Perseguição e criminalização aos povos indígenas recrudesce em meio a pandemia. Entrevista especial com Eloy Terena

O ano de 2020 trouxe morte e desespero para os povo originários, que ainda viram os ataques aos seus direitos constitucionais ainda mais atacados

Foto: CIMI

Por: Patrícia Fachin | Edição: João Vitor Santos | 26 Janeiro 2021

Todos trazemos marcas em nossa história das experiências que vivemos em 2020, o ano da pandemia de Covid-19. Mas, para os indígenas essas cicatrizes serão ainda mais profundas e doloridas. Não obstante o novo coronavírus ter sido implacável nas aldeias, os povos originários seguiram suas lutas para garantirem seus direitos constitucionais que, além de não cumpridos, foram ainda mais atacados. “A perseguição e criminalização ao movimento indígena foi uma marca do ano de 2020. O ministro general Augusto Heleno fez uso de sua rede social para atacar a APIB e sua coordenadora executiva Sonia Guajajara. Ficou nítido que as articulações do movimento indígena incomodaram sobremaneira o governo Bolsonaro”, denuncia Eloy Terena, advogado e uma das lideranças indígenas no Brasil, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

 

Ele também interpreta a inoperância de ação contra a propagação do novo coronavírus nas aldeias como uma atualização das “velhas táticas coloniais [que] continuam presentes: a perseguição e a pacificação”. Mas os indígenas viram essa como mais uma das batalhas a serem travadas em 2020, ano de maior violência contra lideranças, queimadas e avanços sobre seu território. Assim, reuniram suas próprias forças para agir contra a Covid-19. “Os povos indígenas se reorganizaram para enfrentar a pandemia e manter a articulação política diária, se conectando nas reuniões virtuais e levantando suas demandas. Caciques, grupos de mulheres e jovens organizaram as barreiras sanitárias autônomas em seus territórios, num esforço coletivo para evitar a entrada do vírus e de invasores, num único objetivo de salvar a vida”, destaca.

 

Na entrevista, Eloy disseca a realidade da pandemia entre indígenas em números e ainda lembra que em 2021 o desafio da luta pela demarcação de terras segue. No horizonte, uma ação que tramita no STF acerca da tese do Marco Temporal. “Ainda não há uma data marcada. Este sem dúvida é o principal processo atualmente no STF que irá discutir o ‘Regime Jurídico das Terras Indígenas’. Quando este processo for julgado, a Suprema Corte estará julgando o futuro das terras indígenas”, adianta.

 

Por fim, lamenta que as muitas faces das desigualdades no Brasil se revelam também nas comunidades de povos originários. “As desigualdades sociais e econômicas que afligem a sociedade brasileira atingem de igual modo os povos e comunidades indígenas. No caso dos povos originários tem-se um elemento a mais, pois toda a estrutura política e econômica que afetam negativamente os territórios”, resume.

 

Eloy Terena (Foto: Arquivo pessoal)

Luiz Henrique Eloy Amado é indígena Terena da aldeia Ipegue, em Mato Grosso do Sul, advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - Apib. Possui doutorado em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, tendo realizado pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS, de Paris, na França.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Quais foram os principais avanços e retrocessos relativos à conquista de direitos dos povos indígenas no ano de 2020?

Eloy Terena – 2020 foi um ano de muitos desafios para os povos indígenas. Tivemos muitas perdas, muitas lideranças tiveram a vida ceifada pela Covid-19. Mas, foi também, um ano marcado pela “resistência indígena qualificada”. Isso porque, desde o primeiro momento, as lideranças e organizações indígenas se organizaram para enfrentar a pandemia que veio aliada as medidas governamentais extremamente nocivas aos direitos dos povos indígenas.

Considerando o contexto de desmonte democrático na qual nosso país se encontra, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, se comprometeu com uma série de atividades visando incidência no campo político, jurídico e humanitário. O exemplo mais claro certamente foi o ingresso com a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 709, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, que reconheceu a possibilidade de uma organização indígena do porte da APIB atuar no âmbito da jurisdição constitucional perante o STF. Além disso, o plenário do STF, ao analisar os pedidos, determinou a adoção de medidas protetivas para os povos indígenas.

