"É preciso repensar a Reforma." Entrevista com Fulvio Ferrario

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13 Outubro 2016

A já iminente visita apostólica do Papa Francisco à Suécia (31 de outubro a 1º de novembro) marca o início de um processo destinado a culminar exatamente em um ano. No dia 31 de outubro de 2017, será celebrado o quinto centenário da Reforma Protestante, cujo início tradicionalmente coincide com a publicação das 95 teses contra a doutrina das indulgências elaborada nos meses anteriores por Martinho Lutero. Afixado na porta da catedral de Wittenberg, esse texto está na origem de um processo histórico que levou à constituição de inúmeras Igrejas reformadas.

A reportagem é de Alessandro Zaccuri, publicada no jornal Avvenire, 12-10-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Na Suécia, Francisco vai participar de uma comemoração ecumênica daquele evento na catedral luterana de Lund, de acordo com o espírito que o próprio papa sintetizou em junho passado, dialogando com os jornalistas na viagem de volta da Armênia: "Eu acredito que as intenções de Martinho Lutero não estavam equivocadas: ele era um reformador", declarou.

Com a entrevista ao pastor e teólogo valdense Fulvio Ferrario, inauguramos uma série de entrevistas e intervenções que pretendem analisar os temas desse quinto centenário do ponto de vista histórico e teológico, entrelaçando entre si vozes do catolicismo e do protestantismo.

O pastor valdense Fulvio Ferrario nos esclarece imediatamente, como se faz com as questões de método: "Se aprendemos algo com a teologia do século XX – diz – é que todo pensamento teológico é contextual. Isso valia nos tempos de Martinho Lutero, assim como hoje".

É nessa perspectiva que deve ser lido o seu livro mais recente, Il futuro della Riforma [O futuro da Reforma] (Ed. Claudiana, 200 páginas), no qual o já iminente aniversário de 2017 é situado e discutido no contexto contemporâneo. "No contexto contemporâneo italiano e europeu", esclarece Ferrario, uma das vozes mais autorizadas da teologia protestante.

Nota da IHU On-Line: Leia também em 'Notícias do Dia', hoje, a entrevista com o Paolo Ricca, teólogo valdense, sobre o mesmo tema.

Eis a entrevista.

Quais são os elementos distintivos?

Em primeiro lugar, a chamada "arreligiosidade", que constitui a evolução e, ao mesmo tempo, a superação da secularização. A mentalidade secular, de fato, combatia o cristianismo, mas se movia em um horizonte de sentido no qual ainda era reconhecível a estruturação bíblica, resumível em uma visão da história entendida como evolução de um passado pior do que o presente para um futuro ainda melhor. O homem arreligioso, em vez disso, acha insensata a própria noção de sentido. Ele se considera totalmente liberto de todas as hipotecas espirituais e, de Deus, agora, não percebe nem mesmo a sombra.

Não é assim para todos, no entanto.

É claro, e, por isso, deve-se levar em conta outro paradigma, o da sociedade pós-secular. Aqui, o debate é muito amplo, como se sabe. Vai-se da "espiritualidade sem Deus" à nostalgia do Oriente e da Nova Era, em um clima ao qual não são estranhos, ao menos em parte, as histórias dos movimentos na Igreja Católica e a ascensão das congregações carismático-evangélicas que configuram, cada vez mais, uma quarta família eclesial dentro do cristianismo.

Em que sentido?

No sentido de um novo tipo de Igreja ao lado das tradições, muito mais fortes no plano histórico, representadas por católicos, ortodoxos e protestantes. Estes últimos, no quadro atual, partem de uma condição indubitavelmente em desvantagem.

Por quê?

Porque, de um ponto de vista arreligioso, um protestante é sempre religioso demais, enquanto, em âmbito pós-secular, ele passa como alguém racional demais, iluminista demais.

Porém, a Reforma também tem uma alma anticlerical e, em alguns aspectos, racionalista.

