A razão e rebeldia do Salário Doméstico

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31 Mai 2019

Em livro recém-lançado, Silvia Federici argumenta: capital manipula o amor para sujeitar mulheres ao trabalho gratuito. Remunerá-lo representará uma revolução ao escancarar opressão às “donas de casa” e obrigar os homens a rever seu papel.

O texto abaixo é parte do livro O ponto zero da revolução, de Silvia Federici, publicado pela Editora Elefante, e reproduzido por Outras Palavras, 29-05-2019. 

Eis o texto.

Eles dizem que é amor. Nós dizemos que é trabalho não remunerado. Eles chamam de frigidez. Nós chamamos de absenteísmo. Todo aborto é um acidente de trabalho. Tanto a homossexualidade quanto a heterossexualidade são condições de trabalho… mas a homossexualidade é o controle da produção pelos trabalhadores, não o fim do trabalho. Mais sorrisos? Mais dinheiro. Nada será tão poderoso em destruir as virtudes de cura de um sorriso. Neuroses, suicídios, dessexualização: doenças ocupacionais da dona de casa.

Muitas vezes, as dificuldades e ambiguidades expressas pelas mulheres ao se discutir o salário para o trabalho doméstico provêm do fato de reduzirem os salários para o trabalho doméstico a uma coisa, a uma quantia de dinheiro, em vez de tratá-lo a partir de uma perspectiva política. A diferença entre esses dois pontos de vista é enorme. Entender o salário doméstico como uma coisa no lugar de uma perspectiva é separar o resultado final de nossa luta da luta propriamente dita, e não compreender a importância disso para desmistificar e subverter o papel ao qual as mulheres têm sido confinadas na sociedade capitalista.

Quando observamos os salários para o trabalho doméstico desta forma reducionista começamos a nos questionar: que diferença faria mais dinheiro em nossas vidas? Nós podemos até concordar que, para muitas mulheres que não possuem outra escolha, exceto o trabalho doméstico e o casamento, ter mais dinheiro faria, de fato, muita diferença. Mas, para aquelas de nós que parecem ter outras escolhas — trabalho profissional, um marido esclarecido, um modo de vida comunal, relacionamentos lésbicos ou uma combinação de tudo isso —, ter mais dinheiro não faria muita diferença. Para nós, há supostamente outros caminhos para alcançar a independência econômica, e a última coisa que queremos é conquistá-la nos identificando como donas de casa, um destino que todas nós concordamos ser, por assim dizer, pior que a morte. O problema com esse posicionamento é que, na nossa imaginação, nós costumamos acrescentar um pouco mais de dinheiro à vida miserável que levamos hoje, e então nos perguntamos, “e daí?”, sob a falsa premissa de que poderíamos conseguir esse dinheiro sem ao mesmo tempo revolucionar — durante o processo de luta por isso — todas as nossas relações familiares e sociais. Mas, se olharmos para o salário pelo trabalho doméstico através de uma perspectiva política, podemos ver que lutar por isso produzirá uma revolução em nossas vidas e em nosso poder social como mulheres. Também fica evidente que, se pensamos que não precisamos desse dinheiro, é porque aceitamos as formas particulares de prostituição física e mental pelas quais conseguimos dinheiro para esconder essa necessidade. Como tentarei demonstrar, o salário para o trabalho doméstico não é apenas uma perspectiva revolucionária, mas a única perspectiva revolucionária do ponto de vista feminista.

“Um trabalho de amor”

É importante reconhecer que, quando falamos em trabalho doméstico, não estamos tratando de um trabalho como os outros, mas, sim, da manipulação mais disseminada e da violência mais sutil que o capitalismo já perpetuou contra qualquer setor da classe trabalhadora. É verdade que, sob o capitalismo, todo trabalhador é manipulado e explorado e sua relação com o capital é totalmente mistificada. O salário dá a impressão de um negócio justo: você trabalha e é pago por isso, de forma que você e seu patrão ganham o que lhes é devido, quando, na realidade, o salário, em vez de ser o pagamento pelo trabalho que você realiza, oculta todo o trabalho não pago que resulta no lucro. Mas pelo menos o salário é uma forma de reconhecimento como trabalhador, sendo possível barganhar e lutar contra os termos e a quantidade desse salário. Ter um salário significa fazer parte de um contrato social, e não há dúvidas a respeito do seu significado: você não trabalha porque gosta, ou porque é algo que brota naturalmente dentro de você, mas porque é a única condição sob a qual você está autorizado a viver. Explorado da maneira que for, você não é esse trabalho. Hoje você é um carteiro, amanhã, um taxista. Tudo o que importa é quanto desse trabalho você tem que fazer e quanto desse dinheiro você pode receber.