No que tange a proteção territorial, ainda no inicio da pandemia, a Comunidade Indígena Xokleng, juntamente com APIB e um conjunto de organizações indigenistas, lograram êxito ao solicitar ao STF a suspensão do Parecer n. 001/2017 da Advocacia Geral da União – AGU e a suspensão de todas as ações de reintegração de posse e anulatórias de demarcação de terras indígena durante o período da pandemia. No início de maio de 2020, o ministro Luiz Edson Fachin acolheu o pedido e concedeu medida cautelar suspendendo o citado parecer da AGU e as reintegrações de posse.

Dois aspectos importantes: o parecer 001/2017 da AGU, assinado pelo então presidente Michel Temer vinha sendo usado pela Funai e pelos ruralistas para anular a demarcação de várias terras indígenas e solicitar o despejos de comunidades. Em relação as reintegrações, o mínimo que se esperava da Suprema Corte era dar às comunidades indígenas o direito de não serem despojadas de seus territórios num contexto de pandemia, pois além de lutar contra o ingresso do vírus, as comunidades estariam expostas a violências perpetradas pela própria estrutura do estatal. Neste sentido, os povos indígenas estavam requerendo o direito sagrado a vida, o direito de não serem exterminados.

 

 

Articulação

Chamo a atenção para o fato dessas inúmeras articulações estarem alinhadas a várias outras, desde reuniões com parlamentares, discussões com pesquisadores e pesquisadoras de diversas instituições, dentre elas a Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco, e até mesmo as reuniões diárias com lideranças indígenas de diversas regiões do país. Os povos indígenas se reorganizaram para enfrentar a pandemia e manter a articulação política diária, se conectando nas reuniões virtuais e levantando suas demandas. Caciques, grupos de mulheres e jovens organizaram as barreiras sanitárias autônomas em seus territórios, num esforço coletivo para evitar a entrada do vírus e de invasores, num único objetivo de salvar a vida. Então, o principal avanço foi a capacidade de articulação dos povos indígenas, mesmo num contexto tão adverso, de se manter organizado enquanto povo com língua, cultura e modo próprio de ver e entender o mundo.

 

 

Racismo institucional

A situação exigiu isso. Assistimos os povos e comunidades entregues a próprio sorte enquanto o governo, numa conduta omissiva sistêmica, negava a pandemia e promovia a guerra aos povos indígenas. O racismo institucional se revelou de forma clarividente nos atos de agentes públicos que se negavam a atender indígenas que estão em terras pendentes de demarcação, nas retomadas e em contexto urbano. A precarização do subsistema de atenção à saúde indígena entrou em colapso. As invasões as terras indígenas aumentaram sobremaneira, pois madeireiros e garimpeiras ilegais não entraram em “quarentena”.

Enquanto isso, a Funai, o órgão indigenista oficial do Estado brasileiro, criado para promover a defesa dos direitos e interesses dos povos indígenas se alinhou aos interesses do patronato rural e publicou a Instrução Normativa n. 09/2020, que permite a legalização da ocupação ilegal de terras indígenas.

 

 

Demarcações

No que tange a demarcação, nada avançou. Ainda na gestão do ex-ministro da justiça Sérgio Moro, os processos demarcatórios que estavam em estágio mais avançados foram devolvidos para a Funai, retrocedente assim na marcha processual.

A perseguição e criminalização ao movimento indígena foi uma marca do ano de 2020. O ministro general Augusto Heleno fez uso de sua rede social para atacar a APIB e sua coordenadora executiva Sonia Guajajara. Ficou nítido que as articulações do movimento indígena incomodaram sobremaneira o governo Bolsonaro. As velhas táticas coloniais continuam presentes: a perseguição e a pacificação.

 

 

IHU On-Line – Como o senhor destacou, em outubro de 2020, o Supremo Tribunal Federal - STF deveria ter julgado questões relacionadas ao Marco Temporal, mas o julgamento foi adiado. Já há uma nova data prevista para o julgamento neste ano?

Eloy Terena – Ainda não há uma data marcada. Este sem dúvida é o principal processo atualmente no STF que irá discutir o “Regime Jurídico das Terras Indígenas”. Quando este processo for julgado, a Suprema Corte estará julgando o futuro das terras indígenas. O Recurso Extraordinário n.º 1.017.365, com repercussão geral reconhecida, também conhecido como “caso Xokleng”, servirá de parâmetro para a demarcação de todas as terras indígenas do Brasil.

