A reclassificação toxicológica dos agrotóxicos e os impactos do glifosato na saúde. Entrevista especial com Luiz Cláudio Meirelles

Foto: SABA - Divulgação

Por: João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin | 29 Novembro 2019

A reclassificação toxicológica dos agrotóxicos feita pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa em agosto deste ano, além de ter rebaixado a classificação toxicológica do glifosato, não reconhece o herbicida como uma substância carcinogênica, com alto potencial de causar câncer em humanos. De acordo com o agrônomo e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz Luiz Cláudio Meirelles, “recentemente o glifosato passou a ser classificado pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer - Iarc, que é vinculada à Organização Mundial da Saúde - OMS, na categoria 2A como um provável carcinógeno para humanos”. Segundo ele, a classificação da Iarc tem gerado polêmica, “porque as agências reguladoras, de forma geral, foram contrárias à posição”.

Apesar da disputa entre a Iarc e as agências reguladoras acerca do efeito cancerígeno do glifosato, Meirelles frisa que as pesquisas científicas provavelmente irão corroborar a decisão da Iarc. “Eu nunca vi a ciência voltar atrás na sua posição depois de levantar qualquer possibilidade de perigo em relação a um produto que demonstra ser carcinogênico ou que pode causar danos milionários”. O pesquisador lembra que quando o DDT, pesticida usado para combater os mosquitos vetores da malária e da dengue, “foi apontado como problemático à saúde humana e ao meio ambiente, várias correntes que defendiam o produto ou que o comercializavam, partiram para a ‘pancadaria’ para dizer ‘que não era bem assim’, mas o tempo mostrou os efeitos desse produto e nunca mais se voltou atrás”.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Luiz Cláudio Meirelles critica a reclassificação toxicológica dos agrotóxicos, menciona os riscos dessa decisão para a saúde humana e o meio ambiente, e comenta as pressões externas feitas aos órgãos reguladores. “Eu trabalhei na Anvisa e vi a pressão que se tem do setor regulado, que nunca vem sozinha, vem de várias formas: primeiro, desqualificavam tecnicamente o trabalho que desenvolvíamos enquanto órgão público, depois faziam uma pressão política via parlamentares, e se não conseguiam nem de um jeito nem de outro, recorriam à judicialização”. Ele diz ainda que decisões como a da Anvisa geram informações distorcidas sobre a situação dos agrotóxicos no país. “O que quero dizer é que essas medidas são muito ruins por conta do cenário. Pense num gestor ou legislador de um determinado município que tem de definir uma política de proteção maior e de redução do uso de agrotóxicos. Se ele for buscar as informações oficiais, ele vai entender que não existem alimentos contaminados, que os herbicidas não têm toxicidade alta e, consequentemente, vai questionar por que ele deveria fazer alguma coisa”, conclui.

Luiz Meirelles (Foto: Abrasco)

Luiz Cláudio Meirelles é graduado em Agronomia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRJ, com especialização em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana pelo Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz, e em Engenharia Sanitária e Ambiental pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, e é mestre em Ciências da Engenharia da Produção pela UFRJ. Atualmente, é pesquisador da Fiocruz e do Ministério Público do Trabalho.


Confira a entrevista.

IHU On-Line — Antes de mais nada, o que é o glifosato? Como é seu uso e quais os malefícios que causa ao ambiente?

Luiz Cláudio Meirelles — O glifosato é um agrotóxico que tem autorização para uso agrícola em jardinagem madura e, no caso de uso agrícola, ele é registrado pelo Ministério da Agricultura, mas precisa da autorização do Ibama e da Anvisa. Para uso na jardinagem madura, ele só precisa de autorização e registro na Anvisa.

IHU On-Line — O que é jardinagem madura?

Luiz Cláudio Meirelles — É aquela que se faz dentro do espaço privado, como em condomínios, casas, em suma, no ambiente doméstico. Quando eu estive na Anvisa, conseguimos proibir o uso do glifosato em ambientes públicos, como praças, ruas, parques, ou seja, o uso não agrícola do produto e, portanto, o glifosato não está mais autorizado nesses ambientes desde 2013. À época, divulgamos uma nota explicando quais as razões para a proibição do uso. Entre elas, destacamos que não há como isolar uma área dentro da cidade e, justamente por isso, as pessoas ficam expostas. Além disso, trata-se de um uso muito abrangente e as pessoas normalmente não têm informações sobre os perigos do produto.