A diferença em relação ao trabalho doméstico reside no fato de que ele não só tem sido imposto às mulheres, como também foi transformado em um atributo natural da psique e da personalidade femininas, uma necessidade interna, uma aspiração, supostamente vinda das profundezas da nossa natureza feminina. O trabalho doméstico foi transformado em um atributo natural em vez de ser reconhecido como trabalho, porque foi destinado a não ser remunerado. O capital tinha que nos convencer de que o trabalho doméstico é uma atividade natural, inevitável e que nos traz plenitude, para que aceitássemos trabalhar sem uma remuneração. Por sua vez, a condição não remunerada do trabalho doméstico tem sido a arma mais poderosa no fortalecimento do senso comum de que o trabalho doméstico não é trabalho, impedindo assim que as mulheres lutem contra ele, exceto na querela privada do quarto-cozinha, que toda sociedade concorda em ridicularizar, reduzindo ainda mais o protagonismo da luta. Nós somos vistas como mal-amadas, não como trabalhadoras em luta.

No entanto, não existe nada natural em ser dona de casa, tanto que são necessários pelo menos vinte anos de socialização e treinamento diários, realizados por uma mãe não remunerada, para preparar a mulher para este papel, para convencê-la de que crianças e marido são o melhor que ela pode esperar da vida. Mesmo assim, dificilmente se tem êxito. Não importa o quanto sejamos bem treinadas, poucas mulheres não se sentem enganadas quando o “dia da noiva”[1] acaba e elas se encontram diante de uma pia suja. Muitas de nós ainda possuem a ilusão de que casamos por amor. Grande parte de nós reconhece que nos casamos por dinheiro e segurança; mas é o momento de reconhecer que enquanto há pouco amor ou dinheiro envolvidos, o trabalho que nos aguarda é excessivo. É por isso que as mulheres mais velhas sempre nos dizem: “aproveite sua liberdade enquanto você pode, compre o que você quiser agora”. Mas, infelizmente, é quase impossível aproveitar qualquer liberdade se, desde os primeiros dias da sua vida, você tem sido treinada para ser dócil, subserviente, dependente e, o mais importante, para se sacrificar e até mesmo sentir prazer com isso. Se você não gosta, o problema é seu, o fracasso é seu, a culpa e a anormalidade são suas.