 

Veja a área declarada como terra indígena Ibirama Laklano, em discussão no caso Xokleng  | Imagem: researchgate.net/figure/Mapa-da-terra-indigena-Ibirama-Laklano_fig1_32043755

 

O caso em questão, do povo Xokleng, é o mais emblemático no momento, tendo em vista que teve repercussão geral reconhecida. Trata-se do Recurso Extraordinário n.º 1.017.365, interposto pela Funai, onde se busca manter reconhecido o território tradicional do povo Xokleng, em Santa Catarina. O processo se originou em uma ação de reintegração de posse requerida pela Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina – FATMA, no ano de 2009. Na petição, a FATMA pretendia reaver área administrativamente declarada pelo Ministro de Estado da Justiça como de tradicional ocupação dos indígenas Xokleng, Kaigang e Guarani.

 

 

Tanto em primeira instância, quanto na segunda, as decisões foram contrárias aos interesses dos indígenas, razão pela qual o processo chegou ao Supremo por via do extraordinário. O recurso foi distribuído ao Ministro Edson Fachin e teve reconhecida a repercussão geral. O processo é tido pelo movimento indígena como emblemático, tanto que muitas organizações requereram ingresso no feito na qualidade de amicus curiae [em que se associam para fornecer subsídios ao Judiciário para que conheça a causa em mais detalhes]. São elas: Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Conselho do Povo Terena, Aty Guasu Guarani Kaiowá, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Conselho Indigenista Missionário, dentre outros.

Não é novidade que os direitos dos povos indígenas estejam em constantes disputas no campo político e judicial. Desde o período colonial, vários expedientes normativos foram emitidos tendo por objeto a posse desses territórios. Na atualidade são muitos os argumentos utilizados para impedir o reconhecimento formal de uma terra indígena. Entretanto, sem dúvida, o mais utilizado é a tese do “marco temporal”.

 

Povos indígenas em Santa Catarina | Fonte: Clovis Antonio Brighenti, 2012. Elaborado por Carina Santos de Almeida

 

Suspensões na pandemia

No início do mês maio de 2020, atendendo a um pedido incidental feito pela Comunidade Indígena Xokleng e outras organizações indígenas e indigenistas, o ministro do STF Edson Fachin, por meio de decisão fundamentada, suspendeu todas as ações judiciais de reintegrações de posse ou anulação de processos de demarcação de terras indígenas enquanto durar a pandemia de Covid-19 ou até o julgamento final do Recurso Extraordinário n.º 1.017.365, com repercussão geral reconhecida (Tema n.º 1.031).

Neste mesmo processo, o ministro relator também suspendeu os efeitos do Parecer n.º 001 da Advocacia-Geral da União (AGU) e determinou que a Fundação Nacional do Índio (Funai) “se abstenha de rever todo e qualquer procedimento administrativo de demarcação de terra indígena, com base no Parecer n.º 001/2017/GAB/CGU/AGU”.

O citado Parecer n.º 001 da AGU vinha causando imensos prejuízos aos povos indígenas. Além de vincular todas as demarcações de terras ao que foi decidido no caso Raposa Serra do Sol, também pretendia fixar a data de 5 de outubro de 1988 como marco temporal para a demarcação das terras indígenas. Ou seja, as comunidades indígenas que não estivessem em suas terras em 5 de outubro de 1988, segundo essa tese, perderiam seus direitos territoriais. E ainda, este parecer da AGU também estava sendo usado para rever processos de demarcação, fazendo com que a Procuradoria Especializada da Funai desistisse de vários processos judiciais, abrindo mão da defesa de comunidades indígenas e do próprio interesse da União – tendo em vista que Terra Indígena é bem público federal (Art. 20, inciso XI). Como consequência, comunidades indígenas estavam perdendo os processos e ficando sem defesa, o que fere o direito fundamental ao devido processo legal.

A suspensão do Parecer n.º 001 da AGU e o mérito desse processo será analisado pelo Pleno do STF no dia 28 de outubro. Esse julgamento é muito importante para todos os povos indígenas do Brasil. Após séculos de violências, remoções forçadas e extermínio de povos inteiros, a Suprema Corte terá a oportunidade de fazer valer o artigo 231 da Constituição, que determina que as terras indígenas, utilizadas para as atividades produtivas e para a preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar dos povos indígenas, bem como aquelas que são necessárias para a reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, devem ser demarcadas e protegidas.

