leu o texto de Massimo Recalcati no jornal La Repubblica, no dia 3 de abril, e a discussão que se seguiu, logo pensou: “Luca Bagetto, autor do livro 'San Paolo. La interruzione della legge' [São Paulo. A interrupção da lei, em tradução livre] (Ed. Feltrinelli), que é singularmente pertinente à questão que surgiu, poderia dizer coisas muito belas sobre isso. Perguntei-lhe se ele queria escrever um comentário, e eis o seu texto, uma longa meditação sobre como pode ser rica a concepção da Lei também na recepção cristã”.

Segundo Grillo, trata-se de “uma contribuição valiosa e iluminadora. Agradeço-lhe por isso e espero que ajude a compreender melhor o que está em jogo na releitura da Páscoa e da vida cristã que a referência à Lei implica”.

Luca Bagetto é filósofo e professor da Universidade de Pavia e do Instituto de Pesquisa de Psicanálise Aplicada (IRPA), em Milão, na Itália.

A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

O equívoco da lei

por Luca Bagetto

 

Se estamos um pouco familiarizados com a obra de Recalcati, podemos entender que a polêmica em torno da sua evocação da Lei vetero-testamentária é substancialmente um equívoco – mesmo que seja urgente investigar como ele pôde surgir. Não se trata de uma contraposição entre o sincero coração evangélico e a árida Lei do Antigo Pacto. A Lei não é reduzida àquela hipocrisia ritualística que, na tradição cristã, chamamos de “farisaica” – e que muitas vezes ainda é sempre entendida como judaica tout-court, segundo ênfases que sustentaram a tradição antissemita.

Em vez disso, naquele artigo sobre a Páscoa cristã, é denunciada a interpretação moralista da Lei tanto no judaísmo quanto no cristianismo.

Recalcati, na sua teoria da psicanálise, sustenta uma posição não moralista da Lei: ele sublinha a efetividade dos condicionamentos que nos limitam, isto é, dos sinais que nos escrevem e determinam aquilo que somos, definindo o gozo singular de cada indivíduo.

Trata-se de uma Lei que coloca um limite de situação, e não de comando, à relação imediata, de pleno gozo, com as coisas. A Lei é aquele recinto simbólico do ordenamento efetivo que está ligado ao nome do Pai, tanto na tradição grega, edípica, quanto na tradição bíblica, mosaica.

Recalcati sustenta essa posição mosaica contra outras interpretações do pensamento de Lacan, que veem na Lei apenas um dispositivo disciplinar e uma obsessão pelo negativo, e se dirigem rumo a um pensamento afirmativo do gozo: sem representante, sem mediações, sem barreiras da Lei.

Por um lado, Recalcati se dedicou a mostrar que a negação do representante e da mediação tende a preparar novos senhores – também no campo político. Por outro lado, empenhou-se na busca de uma Lei que não seja puramente disciplinar, mas que se torne uma forma convincente, uma lei do desejo, uma plenitude que surge de um Não, em vez de uma privação que surge de um fantasma de plenitude.

É precisamente no relato bíblico que essa Lei convincente é buscada. É uma Lei do chamado, que permite a abertura, no recinto simbólico, de uma brecha que abra espaço à singularidade sempre excepcional em relação à norma.

Recalcati se interessa por uma leitura de São Paulo que não oponha Lei e Evangelho, mas que proponha um Messias narrado pela Lei. O Messias é uma irrupção singular, excepcional, que abre, sim, uma falha na Lei, mas que, no entanto, não a anula. A exceção pertence à Lei – o transgressor não é a negação do fundador: o amor singular, sempre excepcional e exclusivo, pelo povo eleito e por cada indivíduo, não está em oposição à constituição de um povo novo, como Moisés e Paulo o fundaram, atravessando uma história de ciúme e de infidelidade.

Por que surgiu esse mal-entendido em torno das supostas ênfases antissemitas na celebração pascal de Recalcati?

