"No instante em que se anuncia uma nova ditadura, ainda pior do que a de 1964, Frei Carlos Josaphat faz muita falta". Entrevista especial com Roberto Romano

Professor e ex-dominicano retoma a trajetória de luta de um dos principais pensadores da congregação contra as tiranias que tomaram (e tomam) o poder no Brasil com o apoio da imprensa tradicional

Frei Josaphat na década de 1960 (Imagem: reprodução Blog do Renato)

Por: Ricardo Machado | 23 Novembro 2020

No dia 9 de novembro de 2020, faleceu o Frei Carlos Josaphat, um dos mais importantes pensadores dominicanos brasileiros. Sua trajetória está marcada na história do Brasil, como um dos importantes protagonistas em favor dos pobres e da verdade no contexto nacional no período que culminaria, em 1964, com o golpe civil-militar. “Quando [Frei Josaphat] fundou o jornal Brasil Urgente, o seu intento era sanar as falhas gritantes da imprensa da época. Além de jornais reacionários ou conservadores, os profissionais e democratas de então só tinham alguns órgãos que lutavam pelas causas populares”, conta Roberto Romano, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

 

“O profetismo de Frei Josaphat, como o de todos os profetas autênticos, foi pouco ouvido pela massa popular. No entanto, ele serviu como sinal de alerta para todos os democratas que, nas páginas do pequeno jornal, liam análises sérias e duras sobre as manobras liberticidas em andamento”, complementa. Romano ainda recorda que a partida de Frei Josaphat neste momento é, também, significativa. “No instante em que se anuncia uma nova ditadura, ainda pior do que a de 1964, Carlos Josaphat faz muita falta. Mas graças ao seu trabalho, milhares de brasileiros aprenderam a defender o belo, o bom, o verdadeiro”, frisa.

 

Orientado politicamente pela escolha aos pobres, Frei Josaphat optou pelo difícil, mas único possível, caminho da verdade para seguir uma vida de 99 anos completados no último 4 de novembro. “A Ordem dos Pregadores tem como lema o dístico Veritas. E assim foi o profetismo de nosso Josaphat: a verdade contra os golpes, as mentiras, as propagandas enganosas, os poderes tirânicos. A Verdade lhe custou caro, como aliás foi cara ao Mestre de todos ‘Eu sou a verdade e a vida’”, rememora Romano.

 

Roberto Romano (Foto: IHU/Ricardo Machado)

Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Cursou doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS, França. Escreveu, entre outros livros, Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São Paulo: Kairós, 1979), Conservadorismo romântico (São Paulo: Ed. UNESP, 1997), Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII (São Paulo: SENAC, 2002), O desafio do Islã e outros desafios (São Paulo: Perspectiva, 2004) e Os nomes do ódio (São Paulo: Perspectiva, 2009).

 

Quem foi Frei Josaphat

Frei Carlos Josaphat (Foto: Reproducao/Facebook)

Frei Carlos Josaphat foi professor da Escola Dominicana de Teologia – EDT, de São Paulo, do Instituto Teológico de São Paulo – Itesp, da Pontifícia Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade de Minas Gerais, dentre outras. Além de diversas obras publicadas na Europa, é autor de inúmeras obras no Brasil, das quais destacamos, Evangelho e revolução social (Ed. Loyola, 2002, reedição de aniversário dos 40 anos da obra), Evangelho e diálogo inter-religioso (Ed. Loyola, 2003), Falar de Deus e com Deus hoje (Ed. Paulus, 2004), Ética e mídia: Liberdade, responsabilidade e sistema (Ed. Paulinas, 2006), Frei Bartolomeu de Las Casas: Espiritualidade contemplativa e militante (Ed. Paulinas, 2008) e Ética mundial: Esperança da humanidade globalizada (Ed. Vozes, 2010).

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como podemos compreender a história dos Dominicanos no Brasil e qual a importância de Frei Carlos Josaphat neste passado recente? Qual sua importância como figura pública?

Roberto Romano – A figura pública de Frei Josaphat se agiganta quando sabemos que todo frade dominicano está unido à Ordem que o acolheu e mantém. Dou o exemplo mais citado quando se trata de estudar a vinda tardia dos filhos de São Domingos ao Brasil. Pedida a licença a Dom Pedro II, o monarca no início a recusou. “Não posso aceitar em meu reino integrantes de uma Ordem que operou a Inquisição”. As palavras não foram exatamente assim, mas o espírito é fiel ao que disse o soberano.

Após muitas consultas, contaram a Dom Pedro que o setor dominicano a entrar aqui viria da França. Logo, os religiosos trariam os ideais de Lacordaire. Pedro II conhecia a história de Lacordaire, um renovador da Ordem Dominicana na Europa, ligado ao assim dito catolicismo liberal, pessoa que militou no jornalismo, na política, nas lutas sociais. Entre as reivindicações do mencionado movimento (que unia a defesa da autoridade papal ao liberalismo político, sob inspiração de Lamennais) estava a liberdade de imprensa e associação.