Entre as possibilidades de uso não agrícola, o glifosato é autorizado para a limpeza de linhas de transmissão e linhas férreas, que são áreas onde não há população próxima. Apesar de o glifosato ter esses outros usos, ele é usado majoritariamente na agricultura, na soja e, principalmente, na soja transgênica. Desde que a soja transgênica foi aprovada, o uso desse herbicida explodiu no país; no período entre 2006 e 2009, o uso aumentou quase seis vezes.

IHU On-Line — Quais os riscos que o glifosato traz à saúde e ao meio ambiente?

Luiz Cláudio Meirelles — Com relação à saúde, do ponto de vista agudo, há vários relatos, entre eles, o de que o glifosato é um potente irritante ocular. Do ponto de vista agudo havia muitas indicações para classificá-lo como classe 1. Até 2012, antes de eu sair da Anvisa, pretendíamos inseri-lo nessa classificação. Recentemente, a reavaliação da Anvisa sobre o glifosato indicou que ele ficaria na classe 1, que é extremamente tóxica, por conta da irritação ocular, mas também há relatos de irritação dérmica. Então, o glifosato tem a característica de ser uma substância irritante, assim como outros elementos que estão na mistura do produto técnico dele.

Glifosato, um provável carcinógeno

Do ponto de vista crônico, recentemente, ele que não era considerado um produto que poderia causar câncer, passou a ser classificado pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer - Iarc [na sigla em inglês], que é vinculada à Organização Mundial da Saúde - OMS, na categoria 2A como um provável carcinógeno para humanos; ou seja, ele hoje é considerado carcinogênico. Segundo a legislação brasileira, inclusive, o glifosato teria que ser retirado do mercado — o Iarc fez essa afirmativa. Isso está numa discussão tremenda, com grande polêmica, porque as agências reguladoras, de forma geral, foram contrárias à posição da Iarc e têm dito que não verificaram essa carcinogenicidade atribuída a ele. Mas, quando eu falo disso, sempre lembro que a OMS e a Iarc, a qual é uma agência que avalia a questão do câncer e não outra coisa, não são agências reguladoras, não regulam produtos, diferentemente de outros órgãos, como a Comissão de Toxicologia da União Europeia ou da Anvisa no Brasil. E essa discussão influencia diretamente na questão do impacto econômico. Então, é bom que essas visões sejam separadas, porque a visão da Iarc é mais isenta. Apesar de as agências terem feito a contraposição, a Iarc não voltou atrás e manteve a posição em relação aos efeitos crônicos do produto. De qualquer maneira, vemos alguns países, principalmente na Europa, se encaminhando para a proibição do glifosato. Na Áustria, ele já foi proibido, a Alemanha está dizendo que vai tirá-lo de comercialização até 2023, e a França quer reduzi-lo em 2021. Então, tem todo um debate internacional de redução drástica do uso desse produto.

Nesse campo, é bom chamar a atenção: eu nunca vi a ciência voltar atrás na sua posição depois de levantar qualquer possibilidade de perigo em relação a um produto que demonstra ser carcinogênico ou que pode causar danos milionários. Quando se descobre um efeito de um produto que antes era classificado como não causador daquele efeito, tudo que é produzido em termos de conhecimento científico na sequência é para comprovar ainda mais o efeito danoso identificado. No caso do DDT, o conhecimento científico avançou e demonstrou o perigo desses produtos e não se voltou atrás; o DDT não foi mais autorizado. Quando o DDT foi apontado como problemático à saúde humana e ao meio ambiente, várias correntes que defendiam o produto ou que o comercializavam, partiram para a “pancadaria” para dizer “que não era bem assim”, mas o tempo mostrou os efeitos desse produto e nunca mais se voltou atrás.

Impactos ambientais

Quanto ao meio ambiente, não tenho profundo conhecimento sobre os estudos na área ambiental, mas sabemos que pelo volume de agrotóxico que vem sendo utilizado no Brasil, algumas pesquisas já apontam a presença do glifosato em rios, substratos e lençóis freáticos. Então, ele pode estar degradando outras substâncias que não são possíveis de ser identificadas, portanto, ambientalmente, como se trata de um herbicida, ele pode eliminar várias outras espécies ou mesmo atingir outras culturas que não são o seu alvo. Esse é um problema, porque ele é um herbicida usado em larga escala, aplicado por aviões e está presente na chuva, no solo, na água e em todos os lugares. Ele colabora, enquanto herbicida, com desequilíbrios ambientais importantes, porque, ao eliminar determinadas algas ou determinados organismos que estão debaixo da cadeia alimentar, causa um dano importante.