 

 

IHU On-Line – Quais têm sido os efeitos e os impactos da pandemia de Covid-19 entre as comunidades indígenas?

Eloy Terena – Segundo dados divulgados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib, até 08 de janeiro de 2021, mais de 44 mil indígenas foram contaminados pelo novo coronavírus, afetando mais da metade dos 305 povos que vivem no Brasil. A Apib, e todas as organizações indígenas de base, com representações nas cinco regiões do país, em face à pandemia da Covid-19, tem apoiado diariamente a luta dos povos indígenas na defesa da vida. Durante esses meses, as violências contra os povos indígenas aumentaram dentro e fora dos territórios.

 

 

Os criminosos que invadem nossas terras não fizeram quarentena e, muito menos, home office. Afirmamos que o agravamento das violências contra os povos indígenas, durante a pandemia, foi incentivado pelo presidente Bolsonaro. O contexto da pandemia tem facilitado as invasões em territórios indígenas por parte de grileiros e fazendeiros em todas as regiões do país. Por iniciativa própria, as lideranças e suas comunidades criaram e estão mantendo centenas de barreiras sanitárias para impedir a chegada do vírus nas comunidades. Uma medida que o Governo Federal não apenas negligenciou, mas tentou sabotar de diferentes formas. Essa ação de base, que nossas comunidades implementaram por conta própria, foi fundamental para minimizar os impactos do novo coronavírus entre nossos parentes por todo o país.

 

 

IHU On-Line – Como, na sua avaliação, o poder público tem conduzido as ações relativas ao enfrentamento da pandemia de Covid-19 nas comunidades indígenas?

Eloy Terena – O Governo Federal tem promovido uma fúria gananciosa do agronegócio, das mineradoras, corporações e fundos de investimentos internacionais. Incentiva a ação de grileiros, invasores e tantos outros criminosos que seguem avançando para dentro dos territórios indígenas, aproveitando-se da tragédia que vivemos. O fogo e o desmatamento, realizados em 2020, não puderam ser negados por imagens de satélites ou por nosso céu permanentemente encoberto. Parece até que nas chamas eles veem lucro e, em árvores derrubadas. Só há ganância.

Neste sentido, denunciamos as agressões contra os nossos direitos no âmbito do legislativo, que validam o racismo, desumanizam a nossa existência e pretendem tirar nossa autodeterminação sobre territórios e vidas. Recorremos ao Poder Judiciário para defender os nossos direitos assegurados pela Constituição Federal de 1988. Ao longo desses 11 meses, provocamos o Judiciário através de ações, entre elas, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709 no Supremo Tribunal Federal (STF). Conseguimos vitórias, como a determinação do STF de obrigar o Governo Federal a cumprir seu dever de proteger os povos indígenas nesse contexto da pandemia. Uma decisão do Supremo que segue sem ser cumprida por Bolsonaro.

 

 

IHU On-Line – Em quais territórios indígenas os casos de Covid-19 são mais graves e em quais territórios a situação está mais controlada?

Eloy Terena – As informações oficiais sobre o impacto da pandemia na população indígena são disponibilizadas pelo Ministério da Saúde a partir de três sistemas de informação: Sivep-Gripe, e-SUS Notifica e da Secretaria Especial de Saúde Indígena – Sesai. Os usuários sintomáticos gripais atendidos pela rede SUS municipal são registrados na base e-SUS. Esse sistema registra principalmente os casos leves e moderados. Mas a vigilância da influenza e de outros vírus respiratórios, assim como os casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave – SRAG e os casos de agravamento de síndrome gripal, são registrados na base Sivep-Gripe.

Os casos de SRAG, majoritariamente, devem passar por internação, sendo a principal causa de óbito pela Covid-19. Esses dois sistemas, e-SUS Notifica e Sivep-Gripe, precisam registrar a variável cor ou raça para que se identifiquem os casos de indígenas. Os casos reportados pela Sesai, por sua vez, advêm dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), fazendo parte do Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena – Siasi, cujo banco de dados não é disponível publicamente, diferentemente dos anteriores.