Devemos admitir que o capital tem sido muito bem-sucedido em esconder nosso trabalho. Ele criou uma verdadeira obra-prima à custa das mulheres. Ao negar um salário ao trabalho doméstico e transformá-lo em um ato de amor, o capital matou dois coelhos com uma cajadada só. Primeiramente, ele obteve uma enorme quantidade de trabalho quase de graça, e assegurou-se de que as mulheres, longe de lutar contra essa situação, procurariam esse trabalho como se fosse a melhor coisa da vida (as palavras mágicas: “sim, querida, você é uma mulher de verdade”). Ao mesmo tempo, o capital também disciplinou o homem trabalhador, ao tornar “sua” mulher dependente de seu trabalho e de seu salário, e o aprisionou nesta disciplina, dando-lhe uma criada, depois de ele próprio trabalhar bastante na fábrica ou no escritório. De fato, nosso papel como mulher é sermos servas felizes e sobretudo amorosas da “classe trabalhadora”, isto é, aqueles estratos do proletariado aos quais o capital foi obrigado a conceder mais poder social. Tal como deus criou Eva para dar prazer a Adão, assim fez o capital criando a dona de casa para servir física, emocional e sexualmente o trabalhador do sexo masculino, para criar seus filhos, remendar suas meias, cuidar de seu ego quando ele estiver destruído por causa do trabalho e das (solitárias) relações sociais que o capital lhe reservou. É precisamente essa combinação particular de serviços físicos, emocionais e sexuais que estão envolvidos no papel que as mulheres devem desempenhar para o capital criar a personagem específica da criada que é a dona de casa, tornando seu trabalho tão pesado e, ao mesmo tempo, tão invisível. Não é por acaso que a maioria dos homens começa a pensar em se casar tão logo encontra o primeiro emprego. Isso não ocorre apenas porque agora os homens podem pagar por isso, mas também porque ter alguém em casa para cuidar de você é a única condição para não enlouquecer depois de passar o dia todo em uma linha de montagem ou sentado em uma mesa. Toda mulher sabe que deve realizar estes serviços para ser uma mulher de verdade e ter um casamento “bem-sucedido”. E, nesse caso também, quanto mais pobre a família, maior a escravidão a que a mulher está submetida, e não simplesmente pela situação econômica. Na realidade, o capital tem uma política dupla: uma para a classe média e outra para a família da classe trabalhadora. Não é por acaso que encontramos o machismo menos sofisticado nesta última: quanto mais pancadas o homem leva no trabalho, mais bem treinada deve estar sua esposa para absorvê-las, e mais autorizado estará o homem a recuperar seu ego à custa da mulher. Bate-se na esposa e joga-se a raiva sobre ela quando se está frustrado ou exausto em decorrência do trabalho, ou quando se é derrotado em uma luta (embora trabalhar em uma fábrica já seja uma derrota). Quanto mais o homem serve e recebe ordens, mais ele manda. A casa de um homem é seu castelo e sua esposa tem que aprender a esperar em silêncio quando ele está de mau humor, a recompor os pedaços dele quando estiver quebrado e praguejar contra o mundo, a se virar na cama quando ele disser “estou muito cansado essa noite”, ou quando ele pratica sexo tão rápido que, como uma mulher descreveu uma vez, poderia fazê-lo com um pote de maionese. As mulheres sempre têm encontrado maneiras de reagir, de dar o troco, mas sempre de forma isolada ou privada. O problema é, então, como trazer essa luta da cozinha e do quarto para as ruas.

Essa fraude que se esconde sob o nome de amor e casamento afeta a todas nós, até mesmo se não somos casadas, porque uma vez que o trabalho doméstico é totalmente naturalizado e sexualizado, uma vez que se torna um atributo feminino, todas nós como mulheres somos caracterizadas por ele. Se realizar certas tarefas é considerado natural, então se espera que todas as mulheres as realizem e que, inclusive, gostem de fazê-lo — até mesmo aquelas mulheres que, devido à sua posição social, podem escapar de (grande) parte deste trabalho, já que seus maridos podem pagar empregadas domésticas e psiquiatras e desfrutar de várias formas de diversão e relaxamento. Podemos não servir a um homem, mas todas estamos em uma relação de servidão em relação a todo o mundo masculino. É por isso que ser chamada de mulher é uma provocação, é algo degradante. “Sorria, querida, qual é o seu problema?” é algo que qualquer homem se sente legitimado a perguntar a uma mulher, seja ele o marido, o cobrador no ônibus ou o chefe no trabalho.

A perspectiva revolucionária

Se partirmos desta análise, podemos observar as implicações revolucionárias da reivindicação por salários para o trabalho doméstico. É a reivindicação pela qual termina a nossa natureza e começa a nossa luta, porque o simples fato de querer salários para o trabalho doméstico já significa recusar esse trabalho como uma expressão de nossa natureza, e, portanto, recusar precisamente o papel feminino que o capital inventou para nós.

