Discurso do Papa aos jesuítas cura décadas de mágoa e incompreensão

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27 Outubro 2016

"Dadas as suspeitas com as quais a maioria dos jesuítas no mundo o viam em março de 2013, o amor e a afeição crescentes entre Francisco e a Companhia estão sendo desde então nada menos do que extraordinários. Interpretada à luz deste histórico, a alocução de Francisco feita neste domingo à 36ª CG foi uma chance de articular uma visão do propósito e da missão jesuíta que – na opinião deles – havia sido abandonada, apesar da advertência de Paulo VI em 1974".

O comentário é de Austen Ivereigh,  jornalista, publicado por Crux, 24-10-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa. 

Eis o texto.

Saber algo da conturbada história jesuíta do Papa Francisco faz do seu discurso à Congregação Geral em Roma ainda mais notável. Nele, Francisco consegue curar tanto a perda de identidade jesuíta da década de 1970 quanto os mal-entendidos que eles sofreram depois.

Os delegados jesuítas do mundo inteiro que participam da 36ª Congregação Geral, em Roma, estavam ansiosos para ouvir o discurso do Papa Francisco no domingo. O grupo aguardava o pontífice com muita animação e com certa apreensão.

Animação porque esta é – não nos esqueçamos – a primeira vez que um papa jesuíta discursa à instância mais alta da Companhia de Jesus, e muito provavelmente ela seja também a última, pelo menos para a maioria destes jesuítas reunidos em assembleia.
E apreensão porque nenhum papa jamais conheceu os jesuítas melhor do que Jorge Mario Bergoglio, um dos seus líderes mais influentes e, também, desafiadores.


Francisco durante seu discurso à Congregação Geral dos Jesuítas (Foto: CG36 / Flickr)

Em outras palavras, nenhum papa conhecia os dons, os pontos fortes, os pontos fracos e as tentações da Companhia de Jesus como Francisco conhece.

Da mesma forma, a Congregação Geral (ou simplesmente CG) nunca esteve diante de uma alocução proferida por um papa que, antes, havia participado de edições anteriores da assembleia na qualidade de jesuíta.

Como provincial da Argentina, Bergoglio esteve na histórica 32ª CG em 1974-1975, convocada pelo Pe. Pedro Arrupe para definir a disputada direção no pós-Vaticano II que a Companhia deveria tomar. Oito anos mais tarde, como delegado eleito, ele esteve na 33ª CG em 1983, onde se elegeu o Pe. Peter-Hans Kolvenbach (assembleia na qual, aliás, Bergoglio passou a conhecer o novo Superior Geral recém-eleito dos jesuítas, o Pe. Arturo Sosa).

Entre estas duas CGs, os jesuítas passaram pelo seu período mais turbulento em tempos modernos, uma época de declínio nas vocações em meio a profundas divisões em torno de algumas correntes marxistas da Teologia da Libertação e do lugar que a justiça tem na missão de fé dos membros da ordem. O ponto mais baixo veio com a intervenção notável do Papa São João Paulo II na Companhia em 1981 após o acidente vascular cerebral debilitante do Pe. Arrupe.

(Em vez de aceitar a indicação dos jesuítas de um vigário-geral para liderar a ordem até que se pudesse encontrar um sucessor, o papa nomeou o seu próprio delegado pontifício para servir como o líder interino dos jesuítas por dois anos.)

Em tudo isso, Bergoglio não se postou como um mero espectador. Quando Paulo VI discursou aos delegados na abertura da 32ª CG, em 03-12-2974, ele proferiu aquilo que o então provincial da Argentina considerou como o discurso mais bonito alguma vez dirigido por um papa à Companhia. No entanto, dentro da carta de amor havia a dura inquietação, compartilhada por Bergoglio, de que a renovação jesuíta os distanciara da sua identidade e da sua missão nucleares.

