“O tecnoliberalismo lança-se à conquista integral da vida”. Entrevista com Éric Sadin

Mais Lidos

  • “Os israelenses nunca terão verdadeira segurança, enquanto os palestinos não a tiverem”. Entrevista com Antony Loewenstein

    LER MAIS
  • Golpe de 1964 completa 60 anos insepulto. Entrevista com Dênis de Moraes

    LER MAIS
  • “Guerra nuclear preventiva” é a doutrina oficial dos Estados Unidos: uma visão histórica de seu belicismo. Artigo de Michel Chossudovsky

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

26 Junho 2017

Poucos se atreveriam a afirmar que somos uns submissos integrais, em plena perda de nossas liberdades, totalmente abertos para que nos colonizem até as veias, sem a mínima consciência ou vontade para entender o desastre que nos espreita e adeptos indolentes para que nossas existências se tornem um negócio planetário para uma elite que nos vendeu uma narrativa enganosa.

A entrevista é de Eduardo Febbro, publicada por Página/12, 23-06-2017. A tradução é de André Langer.

O pensador francês Éric Sadin faz isso aberta, rigorosa e insolentemente em um livro cujo eixo é a crítica das indústrias digitais, o que ele chama de tecnoliberalismo. A internet, objetos conectados, inteligência artificial, aplicativos, nosso guia supremo o Google e outras ideias da modernidade que são apresentadas como contribuições para o desenvolvimento da humanidade, nada mais são, na realidade, do que uma inesgotável indústria que fuça as nossas essências humanas com uma única intenção: encher as arcas dos interesses privados.

Os tecnofanáticos não concordam, mas o pensamento de Éric Sadin inscreve-se nessa pequena parcela – para não dizer heroica minoria – que levanta sua voz para, sem derrotismos, denunciar um sistema ladrão e abusivo. A editora argentina Caja Negra nos oferece o insolente benefício de poder ler um dos livros mais importantes de Sadin, La Humanidad Aumentada. La administración digital del mundo (2013) [A humanidade aumentada. A administração digital do mundo]. Esta obra traça os rumos de uma interconexão integral entre os seres humanos. É um retrato das vertentes mais alucinantes e privativas da chamada “revolução digital”, aquelas que mapeiam permanentemente cada palmo da existência humana e que a modernidade, numa espécie de negação coletiva, toma como uma fonte da salvação reatualizada.

Longe, muito longe disso, garante Sadin. Trata-se, antes, do nascimento de uma “humanidade paralela”, cuja pedra angular é o fluxo de conexões inteligentes, exploradoras das intimidades humanas e cuja pretensão central consiste em administrar os destinos humanos do século XXI. O famoso computador do filme 2001 – Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, o Hall 9000, saiu da nave Discovery One para colocar-se no coração de nossas vidas e administrar tudo, espiar tudo e tratar de mudar os nossos gostos e as nossas inclinações existenciais. O robô inteligente rege os nossos destinos. Neste ensaio elegante e preciso, Sadin desenvolve a trama desse “outro” que está atrás de nós e se apodera, todos os dias e com a nossa cumplicidade, da nossa essência humana.

Antes de A Humanidade Aumentada (2013), Éric Sadin escreveu outros livros: Surveillance globale (2009) [Vigilância global] e La Société d’anticipation (2011) [A sociedade da antecipação], e depois mais duas outras obras: La vie algorithmique : Critique de la raison numérique (2015) [A vida algorítmica. Crítica da razão digital] e La silicolonisation du monde : L’irrésistible expansion du libéralisme numérique (2016) [A siliciocolonização do mundo. A irresistível expansão do liberalismo digital].

Nesta entrevista concedida ao Página/12 em Paris, o pensador francês nos oferece um apaixonado quadro crítico das nossas inocências e do dinheiro e do controle que os senhores do Vale do Silício obtêm com isso.

Eis a entrevista.

