A escalada da violência no campo: 2016 foi o mais violento dos últimos 13 anos

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28 Janeiro 2017

O ano passado foi o mais violento dos últimos 13 anos no campo. É o que apontam dados preliminares sobre a violência no campo apresentados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) no dia 17 de janeiro. Segundo a entidade, 60 pessoas foram assassinadas em decorrência de conflitos agrários em 2016. Em 2015, foram 49 mortes registradas, até então o maior número de vítimas de conflitos agrários desde 2003, quando foram contabilizados 71 assassinatos. Entre as vítimas estavam lideranças de movimentos camponeses e de populações tradicionais engajadas na luta pela reforma agrária e contra a espoliação causada pelo avanço do agronegócio sobre seus territórios. “É uma situação terrível”, assinala Jeane Bellini, membro da Coordenação Executiva da CPT, para quem a escalada da violência é resultado da omissão do Estado brasileiro na mediação dos conflitos agrários. “O Estado está deixando a violência acontecer, e na hora em que o Estado se afasta, o capital privado avança, e avança com violência”, ressalta, complementando: “O Judiciário continua não agindo. O número de processos em casos de assassinatos continua muito pequeno, o número de processos concluídos menor ainda, e o número de condenados idem. E o Executivo, quando manda a polícia, manda para proteger a propriedade privada de grileiros”, critica.

A reportagem é de André Antunes, publicada por EPSJV/Fiocruz, 27-01-2017.

De acordo com a CPT, assim como em anos anteriores, a Região Norte continua tendo o maior número de homicídios registrados. Um dos poucos casos a ganhar repercussão nacional aconteceu em Rondônia, estado que concentrou um terço dos assassinatos ocorridos no campo em 2016. O corpo da militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) Nilce de Souza Magalhães foi encontrado em junho amarrado a uma pedra no lago da Usina Hidrelétrica de Jirau, em Porto Velho. Conhecida pela luta contra as violações de direitos humanos cometidas pelo consórcio responsável pela hidrelétrica, chamado de Energia Sustentável do Brasil (ESBR), a militante estava desaparecida desde janeiro de 2016. “É uma tristeza imensa. E assusta pelo grau de brutalidade. Não se contentam em apenas matar. Querem mandar uma mensagem, intimidar mesmo”, aponta Jeane.

Demarcação de terras indígenas no alvo

Além da violência, os movimentos do campo têm denunciado também o desmonte do conjunto das políticas destinadas às populações do campo no ano que passou. Desmonte que já deu mostras de que deve continuar em 2017: no dia 23 de janeiro, organizações ligadas ao movimento indígena emitiram nota conjunta em repúdio à portaria 80/2017 do Ministério da Justiça e Cidadania, que cria, no âmbito da pasta, um Grupo Técnico Especializado (GTE) para atuar em questões envolvendo a demarcação de terras indígenas. Segundo as organizações signatárias da nota, a criação do GTE é uma tentativa de esvaziar o papel da Fundação Nacional do Índio (Funai) no processo de demarcação, que atualmente é regido pelo decreto 1.775, de 1996.

Atualmente, cabe à Funai a condução do processo de demarcação, desde a análise antropológica da terra reivindicada como indígena até a ausculta dos laudos e testemunhas a favor e contrárias à demarcação. Da Funai o processo segue para a assinatura do ministro da Justiça e em seguida para a sanção do presidente da República.

Com a nova portaria, o Ministério da Justiça passaria a ter a prerrogativa de rever todo o processo da Funai, órgão subordinado à pasta. “A medida segue na linha do enfraquecimento do órgão indigenista federal, atualmente com o pior orçamento de sua história, e consiste numa forte concessão do governo Michel Temer a bancadas parlamentares anti-indígenas, em contraposição aos direitos ligados à vida dos povos indígenas do Brasil, notadamente o direito originário às suas terras tradicionais”, denunciam as organizações, que criticam ainda a ausência de diálogo do governo com o Conselho Nacional de Política Indigenista e o descumprimento do direito à consulta livre, prévia e informada dos povos e comunidades tradicionais, como prega a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.

A portaria 80/2017 revogou a portaria 68, emitida pelo Ministério da Justiça no dia 18 de janeiro, que continha muitas das propostas de alterações no processo de demarcação presentes na minuta de um documento que o governo pretendia apresentar na forma de um decreto e cujo conteúdo foi vazado pelo jornal Estado de S. Paulo em dezembro do ano passado. Com a repercussão negativa depois da mobilização de indígenas, organizações indigenistas e do Ministério Público Federal (MPF), o governo voltou atrás e revogou a portaria, que previa, por exemplo, a reparação às populações tradicionais em caso de perda de terras. Além disso, segundo seus críticos, o documento abria espaço para a adoção da tese do “marco temporal” segundo a qual os indígenas só teriam direito às terras reivindicadas se estivessem fisicamente nelas em outubro de 1988, data em que foi promulgada a Constituição Federal. A previsão da criação do Grupo Técnico Especializado, no entanto, que já constava da portaria 68, foi mantida na portaria 80.

“Todas estas medidas têm o claro objetivo de retardar ou impedir a conclusão dos processos de demarcação, revelando o propósito do atual governo no sentido de enterrar políticas de demarcação de terras indígenas e outras pautas de regularização fundiária, o que só contribui para a ampliação e perpetuação dos conflitos existentes”, alerta a nota de repúdio dos movimentos indígenas à portaria 80.