Muitos dos delegados ficaram magoados ao ver o Papa Paulo instando-os a voltarem aos trilhos, o que entenderam como uma advertência contra a direção que haviam endossado na 32ª CG. Ignorando o pedido reconhecidamente indireto de Paulo VI, a 32ª CG votou por alterar o propósito da Companhia a fim de tornar a “promoção da justiça” uma “exigência absoluta” do “serviço da fé”.

Bergoglio opôs-se a essa emenda (conhecida como “Decreto Quatro”) por causa do medo de que ela deixaria os jesuítas vulneráveis à ideologia e a uma perda da identidade sacerdotal, reduzindo-os a ativistas e militantes.

Ao voltar para a Argentina, ele citaria com frequência o discurso de Paulo VI e ignoraria o Decreto Quatro. Como provincial e, mais tarde, como reitor do Colégio Máximo responsável pela formação de centenas de jovens, perseguiu uma política deliberada de isolar a província argentina do restante dos jesuítas na América Latina.

Alguns anos depois da eleição de Kolvenbach, Bergoglio (já sendo, na década de 1980, a figura dominante na província) foi tirado do poder e deixado de lado para que se reintegrassem os jesuítas argentinos. A política de Roma dividiu a província, deixando feridas duradouras.

Em 1990, Bergoglio deixou a Companhia, pelo menos formalmente, quando foi nomeado bispo auxiliar de Buenos Aires. A herança de mágoas e incompreensões somente se dissolveu depois de sua eleição ao papado.

Dadas as suspeitas com as quais a maioria dos jesuítas no mundo o viam em março de 2013, o amor e a afeição crescentes entre Francisco e a Companhia estão sendo desde então nada menos do que extraordinários.

Interpretada à luz deste histórico, a alocução de Francisco feita neste domingo à 36ª CG foi uma chance de articular uma visão do propósito e da missão jesuíta que – na opinião deles – havia sido abandonada, apesar da advertência de Paulo VI em 1974.

Evidentemente, muitas águas se passaram por debaixo da Ponte Sisto desde então, e as sucessivas CGs (com exceção para a de número 35 ocorrida em 2008, que realinhou a Companhia ao papado) restauraram a identidade jesuíta ao ponto em que, atualmente, esses debates estão, em grande parte, concluídos.

Mesmo assim foi significativo que Francisco tenha começado o seu discurso citando a fala de Paulo VI diante da 32ª CG, em que o então papa convidou os jesuítas a “caminharem juntos: livres, obedientes”. Com efeito, o discurso de Francisco destacou este convite, sustentando que, na tensão discernida da liberdade e obediência, jaz o carisma jesuíta autêntico.

Esse discurso ajuda a curar duas feridas: não só aquela deixada pelo descarrilhamento dos anos 1970, mas pela humilhação que se seguiu: conferências feitas por enviados papais que confundiam o famoso Quarto Voto de obediência dos jesuítas ao papa com as regras de Santo Inácio nos Exercícios Espirituais de pensar com a Igreja.

Um exemplo famoso foi a homilia do Cardeal Franc Rodé, então prefeito da Congregação para os Religiosos, na missa de abertura da 35ª CG em 2008, que implicava que a missão jesuíta era uma conformidade estreita. Esse discurso machucou, porque mostrava um entendimento pequeno da compreensão que Santo Inácio tinha de obediência como docilidade às inspirações do Espírito Santo.

Da mesma forma como Bergoglio sempre fez como provincial, para defender o seu ponto de vista Francisco, no domingo, lançou mão de fontes primitivas dos primeiros dias dos jesuítas, citando Santo Inácio de Loyola e seus companheiros, bem como a Fórmula original do Instituto elaborada pelo Papa Paulo III em 1540. (Voltar-se à esta fórmula, tantas vezes revista desde então, é típico do “ressourcement” de Francisco: reformar restaurando.)