Segundo dados atualizados do Instituto Socioambiental – ISA, as 10 terras indígenas com maior vulnerabilidade frente a COVID foram: TI Barragem; TI Yanomami; TI Jaraguá; TI Vale do Javari; TI Guarani do Krukutu; TI Raposa Serra do Sol; TI Rio Branco; TI Serra da Moça; TI Truaru e TI Alto Rio Negro. Já os territórios com menor vulnerabilidade são: TI Cantagalo; RI Praia do Mangue; RI Praia do Índio; TI Aldeia Velha; TI Tapeba; TI Coroa Vermelha.

 

Mais detalhes sobre as situação das comunidades pode ser acessado em site especial criado pelo ISA

 

IHU On-Line – A pandemia tornou ainda mais evidente as desigualdades sociais no Brasil. Como, na sua avaliação, essas desigualdades se manifestam especificamente em relação aos povos indígenas?

Eloy Terena – As desigualdades sociais e econômicas que afligem a sociedade brasileira atingem de igual modo os povos e comunidades indígenas. No caso dos povos originários tem-se um elemento a mais, pois toda a estrutura política e econômica que afetam negativamente os territórios estão relacionados ao racismo que vitima os povos desde o período colonial. Ou seja, os povos indígenas são vitimas de condutas que se justificam ainda na ideia de que os indígenas são menos humanos e, portanto, necessitariam evoluir ou não devem ver respeitados suas especificidades culturais. É com base nesse sentimento que tanto o Estado brasileiro, agentes estatais, empresas e boa parte da sociedade tendem a ignorar a identidade cultural dos povos originários e, a partir dessa atitude, violar a dignidade cultural dos povos.

Essas desigualdades se manifestam na forma como a pandemia se alastra nas comunidades, sobretudo por conta do descaso do poder público e a postura genocida do líder do Executivo com relação aos povos indígenas. O sucateamento da Funai, a negligência frente aos DSEIs no país todo e o descumprimento do programa de implementação e manutenção das barreiras sanitárias nos territórios indígenas com a presença de povos isolados são exemplos do desmonte e descaso que consideravelmente atingem os povos indígenas muito mais do que a não indígena.

 

 

IHU On-Line – A pandemia também mostrou as fragilidades na área da saúde. Particularmente em relação à saúde das comunidades indígenas, quais são os principais gargalos e desafios?

Eloy Terena – O Brasil possui atualmente mais de 900 mil indígenas, 305 povos, 274 línguas faladas e ainda, 114 grupos isolados ou de recente contato. Nos últimos meses, temos acompanhado com preocupação o avanço da pandemia sobre as comunidades indígenas. Segundo dados do Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena [O Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena foi criado pela APIB ao final da Assembleia Nacional da Resistencia Indígena, realizado entre os dias 08 e 09 de maio de 2020. O grupo reúne ativistas e comunicadores indígenas que coletam diariamente dados das organizações locais e comunidades indígenas sobre o avanço da pandemia nas terras indígenas e indígenas que estão fora de seus territórios] da Apib, até o dia 08 de janeiro de 2021, o país registrava 913 indígenas falecidos, 44.525 infectados e 161 povos atingidos pelo vírus. Os estados com maior número de casos de mortes são Amazonas, Pará, Roraima, Mato Grosso e Maranhão. Nota-se que o vírus se alastrou de forma rápida entre os indígenas.

A pandemia expôs as fragilidades que as equipes de atenção primária à saúde (APS) do Sistema Único de Saúde – SUS e, mais intensamente, as do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena –Sasisus enfrentam cotidianamente há anos, como: falta de infraestrutura adequada; insuficiência de equipamentos de proteção individual (EPI); reduzido estoque de insumos e medicamentos; alta rotatividade de profissionais; dificuldades de garantir formação adequada e implementar educação permanente com as equipes; problemas de integração com a rede de saúde; e a situação de precariedade e insalubridade das Casas de Saúde do Índio (CASAI).

A realidade das áreas remotas e dos DSEI mais interiorizados conta ainda com outras dificuldades como: restrições de comunicação (algumas áreas têm comunicação exclusivamente via rádio); dificuldade de acesso e dificuldades logísticas decorrente do isolamento geográfico (alguns DSEI têm acesso apenas por via fluvial ou aérea); além da complexidade do cuidado de populações indígenas no contexto intercultural.

