02 Fevereiro 2017
A Revolução Russa nasceu “para responder a um vazio ideal – inicialmente aclamada, na sua hipóstase de fevereiro, e bem logo traída, mistificada na turbulência de outubro. O seu resultado na sociedade soviética seria um novo e trágico vazio, o vazio de Deus e, portanto, do homem.”
A opinião é do arcebispo italiano Antonio Mennini, núncio apostólico na Grã-Bretanha. De 2002 a 2010, foi representante da Santa Sé na Federação Russa. O artigo foi publicado no sítio Settimana News, 30-01-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Junto com as duas guerras mundiais e o fenômeno do totalitarismo hitleriano, a Revolução Russa de 1917 certamente foi um dos elementos que mais contribuíram para determinar o rosto da Europa e do mundo no século XX.
A um século do incêndio que eclodiu na Rússia e se propagou posteriormente para muitos países, não perderam atualidade várias perguntas ligadas a ela: como nasceu a revolução, quais foram as suas causas e por que ela eclodiu justamente em um país que, até pouco tempo antes, parecia imerso em um imobilismo atávico? Mas, acima de tudo, o que a Revolução Russa gerou como mentalidade, presente ainda hoje, e não só dentro da Rússia, mas também até nos nossos cromossomos? E, para chegar a um problema aparentemente mais específico, mas determinante, na realidade, o que ela representou para a Igreja, acima de tudo dentro do país, mas também nos países ocidentais?
Sobre esses e muitos outros problemas levantados pela Revolução Russa, foram escritas milhares de publicações, e o debate historiográfico ainda está em aberto. Evidentemente, aqui, não se pode pretender nem fornecer uma panorâmica dos estudos existentes, nem, menos ainda, fornecer conclusões. Vou me limitar simplesmente a oferecer algumas pistas para repensar as motivações culturais e espirituais de um fenômeno, na minha opinião, irredutível – como geralmente acontece – a causas geopolíticas e econômicas.
Enquanto isso, pode ser útil lembrar que as revoluções em 1917 foram duas: a primeira, em fevereiro, que coincidiu com a abdicação do czar e a instauração de um governo democrático (o governo provisório), despertou os entusiasmos da classe média, de jovens e intelectuais, e o consenso da maioria das potências internacionais. “Junto com os homens, as árvores e as estrelas também discursavam e se manifestavam”, assim o jovem poeta Boris Pasternak descreveria a exaltação daqueles meses de verão.
Naquele breve lapso de tempo, tornaram-se possíveis coisas que, durante décadas, tinham sido impossíveis, até mesmo do ponto de vista da Igreja: em junho, realizou-se o Sínodo da Igreja Greco-Católica, que estruturou a vida da comunidade católica russa, criando o exarcado e elegendo o seu guia na pessoa do padre Leonid Fedorov (beatificado por João Paulo II em 2001). Em agosto, abriu-se o concílio local da Igreja Ortodoxa Russa, aguardado e preparado por mais de uma década, que, pela amplitude dos temas tratados e pela maturidade de consciência, poderia ser comparado ao Vaticano II.
Depois de séculos de aquiescência à monarquia, aprisionada em uma gaiola dourada na qual gozava de amplos benefícios, mas de nenhuma autonomia (no início do século XVIII, o patriarcado tinha sido deposto, e o governo eclesiástico, confiado a um sínodo presidido por um funcionário imperial), a Igreja finalmente teve a possibilidade de convocar um concílio, onde a hierarquia foi acompanhada por inúmeros representantes do baixo clero, do monaquismo e por leigos, e durante o qual se projetava levar em consideração uma corajosa e radical reforma que investia sobre os âmbitos administrativos, jurídicos, litúrgicos, educativos e pastorais.
Infelizmente, já em outubro de 1917, a segunda revolução, o golpe de Estado bolchevique, pôs fim à frágil construção do governo provisório e aos sonhos e às esperanças acesas nos meses anteriores. A guerra mundial, a guerra civil, a fome, toda uma série de fatores concomitantes dariam forma e consistência a um projeto que, inicialmente, parecia louco e irrealizável aos próprios homens que o levaram em frente naqueles primeiros meses, Lênin em primeiro lugar.