Grande orador, Lacordaire valorizava o verbo e tinha uma predileção pela teologia do Verbo na Igreja. Em 1790 a Ordem dos Pregadores fora abolida na França. O escrito de Lacordaire, Mémoire pour le rétablissement en France des Frères Prêcheurs, sublinha algo quase inédito na Igreja: o respeito à liberdade religiosa e à liberdade de reunião.

Coerente, ele foi hostil à monarquia reacionária de Julho na França, apoiou a Revolução de 1848 e o regime republicano. Com Ozanam ele passou ao campo do catolicismo social. Foi eleito deputado da Assembleia Nacional Constituinte. Renunciou ao perceber que a política não traduzia corretamente os ideais proclamados ao povo. Foi opositor firme ao golpe e ao império de Luís Napoleão. No final da vida foi eleito membro da Academia Francesa.

A autorização de Pedro II à vinda dos dominicanos, devida à presença de Lacordaire, mostra muito das preferências culturais e políticas do imperador. Embora o regime fosse autoritário e seu dirigente máximo usasse todos os meios ao seu alcance para governar, a mente moderna do reinante lhe abria caminhos para a superação do absolutismo, a valorização da vida republicana e de suas liberdades, entre elas a de imprensa e de escolha partidária.

Aqui chegados, os dominicanos se estabeleceram no âmbito da corte, mas logo iniciaram missões para o interior desconhecido do Brasil: no Araguaia, em Uberaba, em vários pontos carentes de apoio social e religioso. Em tal empreitada, da Ordem surgiram figuras gigantescas e ao mesmo tempo humildes que ajudaram a edificar um catolicismo aberto à democracia, à liberdade de imprensa e de opinião, à pesquisa científica.

Com o risco de ser injusto, cito alguns gigantes:

Frei Mateus Rocha, que dialogou com Darcy Ribeiro e esteve nos primórdios da Universidade de Brasília; Dom Alano de Noday, que incentivou ao máximo o trabalho missionário da Ordem na região Norte do Brasil;

Frei Chico, pregador de massas que formou gerações de católicos empenhados na mudança social;

Frei Rosário Joffily, administrador do Santuário de Nossa Senhora da Piedade em Minas;

Frei Gil (de origem indígena, formado em antropologia, que trabalhou junto aos setores atacados por firmas capitalistas e por missionários protestantes que, imprudentemente, desejavam batizar sem cautelas a maior quantidade de tribos);

Frei Bernardo Catão, grande especialista no pensamento de Tomás de Aquino;

Frei Tomás Balduíno, campeão da causa indígena perseguido pela ditadura de 1964;

Frei Domingos Maia Leite, provincial que enfrentou a ditadura quando os dominicanos foram presos em 1969;

Frei Benevenuto de Santa Cruz, que administrou durante décadas a Livraria Duas Cidades, centro cristão progressista que formou gerações de líderes políticos e sociais em São Paulo e no Brasil;

Frei Guilherme Nery Pinto, sábio ouvido e acatado pelos seus irmãos e por inúmeros leigos. Muitos outros nomes poderiam ser acrescentados à lista.

Mas os leitores atentos à história religiosa e política brasileira saberão os localizar, sempre em campos de batalha pela cultura, ciência, filosofia, teologia, democracia, república, liberdade.

Eles formam uma imensa galáxia luminosa que ajudou o Brasil a se formar para a modernidade e a vida livre. Um nome a ser lembrado com plena justiça é o do Padre Lebret, fundador do movimento Economia e Humanismo. Ele ajudou a conceber um plano de ordenamento urbano para a cidade de São Paulo, foi muito importante na geração de administradores públicos brasileiros que levaram adiante seus ideais de uma economia não tolhida pelas doutrinas capitalistas ou pelo socialismo dogmático que então dominavam a cena planetária. Sua importância para o Concílio Vaticano II e para países pobres ainda hoje se faz sentir. Ele inspirou os frades dominicanos, dando-lhes uma visão universal de sua existência.

É no interior de tal galáxia que podemos situar a existência de Frei Carlos Josaphat. Retomando Lacordaire, ele foi um defensor da liberdade a mais ampla, incluindo a de imprensa. Republicano, fiel ao Papa mas fiel aos concidadãos, ele sempre operou com as vistas para as duas cidades, a divina e a dos homens.

 

IHU On-Line – Frei Josaphat lançou o jornal Brasil Urgente, semanário que circulou entre março de 1963 e abril de 1964. Como foi a experiência?

Roberto Romano – Quando fundou o jornal Brasil Urgente, o seu intento era sanar as falhas gritantes da imprensa da época. Além de jornais reacionários ou conservadores, os profissionais e democratas de então só tinham alguns órgãos que lutavam pelas causas populares. Entre vários, citemos a Tribuna da Imprensa e a Última Hora. O clima era de golpe a ser aplicado pela extrema direita que, após a ditadura Vargas, viria abolir a frágil democracia consagrada pela Carta de 1946.