Exigir um salário para o trabalho doméstico destruirá, por si só, as expectativas que a sociedade tem de nós, uma vez que essas expectativas — a essência de nossa socialização — são todas funcionais à nossa condição de não assalariada dentro de casa. Nesse sentido, é um absurdo comparar a luta das mulheres por salários domésticos com a luta dos trabalhadores de sexo masculino das fábricas por aumento salarial. Ao lutar por maiores salários, o trabalhador assalariado desafia seu papel social, mas permanece dentro dele. Quando lutamos por salários para o trabalho doméstico, nós lutamos inequívoca e diretamente contra nosso papel social. Da mesma forma, há uma diferença qualitativa entre as lutas dos trabalhadores assalariados e as lutas dos escravizados por um salário e contra a escravidão. Deve ficar claro, no entanto, que, quando lutamos por um salário, não lutamos para entrar na lógica das relações capitalistas, porque nós nunca estivemos fora delas. Nós lutamos para destruir o papel que o capitalismo outorgou às mulheres, que é um momento essencial da divisão do trabalho e do poder social dentro da classe trabalhadora por meio do qual o capital tem sido capaz de manter sua hegemonia. Salários para o trabalho doméstico são, então, uma demanda revolucionária, não porque destrói por si só o capitalismo, mas porque força o capital a reestruturar as relações sociais em termos mais favoráveis para nós e, consequentemente, mais favoráveis à unidade de classe. Na verdade, exigir salários para o trabalho doméstico não significa dizer que, se formos pagas, seguiremos realizando esse trabalho. Significa exatamente o contrário. Dizer que queremos salários pelo trabalho doméstico é o primeiro passo para recusá-lo, porque a demanda por um salário faz nosso trabalho visível. Esta visibilidade é a condição mais indispensável para começar a lutar contra esta situação, tanto em seu aspecto imediato como trabalho doméstico quanto em seu caráter mais traiçoeiro como próprio da feminilidade.

Contra qualquer acusação de “economicismo”, devemos lembrar que dinheiro é capital, ou seja, é o poder de comandar o trabalho. Portanto, reapropriar aquele dinheiro que é o fruto do nosso trabalho — e do trabalho de nossas mães e de nossas avós — significa, ao mesmo tempo, destruir o poder do capital de extrair mais trabalho de nós. E não devemos subestimar a capacidade do salário em desmistificar nossa feminilidade e em tornar visível nosso trabalho — nossa feminilidade como trabalho — na medida em que a ausência de um salário tem sido tão poderosa na construção desse papel e em esconder nosso trabalho. Exigir salários para o trabalho doméstico é tornar visível o fato de que nossas mentes, nossos corpos e nossas emoções têm sido distorcidos em benefício de uma função específica, e que, depois, nos foram devolvidos sob um modelo ao qual todas devemos nos conformar para sermos aceitas como mulheres nesta sociedade.

Dizer que nós queremos salários para o trabalho doméstico é expor o fato de que o trabalho doméstico já é dinheiro para o capital, que o capital ganhou e ganha dinheiro quando cozinhamos, sorrimos e transamos. Ao mesmo tempo, isso mostra que temos cozinhado, sorrido e transado ao longo dos anos, não porque realizar estas tarefas fosse mais fácil para nós do que para qualquer outra pessoa, mas porque não tínhamos outra opção. Nossos rostos se tornaram distorcidos de tanto sorrir, nossos sentimentos se perderam de tanto amar, nossa hipersexualização nos deixou completamente dessexualizadas.

Salários para o trabalho doméstico é apenas o começo, mas sua mensagem é clara: a partir de agora, eles têm que nos pagar porque, como mulheres, já não garantimos mais nada. Nós queremos chamar de trabalho o que é trabalho, para que, eventualmente, possamos redescobrir o que é amar e criar a nossa sexualidade, a qual nós nunca conhecemos. E, do ponto de vista do trabalho, nós podemos reivindicar não apenas um salário, mas muitos salários, porque nós temos sido forçadas a trabalhar de várias maneiras. Nós somos donas de casa, prostitutas, enfermeiras, psiquiatras; essa é a essência da esposa “heroica” celebrada no “Dia das Mães”. Nós dizemos: parem de celebrar nossa exploração, nosso suposto heroísmo. De agora em diante, nós queremos dinheiro por cada um desses momentos, para que possamos recusar alguns deles e, ao final, todos eles. A este respeito, nada pode ser mais efetivo do que demonstrar que nossas virtudes femininas já possuem um valor econômico calculável: até agora, possuíam valor apenas para o capital, que aumentava na medida em que fomos derrotadas; a partir de agora, possuem um valor contra o capital — e para nós, na medida em que organizamos o nosso poder.