Em que a humanidade aumentou com as tecnologias da informação? E em benefício de quem?

No final dos anos 90 vivemos o que se conhece como a era do acesso, ou seja, a capacidade de milhões de indivíduos acessarem corpus de textos, sons e imagens. Essa era não parou de se amplificar, mas agora estamos em outra era: a era da digitalização da vida. Já não se trata mais de digitalizar o som, a imagem ou os textos, mas a própria vida. Estamos agora exatamente nesse presente, na era dos sensores, dos objetos conectados e da inteligência artificial. Isso faz com que, se não tivermos cuidado, todos os nossos gestos mais íntimos sejam sondados: os sensores na minha cama informarão sobre o meu sonho e, assim como os espelhos inteligentes da Microsoft, haverá outros sensores que informarão sobre meus estados e, com eles, sobre toda a minha intimidade. Os sensores estarão presentes em todas as superfícies do real.

Caminhamos para um testemunho integral da vida, mas esse testemunho é, de fato, uma exploração com duas finalidades: a primeira, consiste em estabelecer um novo estado do capitalismo, o que chamei de tecnoliberalismo, cujo propósito é não deixar nenhum espaço da existência vazio, isto é, trata-se de se lançar à conquista integral da vida. Com sensores colocados ao longo de toda a superfície da vida chega-se a rentabilizar, a monetarizar todo o conhecimento comportamental. Isso implica, de fato, a mercantilização integral da vida.

Por exemplo, uma balança conectada não é apenas a curva evolutiva do meu peso, mas também, por meio de aplicativos, a inclusão, a oferta, em função dos meus estados, de complementos alimentares ou de permanências nas montanhas. O mesmo vai acontecer com os outros objetos conectados: por trás está a ideia de uma grande potência para penetrar em nossos comportamentos e, mediante sistemas de inteligência artificial, sugerir ofertas, bens ou serviços adaptados a cada perfil e a cada instante da vida cotidiana. Ali onde o capitalismo encontrar um espaço vazio, seja um passeio no bosque ou um jantar com amigos, vai se introduzir para tirar proveito disso através dos objetos conectados.

O horizonte que se abate sobre nós é o da capacidade de mercantilizar todos os momentos da existência humana. É o estado último do capitalismo. Vejam o Google. Ele nasceu com o negócio das palavras-chave e agora está no mapeamento em 3D, no mercado da saúde, da educação, está presente com o Google Car e a casa conectada. O Google e a indústria digital anseiam conquistar toda a vida. Isso passa, em primeiro lugar, pelo conhecimento refinado dos comportamentos de cada indivíduo, de maneira evolutiva, detalhada e em escala global. Esse é o modelo e, paradoxalmente, esse modelo é celebrado por toda a sociedade quando, na realidade, seu efeito maior está em reduzir a vida e o ser humano a um objeto eternamente mercantil e condenado eternamente a oferecer o testemunho de sua vida.

A segunda funcionalidade deste meio ambiente tecnológico aponta para a organização algorítmica ou automatizada de setores cada vez mais extensos da sociedade. O exemplo mais recente é o das empresas pilotadas pelos dados, o Data Driven. Com a arquitetura tecnológica como base, este dispositivo torna visíveis e em tempo real as performances e dita as ações humanas em relação à eficácia constatada, os parâmetros e os algoritmos. Esses sistemas negam a espontaneidade humana, a criatividade e a capacidade das pessoas que trabalham para se determinarem de forma regular.

Assim, os seres humanos se veem transformados em robôs de carne e osso. Isso faz com que a dignidade e a integridade humanas sejam pisoteadas. Passamos, pois, da era do acesso, onde só se tratava de ter acesso aos documentos e a comunicar-se com outros indivíduos, à era de agora, onde o conjunto da vida é captada para ganhar dinheiro com isso e otimizar a produção. A figura do ser humano como ser livre e autônomo afasta-se cada vez mais em detrimento de sistemas que decidem por nós.