Como pode-se ver muito bem ao ler as fontes da época, quase ninguém – na Rússia assim como no exterior, na sociedade civil assim como nos ambientes eclesiásticos – podia imaginar que o recém-nascido regime soviético teria uma vida e uma incidência tão longas na história do século XX, e que o que estava nascendo não seria simplesmente um dos tantos regimes tirânicos, mas sim um fenômeno ideológico novo, caracterizado pela internalização da subserviência de indivíduos e dos povos: o totalitarismo.
A revolução de outubro significou, portanto, o desaparecimento, a ruptura das esperanças em uma renovação moral, cultural, antes mesmo que econômica e política da Rússia? Certamente, as proporções do desastre causado pela revolução são enormes: nós conhecemos os custos em termos de vidas humanas.
Por outro lado, restam alguns pontos luminosos que permitiram não simplesmente uma resistência interna, mas também uma sofrida maturação cultural e espiritual: por exemplo, a eleição, em novembro de 1917, do Patriarca Tikhon (canonizado em 1989 pelo Patriarcado de Moscou), que representou um precioso guia para a Igreja nos primeiros anos das perseguições; ou o impetuoso aumento de associações, grupos e fraternidades clandestinas e semiclandestinas que se espalham em 1917 a 1919, especialmente entre estudantes universitários e personalidades do mundo da cultura, até pouco tempo antes indiferentes à problemática religiosa ou até mesmo desconfiados e hostis em relação à Igreja.
Naqueles meses, a Igreja, que necessariamente havia perdido a sua fachada de “ideologia dos bem pensantes”, reencontrou aos olhos de muitos o próprio rosto evangélico e, portanto, voltou a exercer um grande fascínio. Sintomática daqueles anos foi a conversão, e até mesmo para alguns a escolha do sacerdócio, de alguns dos melhores pensadores da época, de Bulgakov a Florensky e Berdyaev, de grandes personalidades da arte e da cultura (Mikhail Bakhtin, Marija Judina etc.).
Em duas antologias publicadas naqueles anos, Vechi [Marcos] e Iz glubiny [De profundis], os próprios pensadores expressam a condenação da ideologia revolucionária, mas, acima de tudo, identificam, talvez pela primeira vez no cristianismo, uma alternativa real, que também pode ser vivida nas condições de repressão que logo se instauram na sociedade. Um cristianismo que não se propõe simplesmente como espiritualidade ou prática de piedade individual, mas se eleva a dignidade de “humanismo” e, nas décadas posteriores, animaria tanto a renovação trazida ao Ocidente pela emigração russa, quanto o renascimento religioso que, no país, abriria caminho através do samizdat (editoria clandestina). Este último constituiria um verdadeiro rio subterrâneo que doaria, no arco do século XX, verdadeiras pérolas literárias, mas também extraordinárias documentações no cotidiano de resistência espiritual, testemunho de fé, defesa dos direitos humanos.
Uma revolução nascida para responder a um vazio ideal – inicialmente aclamada, na sua hipóstase de fevereiro, e bem logo traída, mistificada na turbulência de outubro. O seu resultado na sociedade soviética seria um novo e trágico vazio, o vazio de Deus e, portanto, do homem.
Como Berdyaev escreveu nos anos revolucionários, antecipando Eliot em 20 anos: “É a Igreja que abandonou a humanidade ou a humanidade que abandonou a Igreja?”. Mas também uma revolução que contribui, certamente sem querer nem suspeitar, para fazer com que a humanidade redescubra a sua verdadeira e última urgência, a de reencontrar o “rosto humano” e, portanto, de redescobrir o “rosto de Deus”.
Hoje, diante dos novos rostos assumidos pelo totalitarismo e pelo fundamentalismo, a lição de quem soube conservar e aumentar o desejo de continuar sendo uma pessoa humana pode ser uma salutar lição e uma preciosa indicação de caminho também para nós.
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Rússia, 1917: uma revolução - Instituto Humanitas Unisinos - IHU