Um primeiro motivo está no fato de que “lei” se diz de vários modos. Como adverte Jacob Taubes, já em Paulo, nómos significa às vezes a Torá, outras vezes a lei universal, ou a lei natural, ou todas essas coisas juntas. A abstração em relação ao particular concreto, a força uniformizadora, o ciclo repetitivo e “regular” da natureza como Grande Mãe, se sobrepõem aos traços de uma revelação amorosa.

Por isso, quando Recalcati escreve sobre a gravidade da Lei, em vez de entendê-la retamente, como o risco de uma interpretação moralista da Lei, ela pode ser mal-entendida como a essência prescritiva da halakhah, que é também aquela fidelidade nos pequenos gestos cotidianos que preparam o caminho para Aquele que vem.

Um segundo motivo é mais complexo e deve ser encontrado na interpretação do Deuteronômio como aquilo que sanciona, no judaísmo, a identidade de fé e religião – onde o cristianismo seria a religião da saída da religião, como gostaria Marcel Gauchet. É aqui que a questão do moralismo se complica.

É nesse ponto que se joga toda a questão que atravessou o século XX, como viu Andrea Grillo. Diante da normalização “burguesa” do respeito pelas normas, isto é, diante do perigo de uma sociedade totalmente administrada, a Kierkegaard Renaissance do início do século passado já tinha apresentado a reivindicação da interrupção do sistema, isto é, da derrubada da tese neokantiana de que só é cognoscível aquilo que é normal e, por assim dizer, ritualizado em categorias.

A religião, então, era o sistema – a fé era a sua contestação, isto é, o corte vertical operado pelo Totalmente Outro. A ênfase no Totalmente Outro chegava, nas declinações políticas, à extremização gnóstica que contrapunha o Deus redentor do mundo futuro ao Deus criador dos ordenamentos deste mundo injusto e malvado. Quando o Messias chega, quando a sua graça irrompe, não é mais necessário obedecer à Lei – é suficiente aderir a Ele.

A religião, como queria Karl Barth, é o conjunto das práticas que construímos em vão a partir de baixo para alcançar a unidade com a Origem, por meio do cumprimento de preceitos infinitos. A fé, por sua vez, é a abertura a uma palavra vertical, de graça, que doa a salvação sem garantias.

Para a minha geração, foi uma palavra justamente decisiva. Mas, para mim em particular, não por meio de Barth, mas por meio de Bonhoeffer. Lá, encontrava-se uma salutar emancipação, mediante o abandono de um Deus tapa-buracos, dos aspectos neuróticos de uma fé entendida como contínua compensação das faltas.

Mas Bonhoeffer, ao contrário de Barth, não repetia simplesmente a contraposição entre a continuidade das obras e a descontinuidade da graça: em vez disso, ele unia em si as duas almas da teologia da graça e da teologia liberal. O Homem Novo nunca perdia o seu contato com o Homem Velho e com a sua situação efetiva, e a verticalidade do chamado pedia para ser interpretada segundo o lugar e o tempo, ou seja, para ser estendida ao longo de um eixo horizontal.

Esse tema nietzschiano da fidelidade à terra era conjugado em Bonhoeffer com ênfases vetero-testamentários. Caso contrário, escrevia ele, cai-se novamente, como Barth, em uma espécie de positivismo da revelação vertical: uma irrupção que se recusa à prova da continuidade – é pegar ou largar! – e à bênção das dimensões penúltimas dos habitus terrenos.

Essa distensão na continuidade ainda é o espaço da instituição, da lei, da repetição que constrói lentamente o universal. Mas é uma repetição que, como a das práticas rituais cotidianas do Antigo Pacto, foi vacinada pelo vírus da normalização e não olha para trás, para a reconfortante indução mnésica em relação à ordem, mas para a frente, para um incerta promessa de graça.

É um caminho antignóstico, que mostra que o nosso amor pelo mundo, com os seus habitus, deve ser até superior ao nosso desejo, já grandíssimo, de mudá-lo.