As novas tecnologias ou as tecnologias da informação funcionam de fato como uma armadilha enganosa.

Sim, tudo isso é o resultado da tão celebrada inovação digital. É a nova heroína do nosso tempo, cujo modelo provém do Vale do Silício. Mas parece que ninguém está disposto a medir a amplitude das suas consequências, mesmo para além das suas vantagens, que são muitas, não nego. A socialdemocracia e os outros sistemas políticos liberais transformaram a inovação digital em uma espécie de deusa. A esquerda e a direita celebram a reprodução desse modelo e ninguém pensa em seu impacto: todos procuram reproduzir o modelo do Vale do Silício. Na realidade, isso se expressa em velocidades exponenciais. E este caráter exponencial vai além da velocidade mesma: de fato, o que produz é a morte do político, isto é, da capacidade humana para determinar-se, livre e negociadamente, ou em plena contradição.

E como se explica esta submissão? Se olharmos para a história humana esta é a história permanente de uma revolta. No entanto, diante destas tecnologias invasivas, não há reação diante do que você chama de “órgão sintético”. Em suma, por que nos submetemos tão facilmente à escravidão tecnológica?

Penso que se deve ao fato de que a nossa representação do digital segue marcada pela era do acesso. A maioria dos indivíduos conheceu o universo digital e o acesso à internet no final da década de 1990. Era preciso ser um chato para não encontrar nessas tecnologias algo formidável. Mas hoje estamos em outra era, mais nociva, e ainda não temos plena consciência disso. Ainda estamos mergulhados na fascinação digital enquanto instrumento de acesso, para fazer que determinados aspectos da vida sejam mais rápidos, sem nos darmos conta de que há, por trás, um poderoso movimento que anseia conquistar as nossas existências, imiscuir-se em cada âmbito da vida. Temos que tomar distância da digitalização: não se trata somente de um simples acesso. Temos que tomar consciência de que está havendo um assassinato permanente da vida mediante sistemas desenvolvidos pela indústria que só pensam em seu proveito.

Vejam o que acontece com assistentes digitais como o Siri ou o Google Homme: o que eles querem? Simplesmente orientar-nos permanentemente para produtos. Isso desemboca na monetarização dos conhecimentos da existência. Essa é a dimensão atual. A nossa vida integral está quantificada. A inteligência artificial, por exemplo, pressiona o ser humano, seja com finalidades comerciais ou para otimizar as decisões. Trata-se de uma negação dos princípios humanistas, do livro arbítrio dos seres humanos e das bases da vida que nos permitem decidir individual e coletivamente. Trata-se de um amplo movimento que tende a nos tirar a capacidade de decidir.

Pagamos pelo objeto conectado que nos espia e vigia. Estamos dando de presente a nossa liberdade.

Exatamente. Em todos os regimes socioliberais há um consenso em torno da indústria digital: pensa-se que a economia dos dados e das plataformas é o modelo radiante e insuperável do nosso tempo. Os políticos, as grandes escolas, as universidades, todos afirmam isso. Não há nenhuma distância crítica diante deste movimento. Mesmo os próprios textos legislativos são escritos em respaldo à economia dos dados.

O que podemos fazer? Os seres humanos devem agir e fazer valer os seus direitos, conceber discursos críticos, exigir auditorias no trabalho, na educação, nas plataformas digitais. A substituição, sob a pressão da indústria, do livro impresso pelo livro digital nas escolas é um escândalo. Devemos nos mobilizar e afirmar que não queremos compartilhar na sua totalidade o futuro que a indústria digital está construindo para nós: há outros modelos de organização da sociedade afastados dessa busca integral e compulsiva do lucro.

Em seu outro livro, A vida algorítmica, você trata dessa segunda tecnoditadura que é a modelização de todo o espectro do real. É outra crítica à emergência dessa humanidade paralela que surge com o universo digital.