IHU On-Line — O movimento internacional contrário ao uso de glifosato se dá em virtude dessas novas descobertas científicas?

Luiz Cláudio Meirelles — Exatamente. O glifosato, que antes era um produto classificado como não carcinogênico, passou a ser classificado como provável carcinogênico para humanos. Ou seja, os produtos vão sendo estudados e a toxicologia avança dessa forma. Infelizmente, é assim, mas o dano que já ocorreu e que poderá ocorrer nos próximos anos não tem mais como ser revertido. Infelizmente, a ciência, o “estado da arte”, como chamamos, nunca é alcançado: estamos sempre num estado das práticas. Se o princípio de precaução fosse levado a sério, na medida em que se descobre determinado efeito, o produto já deveria ser retirado do mercado e deveriam se buscar medidas mitigadoras. Mas, infelizmente, não é assim.

O DDT, por exemplo, foi proibido nos Estados Unidos na década de 1970 e no Brasil só foi proibido em 1985; nós tivemos mais 15 anos de uso daquela bomba. O Brasil, como país periférico, acaba demorando muito para tomar essas decisões e este é o problema que vivemos hoje: usamos vários agrotóxicos que já estão proibidos na Europa desde 2013. Estamos em 2019 e esses produtos seguem entre os dez mais utilizados no país. Isso, do ponto de vista da saúde pública, é uma situação caótica. Com o glifosato, provavelmente, viveremos a mesma situação. Recentemente, a reavaliação feita pela Anvisa concluiu que esse produto não tem problemas e não é carcinogênico. Esse tipo de avaliação não o coloca em uma situação de retirada programada, de redução do consumo, de busca de novas tecnologias para substituí-lo como herbicida. Isso praticamente não é apontado em um produto que já está sendo estudado como carcinogênico e que em outros países está sendo retirado do mercado.

IHU On-Line — Como era a classificação do glifosato no Brasil e no que consiste essa mudança da Anvisa? Baseado em que a Anvisa não o classifica como carcinogênico?

Luiz Cláudio Meirelles — Na realidade, existem interpretações de estudos. O que é dito pelos órgãos que estão rechaçando a posição da Iarc é que tanto a interpretação quanto os estudos que eles utilizaram para classificar o produto como carcinogênico não são adequados ou têm furos metodológicos e são insuficientes para afirmar que o produto tem uma carcinogenicidade importante para humanos. A lógica é essa, sem entrar em detalhes. Então, descartaram-se os estudos da Iarc que classificavam o produto como 2A, ou seja, como provável carcinogênico.

A classificação funciona deste jeito: existem estudos produzidos pelas empresas, estudos independentes, e a classificação depende de onde será ancorada a linha de argumentação, pois sabemos que tem ciência para todo gosto. Então, cientificamente, podemos dizer que determinado produto tem problemas e outro grupo vai dizer que não tem. Até que uma posição vire consenso leva alguns anos ou muitos anos. Para se ter uma ideia, até hoje existem grupos que dizem que o DDT não é carcinogênico, que isso foi invenção de pessoas que queriam que outros produtos entrassem no mercado; sempre teremos essa diferença de posição. O que eu estava explicando no início, independentemente de existir essa diferença de posição entre os que afirmam que o glifosato é carcinogênico e os que afirmam que não, é que essa situação não retrocede, pois a carcinogenicidade do produto ou os efeitos crônicos só serão confirmados, não serão mais descartados. O que se tenta, nesses casos, é levar no limite a manutenção do produto no mercado, como aconteceu com outros herbicidas, até chegar a um ponto em que o conhecimento científico substitui um herbicida por outro.

IHU On-Line - Qual a diferença entre a classificação anterior do glifosato no país e o “afrouxamento” da classificação da Anvisa mais recentemente, após a divulgação de que esse produto pode ser carcinogênico?

