29 Janeiro 2021
"Por ocasião do Dia da Memória, o alarme levantado por muitas e muitos expoentes do Judaísmo denuncia uma escalada muito perigosa de episódios de agressão antissemita. Assumimos esses apelos e juntos recomendamos não separar esses eventos do aumento de episódios de uma cultura do estupro que se estende a quase todos os continentes. A frente contra o ódio deve ser solidificada e intensificada", escreve Paola Cavallari, membro da Coordenação das Teólogas Italianas, promotora do Observatório Inter-religioso da Violência contra a Mulher (Ovid), autora de Non sono la costola di nessuno. Letture sul peccato di Eva (em tradução livre: Eu não sou a costela de ninguém. Leituras sobre o pecado de Eva, Gabrielli Editori, 2020).
O artigo é publicado por Riforma, 27-01-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
O Observatório Inter-religioso sobre a Violência Contra as Mulheres (Oivd) e a Federação das Mulheres Evangélicas da Itália (Fdei), organizaram no dia 28 de janeiro, o encontro “Ouvindo Edith Bruck. Recordar para ‘deseducar o ódio’" (plataforma Zom - ID da reunião: 91501653465; Senha: 625109). A escritora e testemunha do Holocausto, Edith Bruck, oferecerá um testemunho com um olhar particular sobre a vivência feminina.
Por que Oivd e Fdei escolheram celebrar o Dia da Memória juntos? Paola Cavallari, presidente do Observatório Inter-religioso sobre a Violência contra a Mulher, vai nos explicar neste artigo.
O Dia da Memória contém muitos motivos para nos questionar. A eles respondemos: "Aqui estamos!" Os nossos objetivos convergem, de fato, com aqueles propostos por este Dia. Somos associações que visam construir uma civilidade na medida da dignidade feminina e humana, uma civilidade encarnada por subjetividades maduras que falam a linguagem da hospitalidade das diferenças; empenhamo-nos em promover uma cultura inclusiva de sexos/gêneros e de toda diferença étnica, religiosa, de classe, em vista de um novo humanismo não mais poluído por aqueles dualismos que atribuem ao homem o espaço público e à mulher o espaço privado. Por isso, sentimos a necessidade de reconhecer publicamente aquela instituição que é o Dia da Memória: e é um reconhecimento em sentido forte da palavra. Estar presentes ao apelo contra o ódio contido no Dia, e afirmar: “aquela tragédia nos diz respeito” porque pensamos que as raízes do ódio residem na cultura milenar do domínio masculino e colonização do feminino.
Foi escrito: "Depois de Auschwitz, é bárbaro escrever poesia.". Se o Holocausto, de fato, é um evento histórico trágico, assume também um valor meta-histórico: é o abismo da consciência coletiva, a consciência de cada mulher e homem que aspira a ser cidadão e cidadã, vivendo naquele civilidade que devemos contribuir para trazer ao mundo e nutrir de sentido.
Memória não é recordação pura e simples, mas é atualizar, reviver em primeira pessoa, porque o evento do passado é um evento da minha vida pessoal, como nos ensinou a tradição judaica, que ao transmitir nas gerações, fez um marco na sua história como povo. A narrativa do Seder de Pessach é seu emblema.
Da literatura do Holocausto, aprendemos o quanto a operação de Construção da Memória do extermínio tenha a ver com o impronunciável, de um lado, e o inadmissível, de outro.
Impronunciável porque para verbalizar era preciso atravessar o deserto daquele mal extremo. Operação exaustiva e excruciante no mais alto grau. Demorou tempo, muito tempo, nos confessaram os/as sobreviventes, para que pudesse germinar de forma completa o conatus para falar, que durante anos batia as asas como uma alma despedaçada e dilacerada.
Inadmissível porque o mundo não queria acreditar nem no genocídio perpetrado por seres humanos para aniquilar outros seres humanos, nem nas formas como a racionalidade e a tecnologia haviam se concretizado a serviço do ódio. Não se sabia como ouvir os sobreviventes e as sobreviventes, não se acreditava neles, nenhuma empatia, não se soube nem se quis reconhecer as próprias responsabilidades, cada um apresentando as próprias justificações: com Adolf Eichmann aprendemos quanto as ordens de superiores fossem cumpridas como "razões" mais do que válidas para os perpetradores do genocídio.
As vítimas saíram dos campos de extermínio, mas os arames farpados permaneceram por muito tempo. E mesmo agora existem aqueles que negam, que até aumentaram em número. Assim como se registra uma escalada vertiginosa de episódios de ódio antissemita. Mas, novamente, vamos voltar à pergunta: por que associações como OIVD e FDEI, associações que se movem no horizonte da dignidade feminina, da justiça entre os sexos/gêneros, optaram por aderir à celebração do Dia da Memória? Isso nos leva a pensar além do perímetro do evento histórico, o Holocausto.