A retórica do Totalmente Outro também guia o seu aparente oposto, ou seja, a ideia de que a encarnação desmente toda verticalidade hierárquica institucional. Mas, por esse caminho, a conquista da continuidade é apenas aparente. A fé se torna o Totalmente Outro da instituição. O chamado, portanto, não consegue pensar a instituição na sua substancialidade, assim como não consegue compreender a halakhah. Domina, então, a ideia de que o instituído, que ocupa um espaço na forma do precipitado de uma ação, é o elemento heterônomo e, portanto, mortífero em relação ao vital, que escoa e não insiste em nada.

Na produção intensificada do vital, está aparentemente a promessa de satisfazer as necessidades de todos, cortando a cabeça das instituições do poder e do controle, como no fluxo horizontal do código algorítmico das criptomoedas, que dispensam Estados e Bancos Centrais.

A constituição concreta de uma instituição, que ocupa um espaço, é reduzida a uma mera posição disciplinar de uma regra abstrata, que deve ser repudiada em nome da força vital horizontal. A posição da regra abstrata aconteceria precisamente com o fim da concreta constituição de Israel, com a destruição do Templo em 587 e com a morte do rei Zedequias: ela teria transformado o Messias, que devia pertencer à dinastia dos Reis, em uma figura de expectativa. E o que articula essa expectativa seria um ritualismo sacerdotal abstrato, embora sempre com o risco da hipocrisia e sempre fustigado pela força dos profetas, que ensinaram a desconfiar da forma do poder.

Assim, a lei desliza para a identificação com aquele poder que se tornou responsável pelo exílio, seja ativamente, pela sede de domínio de Nabucodonosor, seja passivamente, pela incapacidade e corrupção dos governantes de Israel.

O conceito de nómos posterior ao exílio teria se reduzido, aos olhos de todos os cultores do Homem Novo, a um normativismo disciplinar da regulação deuteronômica infinita. E, pouco a pouco, essa leitura vai fazendo corresponder os poderes deste mundo ao sufocamento do profetismo, na convergência de Pilatos e do Sinédrio, como matriz de todos os conspiracionismos futuros.

O anti-institucionalismo, para equilibrar o universal e o particular, não encontra outro meio senão a suspeita e o chamado moral em juízo penal; precisamente porque, em vez de encontrar o direito na força de unidade de uma organização social, busca continuamente um culpado pela cisão entre o individual e o universal, segundo a essência de todo moralismo. A lei que nos constitui tornou-se a lei penal que nos purifica.

Recalcati está elaborando uma teoria da instituição que faça cair a equação vitalista entre a forma da lei e a constrição puramente disciplinar. No entanto, não é simples contornar os equívocos gerados por essas proveniências estratificadas. O risco de todo vitalismo é de ver regras opressivas por toda a parte e de se opor a elas, como escreve Andrea Grillo, reduzindo a Lei ao desejo, em uma espécie de autorreferencialidade, em uma camuflagem, na obediência ao Outro, de uma obediência a si mesmo.

Bonhoeffer não demonizou o peso da ocupação institucional do espaço por parte do poder. Nos passos de Paulo, em vez disso, ele mostrou na instituição algo que interrompe a tomada de posse e que às vezes é a luz fraca de um pavio fumegante, mas, por isso, não pertence à autenticidade do coração que se opõe à malvada instituição.

Esse espontaneísmo da autenticidade tem algo de edificante, mas é justamente uma nova construção a partir de baixo, que acaba na moralização dos conflitos e na impossibilidade de limitá-los com a instituição jurídica. Em vez disso, é preciso enfatizar que a luta contra o poder também é um ato institucional, assim como a fé é um ato público que não ignora a possibilidade institucional de um conflito com um inimigo.

A graça está inscrita na Lei, a transgressão está na fundação. Pensar a instituição significa manter juntas a continuidade da representação ordenada e a descontinuidade da irrupção do evento – seja ele de crise ou de salvação.

O fecundo equívoco da Lei consiste na centralidade, nela, dos testemunhos da irregularidade, isto é, daquela interrupção da normalidade que é messiânica e não coincide com a retórica anti-institucional e com a subversão indeterminada. A ilegalidade movimentista leva apenas à exploração política e moral da legalidade, que conhecemos nos sistemas totalitários.

 

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