Luiz Cláudio Meirelles — Este é um capítulo à parte. Quando a Anvisa reavaliou o glifosato, ela não fez a publicação final. Na nota técnica divulgada, a carcinogenicidade não era nem mencionada, pois o glifosato não era considerado carcinogênico. Na avaliação da Anvisa, ele não teria essa característica, apenas problemas de uso crônico. Do ponto de vista agudo, a Anvisa diz na nota que classificaria todos os glifosatos na classe 1, que é extremamente tóxico, por conta da irritação e corrosão ocular e dérmica. Isso já havia sido discutido desde 2011, porque os estudos mostravam diferenças entre eles, e essas diferenças não eram explicadas entre produtos de diferentes origens ou fabricantes que tinham a mesma composição, por isso se decidiu classificar todos eles como classe A. No entanto, posteriormente, a Anvisa mudou os critérios de classificação toxicológica a partir do seu novo marco regulatório e passou a usar o sistema globalmente harmonizado de avaliação, classificação e rotulagem de produtos, o GHS, que é utilizado na Europa e em outros países. Entretanto, o GHS usa outros critérios para classificar os produtos e não considera a irritação ou corrosão dérmica e ocular para fins de classificação dos produtos, porque só considera as doses letais.

O GHS tem características que são muito próprias e foi criado pensando em ajudar países que não tinham nenhum modelo para substâncias químicas em geral, isso incluía substâncias químicas de uso industrial, que são diferentes dos agrotóxicos. O agrotóxico é um produto sintetizado, formulado e colocado no campo, e todos os que estão trabalhando manipulam o produto. Já os produtos químicos, normalmente, estão restritos às fábricas e têm uma outra característica. Então, as medidas de segurança que se adotam muitas vezes são bens diferentes. Além disso, o GHS na realidade europeia é uma coisa, na realidade brasileira, é outra.

Assim, a Anvisa passou a usar o GHS e reclassificou todos os produtos, excluindo os antigos critérios de irritação ocular e dérmica, que colocavam muitos produtos na classe 1, como extremamente tóxicos, e na classe 2, como altamente tóxicos. Desse modo, vários produtos deixaram de estar nessas duas classes. Para termos uma ideia, de 704 produtos, só sobraram 43. É o que falo sempre: você pegou o capeta e colocou nome de santo. O agrotóxico continua perigoso à saúde, mas não é mais classificado como tal.

A Anvisa diz que equiparou seu sistema ao sistema internacional. Mas o sistema internacional não é vinculante, portanto os demais países não são obrigados a adotá-lo só porque um grupo de países o adotou. Os países devem adotar modelos regulatórios de acordo com a sua realidade. Se olhar para a realidade brasileira, verá que o nosso agricultor não tem formação, não tem informação, não tem acesso a equipamentos de proteção, não tem o trabalho organizado para enfrentar perigos. A realidade do agricultor europeu é outra: ele tem acesso à informação, muitos produtos perigosos estão fora do mercado, ou seja, tem um conjunto de medidas protetivas que não temos aqui. Temos que considerar isso quando se propõe uma classificação toxicológica.

Quando fui gerente geral da área de toxicologia da Anvisa, houve tentativas de mudar o sistema, mas sempre fomos contrários. Com essa mudança de classificação, aqueles rótulos vermelhos que indicavam “perigo, veneno” deixaram de existir e os produtos que antes eram classificados como classe 1 e classe 2 caíram para a classificação 4. O glifosato, por exemplo, caiu para a categoria 4 ou 5. As faixas de alerta que indicavam os perigos agudos, como o da corrosão ocular, que pode causar cegueira, deixaram de existir. Sempre consideramos esse um critério importante para a classificação dos produtos, mas agora o agricultor não vai distinguir entre a embalagem de um produto comum e um produto altamente tóxico. Se você pega um produto que tem um rótulo com uma caveira e uma faixa vermelha, você vai pegá-lo com mais cuidado. Parece que os agrônomos também foram contrários a essa mudança, porque se ocorrer algum tipo de intoxicação, eles poderão ser responsabilizados, pois os produtos hoje não têm mais alerta. Essa foi a grande mudança que o órgão fez, que é um retrocesso em termos de proteção ao trabalhador e à população, porque a linguagem simbólica também ajuda muito na proteção.

O glifosato, nesse caso, foi favorecido. A Anvisa ainda não publicou o documento final da reavaliação do glifosato, mas como ela já publicou a reclassificação toxicológica, aquilo que ela disse na consulta pública, de que iria colocar todos os produtos na classe 1, não irá valer mais.