 

Eloy Terena é da Terra Indígena Ipegue, localizada no Mato Grosso do Sul (Fonte: Google Maps)

 

A propagação da Covid em relatórios

Desde o início da pandemia, vários estudos já alertavam para a exposição dos povos indígenas. O relatório “Risco de espalhamento da COVID-19 em populações indígenas: considerações preliminares sobre vulnerabilidade geográfica e sociodemográfica”, divulgado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em abril de 2020, apontava para as condições de desvantagem dos indígenas em comparação à população não indígena em inúmeros indicadores sociodemográficos e sanitários, com destaque para as populações residentes nas Terras Indígenas (TI), nas quais se observa, por exemplo, menor proporção de escolaridade formal, menor cobertura de saneamento e elevada mortalidade precoce.

 

Acesse aqui a íntegra do relatório da Fiocruz

 

Segundo o citado relatório, cerca de 22% (89.000) da população indígena rural no Brasil reside em municípios com alto risco (>50%) de epidemia a curto prazo, com destaque para a Amazônia Legal, com 21,1% da população rural nessa condição. A população residente em terras indígenas tem padrão muito similar ao da totalidade da população indígena rural.

Outro estudo publicado pela Associação Brasileira de Estudos Populacionais – Abep, analisou 471 terras indígenas do Brasil, com base no levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, levando em consideração fatores como a distância de centros com unidades de terapia intensiva, saneamento e porcentagem de idosos na comunidade. O estudou apontou que 62% das terras indígenas do Brasil que estão em situação de alta vulnerabilidade encontram-se na região norte do país, ou seja, na região Amazônica.

A região Amazônica concentra 62% das terras nas categorias vulnerabilidade crítica e intensa. Ou seja, está na Amazônia a maioria das Terras Indígenas em situação crítica para a pandemia do coronavírus no Brasil. Além de sete territórios com maior fragilidade, os estados da Amazônia Legal possuem 239 TIs com índices de vulnerabilidade intensos ou altos em relação à Covid-19.

A pesquisa da Abep analisou o índice de vulnerabilidade demográfica e infraestrutural das terras indígenas à COVID-19 por Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI). O DSEI é a unidade gestora descentralizada do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS). Trata-se de um modelo de organização de serviços – orientado para um espaço etno-cultural dinâmico, geográfico, populacional e administrativo bem delimitado – que contempla um conjunto de atividades técnicas que se fundamentam em medidas racionalizadas e qualificadas de atenção à saúde. E ainda, é o DSEI que promove a reordenação da rede de saúde e das práticas sanitárias por meio de atividades administrativo-gerenciais necessárias à prestação da assistência, com base no Controle Social. Atualmente no Brasil existem 34 (trinta e quatro) DSEI divididos estrategicamente por critérios territoriais, tendo como base a ocupação geográfica das comunidades indígenas, não obedecendo assim aos limites dos estados. Sua estrutura de atendimento conta com unidades básicas de saúde indígenas, polos base e as Casas de Apoio a Saúde Indígena (CASAI).

Neste sentindo, considerando o papel desempenhando pelos DSEIs na prevenção e gestão da pandemia de COVID-19 junto aos povos indígenas, os pesquisadores agregaram a análise as variáveis demográficas e infraestruturais que compõem o IDVIC e que foram calculadas pelas Terras Indígenas para os DSEIs. Assim, os DSEIs que apresentam um nível crítico de vulnerabilidade são:

A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), por meio do Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena tem publicado em seu site e redes sociais informativos sobre os casos nos territórios da Amazônia, uma vez que os dados da SESAI apresentam dados incompletos, pois a SESAI não contabiliza os casos de pessoas indígenas que não estejam vivendo em suas aldeias. Conforme seus relatórios, baseados em dados da SESAI, informações de lideranças, profissionais de saúde e organizações da rede COIAB, no dia 30 de novembro de 2020, havia na Amazônia um total de 709 indígenas mortos, vítimas do novo coronavírus, 29.350 indígenas infectados e 135 povos atingidos.