Não é apenas isso, assim como não é apenas a polêmica antipapista. Se voltarmos a ler a primeira das famosas 95 teses de Wittenberg, encontramos uma insistência na penitência que hoje parece ser o que de mais antimoderno podemos imaginar. O recurso às indulgências é contestado não por motivos morais, mas por ser expressão de um cristianismo que prossegue em via exclusivamente sacramental, não levando em devida consideração a obediência a Cristo na vida cotidiana. Estou convencido de que, nessa fase inicial, Lutero não tinha levado em conta uma ruptura definitiva com Roma. Além disso, o espírito da Reforma estava no ar, já se reconhece a sua presença na obra de Erasmo de Rotterdam, que, até 1525, assumiu posições muito semelhantes às de Lutero. Depois, com a disputa sobre o livre e servo arbítrio, a oposição entre os dois se torna clara.

O que significa falar hoje de um "Cristo da Reforma"?

Para mim, significa se deter sobre três aspectos que são sublinhadas na Reforma de modo particular, embora nenhum deles seja típico apenas da Reforma. Jesus se manifesta, em primeiro lugar, como revelação de Deus, como porta de Deus, se assim quisermos nos expressar: quanto eu olho para Jesus, compreendo que Deus é realmente Criador e Senhor do céu e da terra.

O segundo elemento é a Cruz: "Cristo e este crucificado", na expressão de Paulo. É o tema do Deus morto e não assassino, muito caro à teologia do século XX, em uma linha que tem em Jürgen Moltmann o seu expoente mais conhecido. É decisiva consciência de que o Deus trinitário está envolvido naquilo que acontece na Cruz e não é uma entidade abstrata que se limita a contemplar o sacrifício de Jesus do alto.

Por fim, o terceiro elemento é o pro nobis com que a história da salvação coincide. Jesus é Deus conosco e Deus por nós. Conhecê-Lo significa conhecer aqueles que Melâncton chamava de os seus beneficia: o fato de que, na minha relação com Cristo, está a minha salvação, porque o próprio Cristo assumiu a minha condição. Ele acolhe tudo de mim, mas não para me abandonar a mim mesmo. Ele me acolhe como eu sou, porque, assim como eu sou, eu preciso ser transformado pela conversão.

O centenário é uma oportunidade para voltar a refletir sobre tudo isso?

Eu acho que sim, principalmente no que diz respeito a um mundo em que o próprio cristianismo é uma minoria. O protestantismo italiano sofreu nas últimas décadas mudanças inegáveis. Um conhecimento aprofundado da Bíblia, que até recentemente era patrimônio comum dos fiéis, não pode mais ser considerado como descontado na comunidade. É difícil estabelecer, por exemplo, se a oração dos Salmos ainda pertence à esfera da devoção pessoal. E outras observações poderiam ser feitas sobre o culto dominical, que não coincide necessariamente apenas com a pregação da Palavra. A pregação continua sendo central, não há dúvidas, mas talvez devesse ser mais bem inserida no contexto da liturgia. Há toda uma amplitude de registros a serem explorados, começando pela dimensão do canto litúrgico, que, aliás, pertence muito profundamente à tradição protestante.

O centenário pode ser um estímulo para o diálogo ecumênico?

O pontificado de Francisco determina uma situação que tem aspectos de grande interesse para os protestantes. Às vezes, trata-se do fortalecimento de processos que já amadureceram no passado, a começar pela superação da lógica de contraposição entre uma confissão e outra. De sua parte, o Papa Bergoglio sai da mentalidade de um primado absoluto do elemento doutrinal. Para mim, é bastante evidente que a teologia de Francisco é totalmente conforme com a tradição católica, e o seu ecumenismo não deve ser medido com base em uma maior ou menor proximidade com o protestantismo. Mas, nesse caso, é a própria modalidade do encontro que assume um valor teológico. Ninguém pode saber o quanto esta fase vai durar, nem se a herança de Bergoglio será recolhida pelo seu sucessor, mas isso não tira nada do caráter enérgico do atual pontificado. Eu sei que, na Igreja Católica, fala-se de bom grado de reviravolta, senão até de revolução. Toda reviravolta, porém, implica uma conversão, como Lutero nos ensina. Desta vez, talvez, poderíamos nos contentar com um pouco de autocrítica: se elogiamos a mudança, é porque havia a necessidade de mudar alguma coisa, não?

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