A luta por serviços sociais

Essa é a perspectiva mais radical que podemos adotar porque, embora possamos exigir creches, igualdade salarial, lavanderias gratuitas, nós nunca alcançaremos uma mudança real se não atacarmos diretamente a raiz dos papéis femininos. Nossa luta por serviços sociais, isto é, por melhores condições de trabalho, será sempre frustrada se nós não estabelecermos primeiro que o nosso trabalho é trabalho. Se não lutarmos contra isso em sua totalidade, nunca alcançaremos nenhuma vitória. Nós vamos fracassar na luta por lavanderias gratuitas se não lutarmos, em primeiro lugar, contra o fato de não podermos amar exceto pelo preço de um trabalho infinito, que, dia após dia, prejudica nossos corpos, nossa sexualidade, nossas relações sociais, e a menos que escapemos da chantagem baseada em nossa necessidade de dar e receber afeto, que se vira contra nós ao se tornar um dever de trabalho e pelo qual nós sentimos um ressentimento constante com relação a nossos maridos, filhos e amigos, e depois culpadas por estarmos ressentidas. Como anos e anos de trabalho feminino fora de casa têm demonstrado, conseguir um segundo trabalho não muda esse papel. O segundo trabalho não só aumenta nossa exploração como também reproduz simplesmente o nosso papel de diversas formas. Para onde quer que olhemos, podemos observar que os trabalhos executados por mulheres são meras extensões da condição de donas de casa em todas as suas facetas. Não apenas nos tornamos enfermeiras, empregadas domésticas, professoras, secretárias — todas as funções para as quais fomos treinadas dentro de casa —, mas estamos no mesmo tipo de relação que dificulta a nossa luta dentro de casa: isolamento, o fato de que a vida de outras pessoas depende de nós, e a impossibilidade de enxergar onde começa o nosso trabalho e onde ele termina, onde nosso trabalho termina e onde começam nossos desejos. Levar um café para o seu chefe e conversar sobre os problemas conjugais dele faz parte do trabalho de secretária ou é um favor pessoal? O fato de termos que nos preocupar com a nossa aparência no trabalho é uma condição laboral ou um resultado da vaidade feminina? (Até há pouco tempo, nos Estados Unidos, as comissárias de bordo eram pesadas periodicamente e viviam fazendo regime — uma tortura que todas as mulheres conhecem — por medo de serem demitidas.) Quando o mercado de trabalho formal requer a presença feminina, é comum ouvir que “uma mulher pode realizar qualquer trabalho sem perder sua feminilidade”, o que simplesmente significa que, não importa o que você faça, você continuará sendo uma “vadia”.

Quanto às propostas de socialização e coletivização do trabalho doméstico, alguns exemplos serão suficientes para traçar uma linha entre essas alternativas e a nossa perspectiva. Uma coisa é construir uma creche da forma que queremos, e então exigir que o Estado pague por ela. Outra coisa bem distinta é entregar nossas crianças ao Estado e pedir para que ele cuide delas, não por cinco, mas por quinze horas diárias. Uma coisa é organizar comunalmente a forma como queremos comer (sozinhos, em grupos) e então reivindicar que esse gasto seja assumido pelo Estado; outra diametralmente oposta é pedir que o Estado organize nossas refeições. No primeiro caso, nós recuperamos algum controle sobre nossas vidas; no segundo, ampliamos o controle do Estado sobre nós.

A luta contra o trabalho doméstico

Algumas mulheres se perguntam: como os salários pelo trabalho doméstico mudarão a forma como nossos maridos se comportam conosco? Eles não continuarão esperando que façamos as mesmas tarefas de antes e até mais, uma vez que seríamos pagas para isso? Essas mulheres não veem que os homens esperam muito de nós justamente porque não somos pagas pelo nosso trabalho, que eles consideram ser uma “coisa de mulher” que não nos custa muito esforço. Os homens são capazes de aceitar nossos serviços e tirar prazer disso porque eles presumem que o trabalho doméstico é uma tarefa fácil para nós, e que gostamos de realizá-lo, pois o fazemos por amor. Na verdade, eles esperam que nós sejamos gratas, porque, ao casar e viver conosco, eles nos deram a oportunidade de nos expressarmos enquanto mulheres (isto é, servi-los). “Você é sortuda por ter encontrado um homem como eu”, eles dizem. Apenas quando os homens compreenderem o nosso trabalho como trabalho — nosso amor enquanto trabalho — e, mais importante, nossa determinação em rejeitar ambos, eles mudarão suas atitudes em relação a nós. Somente quando milhares de mulheres saírem às ruas dizendo que é um trabalho duro, odioso e desgastante realizar tarefas inacabáveis de limpeza, estar sempre emocionalmente disponível, ser coagida a transar para não perder o emprego, é que eles terão medo e se sentirão enfraquecidos enquanto homens. E, no entanto, isso é o que de melhor poderia acontecer a eles, segundo seu próprio ponto de vista, porque, ao expor a forma com que o capital nos manteve divididos (o capital os disciplinou por meio de nós e nos disciplinou por meio deles, um contra o outro), nós — suas muletas, suas escravas, suas correntes — abrimos o processo de sua libertação. Nesse sentido, os salários pelo trabalho doméstico serão muito mais educativos do que uma tentativa de provar que nós podemos trabalhar tão bem quanto eles, que podemos realizar os mesmos trabalhos. Deixamos esse valioso esforço para as “mulheres de carreira”, que escapam de sua opressão não por meio do poder da unidade e da luta, mas por meio do poder de comando, do poder de oprimir — geralmente, outras mulheres. Não precisamos provar que podemos “quebrar a barreira do colarinho azul”.[2] Muitas de nós já quebramos essa barreira há muito tempo e descobrimos que o macacão de trabalho não nos dá mais poder do que o avental — muitas vezes, ainda menos, porque agora nós temos que vestir ambos e, por isso, nos sobrou menos tempo e energia para lutar contra eles. Precisamos evidenciar que o que nós já fazemos é trabalho, mostrar o que o capital está fazendo conosco e nossa força para lutar contra ele.

Infelizmente, muitas mulheres — particularmente, as solteiras — se assustam com a perspectiva de salários para o trabalho doméstico porque elas têm medo de serem identificadas, nem que seja por um segundo, como donas de casas. Elas sabem que esta é a posição mais impotente na sociedade e não querem assumir que também são donas de casa. Essa é precisamente a nossa fraqueza, uma vez que nossa escravidão é mantida e perpetuada por meio dessa falta de autoidentificação. Nós queremos e devemos dizer que todas nós somos donas de casa, todas nós somos prostitutas e todas nós somos homossexuais, porque, enquanto aceitarmos essas divisões e pensarmos que somos melhores ou diferentes de uma dona de casa, nós aceitamos a lógica do patrão. Todas nós somos donas de casa porque, não importa onde estamos, os homens sempre podem contar com mais trabalho nosso, com o medo de apresentarmos nossas demandas, e menos insistência de nossa parte para que essas exigências sejam atendidas, pois, presumivelmente, nossas mentes são direcionadas para um outro lugar, para o homem no nosso presente ou no nosso futuro que “cuidará de nós”.

E nós também nos iludimos ao pensar que podemos escapar do trabalho doméstico. Mas quantas de nós, apesar de trabalhar fora de casa, escapamos disso? E podemos descartar, tão facilmente, a ideia de viver com um homem? E se perdermos os nossos empregos? E quando chegar a velhice e a perda da pequena quantidade de poder que a juventude (produtividade) e a atratividade (produtividade feminina) nos proporcionam hoje? E o que fazemos a respeito de ter filhos? Será que nos arrependeremos da escolha de não os ter, uma vez que não conseguimos fazer essa pergunta de modo realista? E podemos assumir as relações homossexuais? Estamos dispostas a pagar o possível preço do isolamento e da exclusão? E podemos, realmente, nos permitir ter relações com homens?

A pergunta é: por que estas são nossas únicas alternativas e que tipo de luta nos levará para além delas?

Notas:

[1] Termo utilizado pela indústria do casamento para se referir ao dia da cerimônia. Evidencia o peso das expectativas sociais sobre a performance da mulher como objeto a ser contemplado no ritual de exibição pública da passagem da nubente das mãos do pai para as mãos do marido, bem como uma possível pressuposição, pela oposição complementar baseada no cotidiano patriarcal, de que os demais dias serão sempre do marido. [n.t.]

[2] Blue-collar worker, em inglês, é o termo para se referir à pessoa que exerce um trabalho manual não agrícola, em geral em fábricas, na construção, manutenção, mineração, saneamento etc. [n.t.]

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