 

Casos registrados entre os povos indígenas nos 9 estados da Amazônia brasileira:

 

Vias judiciais

Diante da omissão sistêmica do governo brasileiro em proteger as vidas e os territórios indígenas, em julho de 2020, a Apib apresentou uma ação judicial histórica diante da Corte Constitucional brasileira, o STF. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709 pleiteou que o governo federal implementasse medidas necessárias para garantir a saúde indígena, em meio à crise global imposta pela pandemia de Covid-19.

O Ministro Luís Roberto Barroso, relator dos autos, deferiu de forma cautelar que fosse estabelecido:

 

(I) Plano Geral de Enfrentamento e Monitoramento da Covid-19 para Povos Indígenas, referente aos povos indígenas em geral do Brasil;

(II) Plano de Barreiras Sanitárias;

(III) Sala de Situação, referente aos povos indígenas isolados e de recente contato (PIIRC).

 

Ao julgar o referendo dessa Medida Cautelar no dia 05 de agosto de 2020, o Plenário do STF decidiu com unanimidade pela sua manutenção, com votos que sinalizavam a necessidade de que fosse também pensado um plano para desintrusão e extrusão dos invasores das terras indígenas. Além de serem as responsáveis pelo desmatamento ilegal e destruição dos biomas, as invasões em terras indígenas estão entre as principais causas de alastramento da Covid-19 entre os povos indígenas. Mesmo após essas decisões judiciais categóricas, é imprescindível destacar a omissão do governo federal brasileiro em cumpri-las de forma eficiente.

Infelizmente, o Brasil se tornou um exemplo lastimável de incapacidade para enfrentar a pandemia do novo coronavírus, como é noticiado constantemente na imprensa nacional e internacional. Com os povos indígenas, o governo federal segue agindo da mesma forma.

 

 

IHU On-Line – Como a vacinação contra Covid-19 tem sido discutida entre as lideranças indígenas?

Eloy Terena – Os povos indígenas têm consciência que a vacina é boa para a saúde. Em muitas comunidades indígenas a “memória tribal” contribui para o entendimento que com o surgimento da vacina, no passado recente, muitas doenças desapareceram e as crianças pararam de morrer. Entretanto, é preciso reconhecer que com a velocidade das informações e a internet chegando nas aldeias, o discurso negacionista de igual modo adentrou as comunidades.

Em grande medida, a postura do presidente Jair Bolsonaro tem contribuído para colocar em dúvida os benefícios da vacina. É por conta desse cenário que a Apib tem feito a campanha em prol da vacinação. Muitas lideranças estão gravando depoimentos e vídeos para incentivar os parentes.

 

 

Exclusão em contexto urbano

Outro aspecto diz respeito aos indígenas que estão nas áreas não homologadas e/ou em contexto urbano. O plano de vacinação divulgado pelo governo exclui os indígenas inseridos nesta situação. Essa postura por parte do governo afronta a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 709, pois já está sedimentado que o indígena não perde sua identidade cultural pelo fato de estar na cidade estudando e/ou trabalhando, muito menos por estar em área de retomada pendente de homologação.

Aliás, o STF também já decidiu que o direito dos povos indígenas independe de homologação, pois este é apenas um ato estatal que reconhece situação pré-existente. Ou seja, a terra indígena já existe, o processo demarcatório é apenas uma expressão de vontade do Estado reconhecendo os limites territoriais.

 

 

IHU On-Line – Quais são os principais desafios das comunidades indígenas neste ano?

Eloy Terena – Os principais desafios das comunidades giram em torno da resistência frente aos ataques diretos e indiretos orquestrados pelo Governo Federal, não só no contexto da pandemia, mas também na seara das violações constitucionais dos direitos dos povos originários.

Os povos indígenas têm seus direitos reconhecidos na Constituição Federal de 1988 e em outros tratados internacionais de direitos humanos. Então o problema não está na lei, mas sim em dar efetividade a estes termos legais. O ponto central no respeito a tais direitos está no reconhecimento da diversidade étnica existente no Brasil. Esses direitos estão atrelados a identidade cultural, portanto, são direitos identitários.

Somente a partir do momento que o Estado brasileiro, seus agentes estatais e boa parcela da população brasileira conseguirem entender esses direitos identitários será possível trabalhar o reconhecimento dos direitos vinculados aos territórios indígenas, ao respeito a cosmovisão indígenas, enfrentar o encarceramento indígenas e demais direitos coletivos como direito a saúde e educação específica, bilíngue e diferenciada.

 

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