Por meio destas fontes, Francisco mostrou que as liberdades jesuítas – desde a obrigação de recitar o Ofício Divino, por exemplo – são “acessórios de mobilidade” projetados exatamente para permitir a liberdade de obediência propriamente entendida. Isso não significa conformidade, sugeriu o papa, bem pelo contrário: um fervor sagrado que era um meio de “despertar os que estão dormentes”.

Em caso de ainda não ser compreendido, Francisco citou a descrição feita por um famoso santo jesuíta chileno, Alberto Hurtado, de um “espinho na carne da Igreja dormente”.

Igualmente observada foi a ausência da palavra “justiça” no discurso, que aparece apenas uma vez, como parte da frase “a prática da fé e da misericórdia” (ideia bem diferente da de “promoção” da justiça, no Decreto Quatro). Francisco recordou os jesuítas de que Santo Inácio via o meio de a Companhia atingir o “bem maior e mais universal” – o magis – como sempre incluindo, jamais evitando, as obras concretas da misericórdia.

(Para os jesuítas argentinos que se lembram de Bergoglio como provincial, a ocasião soou como uma volta no tempo. Bergoglio sempre esteve convicto de que, para os padres com boa formação, a defesa da justiça em termos abstratos constituía uma tentação espiritual distante da demanda da encarnação de Cristo, de que o serviço fosse primeiramente para uma pessoa concreta em necessidade.)


Foto oficial da visita de Francisco à Congregação Geral dos Jesuítas (Foto: CG36 | Flickr)

Em seguida, Francisco trouxe uma receita em três pontos, tirada diretamente dos Exercícios Espirituais, para “superar os impedimentos que o inimigo da natureza humana nos põe quando estamos no serviço de Deus e em busca do bem maior”.

O primeiro, “pedir intensamente por consolo”, deixa claro que a espiritualidade jesuíta tem a ver com buscar e pedir pela alegria que Cristo oferece a seus discípulos em oração. Naquilo que provavelmente vai ser, com certeza, um lema da Companhia de Jesus no futuro, Francisco observou que “o jesuíta é um servidor da alegria do Evangelho”.

O seu segundo convite é para estarem perto dos que sofrem, ao dependerem cada vez mais da misericórdia e da graça divinas, “que nós, muitas vezes, diluímos com as nossas formulações abstratas e condições legalistas”.

Ao citar a parte do Decreto Quatro da 32ª CG que ele aprovou veementemente, Francisco observa que só quando os jesuítas experimentam esta força curadora em suas próprias vidas é que terão condições de caminhar com os que sofrem, “aprendendo com eles o melhor modo de ajudar e servi-los” (em vez de dedicarem-se a fórmulas abstratas pobres, não precisou o papa acrescentar).

A terceira parte da receita é “fazer o bem do bom espírito, sentindo com a Igreja”. Aqui Francisco cita o seu jesuíta favorito entre os primeiros da ordem (a quem ele canonizou em seu aniversário no ano de 2013), São Pedro Fabro, que notou, falando dos luteranos, que “aqueles que queriam reformar a Igreja tinham razão, mas que Deus não a quis corrigir com os seus modos”.

Mas num caso que pode ser interpretado como um endosso da crítica estreita do Cardeal Rodé a respeito da independência jesuíta, Francisco acrescenta: “As regras para sentir com a Igreja, nós não as lemos como instruções precisas sobre pontos polêmicos”, mas sim “para abrir lugar a fim de que o Espírito possa agir em seu próprio tempo”.

Santo Inácio, Francisco recorda os jesuítas, costumava fazer um esforço especial quando via estruturas pecadoras na Igreja para se certificar de que estava agindo “no bom espírito” quando falava ou agia.

Sejam reformadores e homens de fronteira, em outras palavras, mas prestem atenção às tentações da ideologia e do egoísmo, e permaneçam verdadeiros ao seu carisma original.

O discurso tem apenas cinco páginas, no entanto em seu reequilíbrio cuidadoso ele ajuda a curar décadas.

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