Ao longo da história - e ainda hoje - a violência, o assédio, as injúrias, as injustiças, de formas muito diversificadas, atingiram e ainda atingem judeus e mulheres. E os preconceitos foram os instigadores. Ao focar nestes últimos, não são poucos os que têm em comum. Vou me referir ao mito do Gênesis e aos que, de Eva em diante, foram os paradigmas dominantes do feminino na cultura androcêntrica. Eva era desleal, traiçoeira, carnal, ela era o emblema de uma natureza obscura, ambígua, evasiva, obstinada em conluio com o mal; ao tentá-lo, ela operou pela aniquilação do "homem", a quem ela era "geneticamente inferior". Não são "estereótipos" que também marcam o judeu? Tanto dos judeus como das mulheres - dizem - é preciso desconfiar, estar em guarda, se defender. Emblemas da história do antissemitismo, como os Protocolos dos Sábios de Sion ou as publicações de La difesa della razza, andam de mãos dadas com textos misóginos como Sexo e caráter de Otto Weiniger ou Metafisica del sesso de J. Evola - para ficar na primeira metade do século 20.
As águas do antissemitismo e do sexismo correm paralelas e se misturam. É necessário desenvolver criticamente as conexões profundas e compreender a interdependência entre elas. Eles formaram a base para uma ideologia que exalta a pureza do homem (heterossexual, de "raça" branca): aquela do Terceiro Reich; uma ideologia misógina, racial, de casta e supremacia viril que, em nome do ideal eugênico, incluiu no extermínio as pessoas afeitas por déficits (mentais ou físicos). Em seu "Modernidade e holocausto" Bauman, teve a intuição de associar a violência antijudaica com a perseguição das chamadas bruxas nos séculos XVI e XVII. A ferocidade desumana une esses genocídios, escreveu ele.
Justamente na edição de Riforma de 28 de dezembro de 2020, foi divulgada a notícia de uma diocese católica da Baviera que teria pedido desculpas "pela feroz caça às bruxas" realizada "na Alemanha entre os séculos XV e XVIII". É um fato relevante, que penso tenha tido pouco eco: perceber o seu valor intrínseco – no plano da mística política - e ampliar a sua difusão seriam os primeiros passos no caminho do reconhecimento dos crimes que as igrejas e as autoridades civis cometeram naquela época; seria um primeiro passo para a ressignificação de um massacre que foi atroz não só pela morte impiedosa das vítimas, mas também pelas torturas prolongadas a que foram submetidas; ler e aprender sobre o sadismo sexual de tais torturas é perturbador. Da mesma forma, seria necessário destacar que foi um genocídio sexual, cometido por homens contra mulheres: por serem juízes, carcereiros, legisladores, confessores, torturadores, etc. eram todos homens, enquanto as acusadas e as vítimas mulheres de 80 a 90%. [1] As observações de Stefano Levi della Torre também são esclarecedoras. Em seu Giudeofobia e misoginia (In Mosaico, Rosemberg & Sellier 1994), ele desenvolve uma análise profunda da ligação entre os dois fenômenos nomeados no título, que se unem sob a categoria do isomorfismo:
“Assim, a judeufobia e a misoginia imaginam respectivamente as mulheres e o judeu como dotado de poder singular. [...] O judeu e a mulher competem pelo recorde de mais poderoso elemento de desordem. [...] O misógino e o antissemita são perturbados nem tanto pela estranheza quanto pelo parentesco: a mulher tem parentesco com o homem; o judeu com os fundamentos bíblicos e cristãos da civilização europeia. A mulher é uma alteridade irredutível, mas ao mesmo tempo imprescindível: [...] ela deve ser reduzida a função do homem, subordinada, ‘guetizada’. Assim também é o judeu para a civilização cristã ou de derivação cristã”.
Por ocasião do Dia da Memória, o alarme levantado por muitas e muitos expoentes do Judaísmo denuncia uma escalada muito perigosa de episódios de agressão antissemita. Assumimos esses apelos e juntos recomendamos não separar esses eventos do aumento de episódios de uma cultura do estupro que se estende a quase todos os continentes. A frente contra o ódio deve ser solidificada e intensificada. Bárbaros feminicídios, em sua maioria perpetrados com extremo sadismo no corpo da vítima, são executados com frequência alarmante, mas a indiferença é generalizada. Como foi o caso com os/as sobreviventes judeus, se deslegitima e não se acredita na vítima de estupro (que basicamente o procurou e, além disso, talvez havia consentido ...). Os chamados “crimes sexuais” são interpretados como desvinculados de um raciocínio sobre a civilidade, permanecem “privados” de sua dimensão política. Enquanto essa despotencialização simbólica e política for continuada, seremos reféns de agressões e guerras e fatigados/assediados pelo ódio. Mas o ódio não será a última palavra.
[1] De maio do ano passado uma iniciativa promovida por um pequeno grupo de mulheres ao qual pertenço deu início à campanha “Igreja nos peça desculpas”: o texto da iniciativa também menciona o genocídio cometido contra mulheres perseguidas como bruxas. A campanha está em andamento, ainda estamos coletando assinaturas, para subscrever, acesse aqui.
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As águas do antissemitismo e do sexismo correm paralelas e se misturam - Instituto Humanitas Unisinos - IHU