Sim. O que faço é descrever a forma como nos dirigimos a uma quantificação constante das nossas existências, como funciona a utilização dessa quantificação e a inserção, a filtragem ou a imissão da indústria digital como acompanhante das nossas existências. Estes fenômenos são ao mesmo tempo singulares e de massa. Infelizmente, há pouquíssimos discursos críticos. Precisamos de distância e posturas críticas, na ação e no pensamento, em relação a este movimento massivo que aponta no sentido de orientar a existência em benefício de interesses privados.

Em seu último livro, A siliciocolonização do mundo, você elabora um olhar crítico sobre esse espaço mitológico que é o Vale do Silício. Nesse lugar da Califórnia nasceu o bom rock, proliferaram os hippies, formou-se determinada ideia de liberdade e, também, emergiram as novas tecnologias. O nosso presente nasceu ali e, com ele, um modelo de desenvolvimento muito questionável: a startup. Para você, trata-se de uma utopia social falsa.

Os perigos da siliciocolonização do mundo estão neste paradoxo: o coração da inovação tecnológica digital está na Califórnia do Norte, no famoso Vale do Silício. O Vale do Silício sonha com que seu radioso modelo econômico seja reproduzido em todo o mundo. Não se admite que esse modelo das startups seja invasivo e falso. A base desse modelo é a famosa publicidade: “existe um aplicativo para cada coisa”. O modelo funciona justamente assim, com a aspiração de que tudo vire negócio. É um modelo econômico que não aceita que existem lugares vacantes na existência. Esse modelo tornou-se o horizonte econômico, político e social do nosso tempo.

Entretanto, esse esquema não implica uma simples mudança de sociedade, mas a transformação da civilização fundada, daqui em diante, sobre a coleta ininterrupta do conhecimento humano, dos nossos comportamentos, sobre a quantificação e a mercantilização das existências, assim como a organização automatizada e algorítmica da sociedade: sua única ambição é satisfazer os interesses privados e tirar do ser humano a sua capacidade para a determinação. Não é nenhuma casualidade se a indústria digital afirma hoje que, no médio prazo, a inteligência artificial vai gerir todos os sistemas e rincões da vida. Não podemos aceitar isso. A indústria do Vale do Silício aniquila o político e os valores humanistas vigentes há séculos.

Você os trata de colonos.

Sim, claro, mas o pior é que não se trata de uma colonização forçada, violenta, mas de uma colonização desejada por todas as socialdemocracias. É uma siliciocolonização dos espíritos celebrada universalmente. Esse é o paradoxo.

O que eles querem fazer com o Século das Luzes, com Diderot, Voltaire, todos esses pensadores que tanto refletiram sobre o ser humano, os direitos, o indivíduo, o sujeito histórico e a democracia? Que pensamento pode nos salvar da submissão tecnoliberal?

Esse modelo aponta para a erradicação da figura do indivíduo fundada sobre a autonomia do juízo e sua capacidade para determinar-se livremente graças a toda a potência sensível do seu corpo. Quer-se eliminar certa essência humana em proveito de sistemas orientados a satisfazer benefícios privados. Está emergindo uma nova civilização sem críticas, nem contradições, nem análise sobre o que está em jogo. É incrível. O paradoxo histórico é inquietante.

Devemos inovar com uma resposta e opor-nos à poderosa ascensão dos heróis do Vale do Silício e da indústria digital. Não devemos aceitar que conquistem a existência humana de A a Z. Eles afirmam agir pelo bem da humanidade, mas não é verdade. Não cabe ao tecnoliberalismo a tarefa de ter em suas mãos o curso da vida, do futuro, de forma integral e em escala global. Isso cabe a nós; é nossa missão, não a deles.

Leia mais

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

“O tecnoliberalismo lança-se à conquista integral da vida”. Entrevista com Éric Sadin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU