Os 'coletes amarelos'. Um movimento que marcou a vida política francesa. Entrevista especial com Ruy Fausto

Manifestação dos Coletes Amarelos | Foto: Patrice CALATAYU - Flickr

Por: Patricia Fachin | 09 Janeiro 2019

O movimento dos coletes amarelos, que iniciou em novembro do ano passado na França, teve como estopim o preço do combustível, mas representa “principalmente um problema relativo à injustiça na cobrança dos impostos”, porque “os franceses estão descontentes. Há sobretudo um problema com o Imposto sobre grandes fortunas, que o Macron aboliu”, diz o professor Ruy Fausto à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail.

Embora as manifestações sejam realizadas por “gente de classe média baixa, que está descontente com a dificuldade que tem para sobreviver”, e seja um movimento contra a desigualdade, Ruy Fausto menciona que ele é “ambíguo”. Sob o aspecto anti-impostos, frisa, “ele parece um movimento ‘liberal’. Esse lado foi explorado pela direita”. De acordo com Fausto, embora todos os partidos "tentaram aproveitar" a onda das manifestações, "as pesquisas mostram que um terço dos participantes não se declara nem de esquerda, nem de direita. Entre os restantes, a maioria se declara de esquerda. Há gente de direita, mas minoritária". Apesar disso, pontua, "pelo menos a julgar por certas pesquisas eleitorais recentes, o Rassemblement National – RN (ex-Front National) está ganhando força. Movido por vários fatores, é claro (situação econômica, exploração do tema da imigração…)". E adverte: "Há um real perigo de que o RN chegue ao poder na França, o que seria uma catástrofe não só para ela, mas para a Europa e para todo o mundo".

Ruy Fausto (Foto: Cristina Guerini | IHU)

Ruy Fausto possui graduação em Filosofia pela Universidade de São Paulo - USP, graduação em Direito pela mesma instituição e doutorado em Filosofia pela Université Paris 1 Pantheon-Sorbonne. Atualmente é professor titular da USP e membro de corpo editorial dos Cadernos de Ética e Filosofia Política da USP. Entre seus livros publicados, destacamos Outro dia: intervenções, entrevistas, outros tempos (São Paulo: Editora Perspectiva, 2009), Os piores anos da nossa vida (Niterói: Editora da Fundação Astrojildo, 2008), A Esquerda Difícil: em torno do paradigma e do destino das revoluções do século XX e alguns outros temas (São Paulo: Editora Perspectiva, 2007) e Marx: Lógica e Política - Investigações para uma reconstituição do sentido da dialética (São Paulo: Editora 34, 2002). Recentemente publicou Caminhos da Esquerda, elementos para uma reconstrução (São Paulo: Companhia das Letras, 2017).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - As notícias informam que o movimento “coletes amarelos” surgiu na França como uma reação ao preço do diesel. Essa é a única razão que motiva as manifestações ou existem outras causas que levaram esses manifestantes para as ruas?

Ruy Fausto - O preço do combustível foi o estopim que desencadeou o movimento. Mas ficou claro que os manifestantes tinham muitas outras reivindicações.

IHU On-Line - O que esse tipo de manifestação significa do ponto de vista político e de mobilização?

Ruy Fausto - É ambíguo. Em princípio, é um fenômeno muito positivo. São manifestações em geral de gente de classe média baixa, que está descontente com a dificuldade que tem para sobreviver. É, na realidade, um movimento contra a desigualdade. Mas há outros aspectos mais ambíguos.

IHU On-Line - Algumas notícias que circulam na imprensa relatam que pessoas que participaram das manifestações do movimento “coletes amarelos” afirmam que no país os ricos estão mais ricos e os pobres mais pobres e as classes médias estão pagando pelos ricos e pelos pobres. Qual é a situação social e de renda na França? Esse tipo de relato é a expressão de uma queixa geral no país?

Ruy Fausto - Tomando um corte temporal suficientemente amplo isso é verdade. Embora a desigualdade não tenha aumentado na França, no período mais recente. E também embora a desigualdade que exista na França seja menor do que em muitos outros países da Europa (sem falar do Brasil!). Mas, como se disse muitas vezes, durante as manifestações, a França é mesmo o país das mobilizações e também das revoluções. Quando se está descontente, sai-se à rua. De resto, os problemas são reais. Pobreza, desigualdade. Há principalmente um problema relativo à injustiça na cobrança dos impostos. Desde já fique claro. O sistema de impostos na França é muito, mas muito mesmo, melhor do que o do Brasil. Se chegássemos até o sistema francês, seria um grande progresso. Pois bem. Os franceses estão descontentes. E têm razão.

Há sobretudo um problema com o Imposto sobre grandes fortunas, que o Macron aboliu. Muitos manifestantes querem que ele seja restabelecido. Macron não cede. Seu programa é liberal (de novo: muito menos que no Brasil, mas é o suficiente para que o povo proteste). Há discussão também sobre o imposto sobre a herança (deve dar pelo menos umas quatro vezes mais do que o do Brasil, senão ainda mais do que isto, mas se considera injusto, apesar de tudo).

IHU On-Line - É possível estabelecer algum tipo de relação entre esse movimento com outras manifestações que têm ocorrido na Europa nos últimos anos, como o movimento Cinco Estrelas na Itália, ou mesmo mais antigamente o Movimento dos Indignados na Espanha?

Ruy Fausto - É preciso distinguir os diferentes casos. Desde logo, é preciso destacar que o movimento dos coletes amarelos tem também uma dimensão anti-impostos (ele surgiu como um processo contra o imposto sobre combustível). Sob esse aspecto, ele parece um movimento “liberal”. Esse lado foi explorado pela direita. Quanto aos outros movimentos europeus, o dos indignados, até onde sei, era um movimento antineoliberal. Já o 5 estrelas, na Itália, tem um caráter populista meio duvidoso, e acabou se aliando com a extrema direita.

IHU On-Line - O movimento dos “coletes amarelos” surge sem vinculação com os sindicatos. Isso indica que os sindicatos deixaram de ter importância nas mobilizações sociais?

Ruy Fausto - Eles estão contra todo tipo de representação. E em princípio não querem nada com os sindicatos. Era também a atitude de Macron. Mas quando a situação se tornou difícil, ele apelou para os sindicatos, tanto operários quanto patronais. Mas os coletes amarelos continuam fazendo resistência a toda representação. Quanto aos sindicatos, seu peso caiu muito na França, mas eles continuam tendo uma importância não desprezível. A Confederação Francesa Democrática do Trabalho - CFDT, central não comunista, na origem, ultrapassou a Confederação Geral do Trabalho - CGT, que tradicionalmente era ligada ao PC.

IHU On-Line - Alguns analistas têm afirmado que esse movimento não se assemelha a nenhum outro tipo de manifestação ocorrida na França e deu uma guinada na vida política social francesa, sendo uma expressão “antissistema”, “antielites” e “eurocética”. O senhor compartilha dessa percepção?

Ruy Fausto - Ele é original, sem dúvida. Como movimento contra a desigualdade e contra a injustiça fiscal é formidável. Só que a gente não sabe bem para onde vai. No meio dos manifestantes, havia grupos de extrema direita que desfilavam com as suas bandeiras. Grupos neofascistas, simplesmente. Parece que pelo menos em alguns casos, eles foram tolerados, apesar de o movimento ser contra toda representação. No final apareceram representantes (ou gente que se pretendia tal). Mas eram muito estranhos. Um meio “complotista”. Outros com algumas ligações com partidos, tanto de extrema esquerda como de extrema direita. Houve um militante que discursou sobre o fundo de uma Jeanne d’Arc anti-impostos.

De qualquer maneira, o movimento marcou a vida política francesa. Macron foi obrigado a recuar. Fez algumas concessões econômicas, relativamente limitadas. Agora, eles estão insistindo principalmente no Referendo de Iniciativa Cidadã - RIC. Um projeto para ampliar as possibilidades de fazer consultas à população. Se for bem organizado, pode ser certamente um progresso.

IHU On-Line - Como a esquerda e a direita francesas reagem e se manifestam sobre essas manifestações?

Ruy Fausto - Todos tentaram aproveitar, com a única exceção do movimento de Macron. Mas sem muito êxito, pelo menos imediato. As pesquisas mostram que um terço dos participantes não se declara nem de esquerda, nem de direita. Entre os restantes, a maioria se declara de esquerda. Há gente de direita, mas minoritária. Entretanto, pelo menos a julgar por certas pesquisas eleitorais recentes, o Rassemblement National – RN (ex-Front National) está ganhando força. Movido por vários fatores, é claro (situação econômica, exploração do tema da imigração…).

Uma pesquisa recente, sobre uma hipotética eleição presidencial, dava empate no primeiro turno entre Macron e o RN. Na última eleição, Macron ganhou por pouco no primeiro turno. Enfim, é incerto. O prestígio de Macron caiu enormemente, mas parece que em eventuais eleições, ganharia da direita tradicional, e em princípio (mas isso não é certo) também do RN, no segundo turno. Quanto à esquerda, vem muito atrás. Mélénchon é a liderança mais forte, mas ele caiu também. O resto da esquerda está atomizada.

IHU On-Line - Qual tem sido a repercussão dessas manifestações em Paris? As manifestações contam com apoio popular?

Ruy Fausto - A população apoia. Surpreendentemente, eles têm ou tinham até pouco o apoio de uma maioria ampla da população. Apesar de ter havido alguma violência. Aliás a reação da polícia foi bem violenta também. Houve cinco mortos em acidentes de automóvel, em geral, mas provocados pelas manifestações: um carro que entra na multidão, por exemplo, e centenas de feridos. Centenas de prisões também.

IHU On-Line – Alguns analistas afirmam que há uma virada à direita na política e exemplos disso são a eleição de Trump nos EUA, a recente eleição de Bolsonaro no Brasil, mas também a eleição da direita na Andaluzia. Na sua avaliação há uma virada à direita na política? Se sim, o que explica esse fenômeno?

Ruy Fausto - Certamente, há uma virada. É muito longo para discutir aqui. A esquerda apanhou com a crise do comunismo (não deveria ser assim), e a social-democracia também se desgastou. Há, por outro lado, uma crise econômica e desemprego. A direita capitalizou o descontentamento. Há ainda a questão da imigração. O normal é que todos os países da Europa dividissem a acolhida dos imigrantes. Mas isso não aconteceu. Muitos os recusaram. Nem com isso, houve ou há grande concentração. Mas basta para que apareçam movimentos anti-imigrantes, alguns de caráter claramente racista. A extrema direita explora a fundo esse problema. Há um real perigo de que o RN chegue ao poder na França, o que seria uma catástrofe não só para ela, mas para a Europa e para todo o mundo.

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Ruy Fausto - Não. Não sei muito sobre o que se passa aqui, embora acompanhe. Nos últimos tempos, apesar da importância dos coletes amarelos, pensei bem mais no Brasil…

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