Com sede de poder, os que operavam ao redor da União Democrática Nacional - UDN tudo faziam para divulgar as piores mentiras sobre o governo brasileiro. Tais setores uniram-se a oligarcas corruptos e a operadores dos interesses norte-americanos. O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais - IPES e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática - IBAD, agiram como centrais de propaganda do golpe, distribuindo “noticiários” e “informações” para todos os veículos de imprensa, para os cinemas, e para a incipiente televisão.

Tudo caminhava para a instauração de uma ditadura civil/militar subserviente aos interesses norte-americanos. Urgia alertar o povo brasileiro do que estava sendo urdido. Daí o semanário Brasil Urgente com recorte nacionalista, combativo, de esquerda sem ligações profundas com o Partido Comunista e outras organizações mais definidas do campo progressista.

O profetismo de Frei Josaphat, como o de todos os profetas autênticos, foi pouco ouvido pela massa popular. No entanto, ele serviu como sinal de alerta para todos os democratas que, nas páginas do pequeno jornal, liam análises sérias e duras sobre as manobras liberticidas em andamento.

 

IHU On-Line – Durante os anos de chumbo, qual foi a importância de Frei Josaphat no contexto brasileiro? Por que ele precisou se exilar?

Roberto Romano – Com o golpe, a perseguição selvagem do regime ditatorial se anuncia e passa a prender, torturar, matar quem resistiu ao regime anti-pátria. A calamidade foi tamanha que um apoiador do golpe, grande intelectual digno de respeito, Alceu Amoroso Lima, denunciou o “terrorismo cultural” do regime imposto. É assim que a vida de Frei Carlos Josaphat ficou em perigo. Seguindo os conselhos de seus irmãos de hábito, ele se dirigiu à Europa onde continuou sua luta em prol da liberdade, da democracia, da justiça social.

Conhecendo as fraquezas da mídia, tanto a impressa quanto a radio/televisiva, ele passou a se dedicar com afinco ao estudo das comunicações sociais. Sua voz passou a ser ouvida pela Igreja mundial e por movimentos políticos os mais diversos. Data de tal ocasião sua tese de doutoramento sobre a ética da comunicação.

Por conhecer o lado sombrio da comunicação reacionária e de má-fé brasileira e mundial, seus estudos vão fundo na diagnose dos problemas mais relevantes da moral e da ética no jornalismo e em outros setores comunicacionais. Não por acaso ele também se dedicou a Hegel (no tocante à importância do filósofo para a teologia) e a Bartolomeu de Las Casas: o mais profundo conhecimento filosófico unido à mais radical defesa dos direitos humanos, a começar com os indígenas. Seu profetismo foi, assim, polifacetado e polivalente, seguindo os passos dos grandes doutores dominicanos e da sua Igreja, católica.

 

IHU On-Line – Como foi sua convivência pessoal com o Frei Josaphat e qual o impacto dele na sua formação?

Roberto Romano – Não tive com ele trato pessoal mais próximo. Quando me preparava para iniciar a vida de estudos na Ordem, fui orientado por Frei Bernardo Catão a me dirigir até a Suíça, onde poderia receber instruções suas. Na época, eu estudava o pensamento neo-hegeliano, donde talvez a fonte da sugestão de Frei Bernardo. Segui sua vida de longe, mas percebendo o quanto ela determinava o pensamento cristão de nossa terra.

 

IHU On-Line – No dia 4 de novembro, Frei Josaphat completou 99 anos. Olhando em perspectiva essa trajetória, que atravessou décadas turbulentas do Brasil, qual a importância de fazer memória dessa figura pública e celebrar essa história?

Roberto Romano – No campo de seus estudos, um dos mais urgentes no meu entender é o que ensina a ética aos atuais jornalistas (L’éthique professionnelle des journalistes, 1982). Diante de profissionais da imprensa que fogem da ética, aceitam tiranos e os louvam, o profetismo de Carlos Josaphat é radical. A Ordem dos Pregadores tem como lema o dístico Veritas. E assim foi o profetismo de nosso Josaphat: a verdade contra os golpes, as mentiras, as propagandas enganosas, os poderes tirânicos. A Verdade lhe custou caro, como aliás foi cara ao Mestre de todos “Eu sou a verdade e a vida”.

O mesmo apaixonado amor pela verdade e justiça foi partilhado pelos frades dominicanos presos, torturados, caluniados pela imprensa brasileira, em 1969. O testemunho mais dolorido foi o de Frei Tito de Alencar, um mártir da tirania ditatorial. No instante em que se anuncia uma nova ditadura, ainda pior do que a de 1964, Carlos Josaphat faz muita falta. Mas graças ao seu trabalho, milhares de brasileiros aprenderam a defender o belo, o bom, o verdadeiro. Que Deus o acolha em sua glória!

 

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