IHU On-Line — Como compreender que diante de tantas informações ainda há esse tipo de retrocesso por parte da Anvisa?

Luiz Cláudio Meirelles — Vivemos um momento político e institucional bastante complicado e isso não é de agora, não é um fenômeno somente deste governo, ao contrário, isso vem se agravando ao longo do tempo. Criamos agências reguladoras no Brasil para que se tivesse uma instância independente para a tomada de decisão, mas percebemos um afastamento das questões que são de maior interesse público. Isso não se aplica só no caso da agência que regula produtos que têm risco sanitário. Eu trabalhei na Anvisa e vi a pressão que se tem do setor regulado, que nunca vem sozinha, vem de várias formas: primeiro, desqualificavam tecnicamente o trabalho que desenvolvíamos enquanto órgão público, depois faziam uma pressão política via parlamentares, e se não conseguiam nem de um jeito nem de outro, recorriam à judicialização. Infelizmente, conseguíamos ganhar as brigas de manter as decisões de proibir determinados produtos e manter certas avaliações, ou seja, tínhamos uma série de medidas que blindavam o órgão. Se não há representação da sociedade civil e conselhos, é possível se afastar desse objetivo.

No momento atual, vários conselhos foram extintos, como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - Consea, e essa decisão política reflete diretamente no trabalho que o órgão regulador tem que desenvolver. Essa é uma maneira de funcionar, de empoderar determinados grupos da sociedade, mas a sociedade civil tem que acordar e reclamar o lugar dela nesse processo, porque do ponto de vista da segurança sanitária, da segurança alimentar e da questão ambiental, vamos ter perdas. É muito duro ver certas coisas acontecendo quando elas são plenamente evitáveis. Para nós, que atuamos no campo da saúde pública, é muito triste ver o que está acontecendo e ver os impactos, por exemplo, no sistema de saúde, que está cada vez com menos recursos. O mesmo acontece na área da pesquisa, que é importante para apontar caminhos, mas teve aportes reduzidos. Essa mudança de classificação toxicológica feita pela Anvisa tem uma relação direta com o aumento do risco na saúde dos trabalhadores. Essa não é uma decisão burocrática nem técnico-científica, que tem de ser tomada sem que se olhe para a realidade do uso de determinados produtos. É uma decisão que deve incorporar todos esses conhecimentos e  considerar se isso vai ou não aumentar os perigos para a população.

Os favoráveis à mudança argumentam que modernizamos a legislação, quando na verdade não modernizamos absolutamente nada. É a mesma argumentação usada para derrubar a lei de agrotóxicos e substituí-la pelo PL 6299. Vivemos numa sociedade democrática, mas o PL foi feito por uma bancada ruralista e pelo agronegócio. As emendas que foram apresentadas pela área da saúde e do meio ambiente foram rejeitadas e não houve debate. O argumento do PL é a modernidade, mas quando olhamos para a modernidade, vemos que isso significa andar com uma fila para registro, ou seja, colocar mais produtos com melhor tecnologia no mercado. E quando vamos olhar os 450 produtos liberados – antes de 2015 a média de produtos liberados era 65 –, só tem cópia de produtos que já estavam no mercado, cópias de diversas origens do mundo, o que torna muito mais difícil o controle, pois o Brasil não tem capacidade de fiscalizar as indústrias lá fora. Inclusive, como a reavaliação do glifosato ainda não foi concluída, não deveria haver novos registros neste ano até se ter uma decisão regulatória nova em relação ao produto.

IHU On-Line – Sobre a judicialização, quantas ações tramitam no judiciário brasileiro e como avalia esse processo?

Luiz Cláudio Meirelles — Existem cerca de 42 mil ações no mundo somente contra a Monsanto. Essas ações ainda não estão tramitando no nosso judiciário. A experiência que eu tive com o judiciário na época em que fazíamos as reavaliações ou não autorizávamos o registro de determinados produtos, e a empresa recorria, foram positivas e conseguimos ganhar quase a totalidade delas. Não sei precisar os números agora, mas todas as vezes fazíamos um trabalho junto ao judiciário, porque o magistrado nem sempre tem conhecimento sobre toxicologia. Nós levamos especialistas para explicar como é feito o processo e por quais razões os produtos eram proibidos. Geralmente, as posições eram favoráveis à agência reguladora.