Mudanças nas normas para reforma agrária

A paralisação das ações de reforma agrária no país em 2016 é outro alvo de críticas por parte da CPT e de outros movimentos sociais do campo. Esse quadro já vinha sendo denunciado desde o governo Dilma Rousseff, mas se agravou a partir da ascensão de Michel Temer à Presidência da República. O atual chefe do Executivo dissolveu o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e, com ele, extinguiu a Ouvidoria Agrária Nacional, órgão responsável pela mediação de conflitos por terra no país.

As nomeações do pastor evangélico Antonio Fernandes Costa, indicação do Partido Social Cristão (PSC), para a presidência da Funai, e do engenheiro agrônomo Leonardo Góis Silva, indicado pelo Solidariedade (SD) para a presidência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), também foram consideradas retrocessos. “Este governo tem deixado muito claro que está do lado do grande capital. Tudo o que os movimentos sociais têm tentado fazer há mais de 30 anos está sendo desmontado numa velocidade terrível”, lamenta a coordenadora da CPT Jeane Bellini.

Ela aponta que no final do ano passado, no dia 22 de dezembro, entrou em vigor a Medida Provisória 759, editada por Michel Temer que alterou as normas relativas à reforma agrária no país. Ela prevê, por exemplo, que os imóveis arrematados pela União destinados a projetos de reforma agrária possam ser pagos em dinheiro. “Antes, se uma terra era desapropriada porque não estava cumprindo sua função social, o governo dava o valor equivalente às benfeitorias ao proprietário na forma de títulos da dívida agrária ao longo de 20 anos. Era uma forma de pagar pela terra, mas não beneficiar o proprietário que não usou a terra para dar emprego ou alimento. Agora, ele não usou a terra e ainda vai receber por ela como se estivesse no mercado de terras. É um desvirtuamento”, analisa Jeane.

De acordo com ela, outro impacto da MP 759, que atribuiu às Prefeituras a responsabilidade de fornecer a relação de famílias a serem assentadas. “O receio é que deixe de haver uma consulta aos sindicatos de trabalhadores rurais, as associações, aos movimentos sociais do campo para indicar nomes de pessoas para serem beneficiadas, como o Incra e a própria Ouvidoria Agrária Nacional faziam anteriormente. Passando essa responsabilidade para as prefeituras, os grandes proprietários de terras vão ter muito mais influência nesse processo. O coronelismo vai aflorar novamente”, ressalta.

Combate ao trabalho escravo em xeque?

A CPT também divulgou dados preliminares sobre as denúncias de trabalho escravo recebidas em 2016 pela entidade e o resultado das fiscalizações decorrentes: foram 98 casos no ano passado, envolvendo 968 pessoas. Em 2016, 718 indivíduos foram libertados de condições análogas à escravidão. Os números mostram uma queda em relação a 2015, quando foram notificados 120 casos envolvendo 2.321 pessoas, com 895 trabalhadores libertados. Mas segundo Jeane Bellini, no contexto atual, os dados são motivo de apreensão. “Pode dar a impressão que melhorou a situação, mas o fato é que diminuiu o orçamento, impactou na diminuição do número de equipes, do número de operações, então, consequentemente, diminuiu o número de resgatados”, explica.

E os números sobre a fiscalização do trabalho escravo no Ministério do Trabalho de fato apontam nesta direção: enquanto em 2015 as Superintendências Regionais do Trabalho e Emprego da pasta realizaram 158 fiscalizações de denúncias envolvendo trabalho escravo, em 2016 esse número caiu para 65; já as fiscalizações realizadas pelo Grupo Móvel Nacional do ministério caíram de 119 em 2015 para 93 em 2016.

Considerada um dos principais instrumentos de combate ao trabalho escravo do Brasil, a ‘lista suja’– uma relação dos empregadores multados por utilizar trabalho em regime análogo à escravidão – não é divulgada pelo governo há dois anos e atualmente se encontra envolvida em um imbróglio jurídico.

Em 2014, a lista foi suspensa pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski a pedido da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), autora de uma ação direta de inconstitucionalidade contra o instrumento.

Em maio de 2016, o governo apresentou uma portaria com novas regras para a inclusão de nomes no cadastro de empregadores envolvidos na prática de trabalho escravo, e, com isso, derrubou a liminar de Lewandowski. Só que desde então a lista não foi divulgada. Em dezembro do ano passado, o Ministério Público do Trabalho (MPT) entrou com uma ação pedindo a divulgação imediata da lista, mas a Advocacia Geral da União (AGU) recorreu.

Um dia após o MPT entrar com a ação pedindo a volta da ‘lista suja’, o país foi alvo de uma decisão histórica da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que considerou o Estado brasileiro omisso e negligente com o trabalho escravo.

Publicada no dia 15 de dezembro de 2016, a sentença encerrou o caso ‘Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde contra o Estado Brasileiro’, protocolada em 1998 pela CPT e pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) com base em ocorrências envolvendo mais de 300 trabalhadores do Piauí aliciados para uma fazenda no sul do Pará ao longo de 10 anos. Esta foi a primeira vez que a Corte Interamericana julgou um caso de trabalho escravo nas Américas.

“Se dentro do país tem juízes tropeçando um no outro e congressistas querendo redefinir o que é trabalho análogo à escravidão, uma decisão dessas diz que, pelo menos, o Brasil está destoando dos outros países das Américas e está regredindo nos combate à escravidão”, afirma Jeane. E completa: “Mesmo com o desmonte, certos mecanismos de defesa e denúncia ainda funcionam. Então não podemos nos entregar ao desânimo, porque essas poucas conquistas mostram que os mecanismos ainda existem, a questão é usar, teimar, insistir”.

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