Eu trabalhava na Fiocruz e quando fui para a Anvisa descobri que é muito importante ter advogados na equipe. Eu achava que era suficiente fazer um trabalho técnico para manifestar uma posição, mas é preciso ter quem dispute a questão juridicamente, porque, do contrário, estamos perdidos. Isso não acontece só nesta área; acontece em todas. Às vezes vemos vários absurdos do ponto de vista técnico, mas a decisão muitas vezes não é nem do juiz, e sim de quem o instruiu. Nós tínhamos a preocupação de marcar as audiências, apresentar os argumentos, do mesmo jeito que quem está do outro lado faz. Nesse caso, a nossa experiência foi muito positiva e fizemos até uma aproximação para levar a discussão sobre toxicologia para a Escola de Magistrados.

Para se ter uma ideia, entraram com uma ação no judiciário em 2009 impedindo a Anvisa de fazer a reavaliação toxicológica de produtos, sendo que a Anvisa é o único órgão que tem autorização legal e capacidade técnica para fazer isso. Como alguém diz que um órgão de governo com aquela atribuição não tem capacidade? Na época, conseguiram uma liminar impedindo a Anvisa de fazer a reavaliação, mas depois de um ano a avaliação prosseguiu. É uma luta: 70% do tempo de trabalho é tomado para explicar e reagir quando se diz não à liberação de um produto e 30% do tempo de trabalho é com o fluxo normal, com produtos que não são problema; é impressionante o tempo que se gasta no Estado brasileiro quando tem que se dizer não. Isso é um indicador da questão política que eu mencionei anteriormente e isso desmotiva muito as áreas técnicas a fazerem enfrentamentos. Se existe uma saída técnica ou científica possível, às vezes se adota a medida mais fácil, porque o técnico prefere não se incomodar. Isso é ruim porque desmotiva a pessoa que tem um espírito investigador em relação ao produto.

IHU On-Line — Como seria possível reagir a esse cenário que o senhor descreve?

Luiz Cláudio Meirelles — Existem vários caminhos, mas o principal deles é se aproximar da sociedade levando informação correta, verdadeira, alertando sobre os perigos dos produtos, esclarecendo que há caminhos alternativos para o uso de produtos perigosos e que eles não são explorados porque se quer atender a interesses econômicos, e não de saúde pública ou de meio ambiente. Isso se dá por meio do ativismo junto a ONGs, sindicatos, universidades e organizando as pessoas para fazer enfrentamentos, apontando os caminhos. Apontar caminhos significa desmentir a ideia de que sem agrotóxicos vamos morrer de fome, mostrar as informações da agroecologia, as pesquisas da Embrapa. Na Anvisa eu dizia, por exemplo, que tinha muito espaço para melhorar. Por exemplo, quando mencionei a justificativa da Anvisa de equiparar a avaliação toxicológica com a União Europeia, por que o Brasil não se equipara verdadeiramente, copiando tudo o que os europeus têm de bom em termos de proteção ao trabalhador, formação, informação, acesso a produtos, proibindo de imediato aqui produtos que já são proibidos lá e que são extremamente perigosos? Isso sim é equiparar pensando em questões de saúde pública, meio ambiente e proteção efetiva da população brasileira. Agora, equiparar um modelo simplesmente para mudar a classificação e dizer que os produtos não têm mais perigo nenhum, isso de forma nenhuma interessa à sociedade.

Além disso, a Anvisa tem que ter uma articulação mais direta com tudo o que está relacionado ao controle social, sejam fóruns ou conselhos e, principalmente, com o Ministério Público. No Brasil existe o Fórum Nacional de Combate aos Agrotóxicos e Transgênicos, que está presente em vários estados. No Sul tem o fórum estadual, Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos, que tem feito um trabalho muito interessante de fortalecer a relação com o Ministério Público. O MP, efetivamente, pode ajudar no controle do Executivo. São vários os caminhos que estou trazendo aqui, mas a informação para a sociedade é fundamental. Por isso, vocês comunicadores são essenciais nesse processo para que não se divulguem informações mentirosas.

Se os agrotóxicos não fossem perigosos, eles não estariam sendo proibidos, países não estariam com metas de produção orgânica, como a Alemanha e outros países da Europa, por conta da dificuldade de controlar esse tipo de produto; isso tem que ser levado à população. A propaganda que se faz aqui é a propaganda de que é permitido comer agrotóxicos, que eles não têm risco. Temos que trabalhar com a informação verdadeira e dizer que, além de ser perigoso, podemos não ter alternativa imediata, mas podemos substituí-las com o tempo; contudo, tem que haver investimentos para isso. O investimento se dá de duas maneiras: desde que o Estado abrace essa questão, por um lado, e, por outro, haja a pressão da sociedade civil.

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Luiz Cláudio Meirelles — Quero falar sobre dois aspectos que me chamaram muito a atenção sobre a reclassificação da Anvisa, os quais me preocupam bastante nesse processo que vem acontecendo no Brasil e com a postura que os órgãos vêm tomando em relação a isso. A Anvisa em 2016 publicou o resultado do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos - PARA, e com base nesse resultado o Ministério da Agricultura disse que tinha acabado com a contaminação de agrotóxicos nos alimentos do Brasil. Contudo, quando analisamos o relatório, percebemos que 60% dos alimentos tinham resíduos de agrotóxicos, porque a Anvisa usou um critério — voltamos a falar de ciência — de risco agudo. Assim, apenas 1% dos alimentos seria classificado como risco agudo — o que também não é desprezível, já que comer uma laranja pode significar que eu passe mal e temos que ter estratégias sanitárias para isso pensando que milhares de pessoas comem laranja todos os dias. De todo modo, a questão crônica não poderia ter sido desprezada, mas não foi nem mencionada. O reflexo imediato disso é que outro órgão afirma que “acabou a contaminação por agrotóxicos no Brasil”.

Vamos considerar agora a situação recente da reclassificação da toxicologia dos agrotóxicos. Com essa reclassificação, a Anvisa diz que não temos mais produtos altamente tóxicos e extremamente tóxicos no país, ou seja, os agrotóxicos não são perigosos, pois a classificação deles determina que não são perigosos do ponto de vista agudo. Eu quero dizer que isso tem um impacto direto em toda a luta que estamos travando há anos para ter uma política voltada para o campo da agroecologia e da produção orgânica, de ter uma merenda escolar de origem orgânica e agroecológica, e de incentivo a práticas que não usem venenos. Na realidade, a adoção desse tipo de medidas incentiva o consumo de veneno. Essas medidas são muito negativas para as políticas de proteção, principalmente no campo da saúde pública, ainda mais num cenário em que estamos usando uma série de produtos que já deveriam estar proibidos ou fora do mercado ou com o uso muito reduzido. Isso é muito ruim do ponto de vista das medidas regulatórias adotadas recentemente, porque temos que dizer claramente que é sempre indesejável ingerir agrotóxicos, até porque agrotóxico não é alimento; é uma substância química com potencialidades toxicológicas, na maioria das vezes danosas, que está sendo ingerida em diferentes quantidades.

O que quero dizer é que essas medidas são muito ruins por conta desse cenário. Pense num gestor ou legislador de um determinado município que tem de definir uma política de proteção maior e de redução do uso de agrotóxicos. Se ele for buscar as informações oficiais, ele vai entender que não existem alimentos contaminados, que os herbicidas não têm toxicidade alta e, consequentemente, vai questionar por que ele deveria fazer alguma coisa. Por quais razões ele teria que fortalecer a questão da receita agronômica e da fiscalização em cima da distribuição dos produtos da receita, se o produto não tem toxicidade alta? Vamos nos colocar no lugar do gestor público que vai pegar os dados oficiais e vai tomar uma decisão.

O glifosato, por exemplo, até esse relatório feito em 2016, sequer era monitorado. Antes, a Anvisa divulgava na integralidade todas as informações: quantos produtos estavam regulados, quantos tinham agrotóxicos e em quantos não foi encontrado nada. A mudança regulatória é bastante preocupante pelo impacto que vai gerar.

De outro lado, as comissões que existiam no campo da agroecologia para a implantação da Lei de Agroecologia de produção orgânica foram extintas. Hoje o pessoal está batalhando para se organizar via os estados e muita coisa está acontecendo nesse sentido: na semana passada eu participei de uma reunião do Fórum Nacional, em Aracaju, e percebi que nos fóruns estaduais estão se movimentando bastante, aprovando legislações que favorecem a agroecologia. Fortalecer essas organizações é uma medida importante, porque as pessoas não querem só comer, mas querem comer com qualidade e para ter saúde.

 

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