A incidência do Banco Mundial nas políticas públicas brasileiras não visa à constituição de uma sociedade mais igualitária. Entrevista especial com João Márcio Mendes Pereira

O Banco Mundial tem atuado como “uma força de indução de reforma do Estado brasileiro” e suas diretrizes para enfrentar a extrema pobreza não propõem medidas de combate à concentração de renda e riqueza, diz o pesquisador

Foto: Antônio Cruz | Agência Brasil

Por: Patricia Fachin | 22 Setembro 2020

Historicamente, o Brasil é o segundo maior cliente do Banco Mundial, ficando atrás apenas da Índia. Nos dias de hoje, apesar de o país ser mais independente financeiramente em comparação com o que foi nos anos 1980, “a incidência do Banco Mundial no Brasil é muito superior ao que se supõe”, e a atuação da instituição “se tornou amplamente difundida no país”, informa o professor João Márcio Mendes Pereira à IHU On-Line. “É importante frisar que o Banco não se relaciona apenas com a União, mas também com estados e municípios”, menciona.

 

De acordo com o pesquisador, a principal forma de atuação do Banco Mundial no Brasil, nos últimos anos, tem se dado a partir da orientação das políticas públicas a serem adotadas no país. Segundo ele, “por meio da remodelagem da gestão pública e do gasto público” em diversos setores, “combinando empréstimos, aconselhamento, assistência técnica e influência intelectual”, a instituição tem como finalidade tornar o Brasil uma sociedade de mercado e maximizar o lucro das instituições privadas. “Cabe ao Estado, na visão do Banco, criar condições institucionais e legais para amparar essa construção e proteger a propriedade privada (patrimonial e financeira), cuja concentração em poucas mãos só fez aumentar nas últimas décadas”, pontua.

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Pereira explica como esse fenômeno tem ocorrido no país, especialmente na área da educação, com o fortalecimento das instituições privadas e a diminuição do investimento do Estado nas escolas e universidades públicas, ampliando ainda mais as desigualdades. “O Banco apresenta uma visão economicista e administrativista da educação, como uma atividade a ser gerida por economistas e administradores, e não por educadores. A educação pública é pensada como uma área importante para o ajuste fiscal, ou seja, uma área que deve passar por cortes de gasto”. Nos últimos anos, frisa, o Banco tem difundido a ideia de que a educação é um “setor econômico aberto a negócios, como qualquer outro”. Nesse sentido, menciona, “há, cada vez mais, uma exaltação do papel do setor privado (filantrópico e empresarial), com o objetivo de tornar a educação um setor de serviços aberto à competição global”. É neste contexto que grandes conglomerados empresariais de educação crescem no país.

 

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João Márcio Mendes Pereira (Foto: Arquivo pessoal)

João Márcio Mendes Pereira é doutor em História pela Universidade Federal Fluminense - UFF e atualmente leciona na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ, onde coordena o Núcleo de Estudos sobre Capitalismo, Poder e Lutas Sociais - Necap.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Como são feitas as pesquisas e elaboradas as diretrizes do Banco Mundial para os países que se relacionam com a instituição? Essas pesquisas atendem a quais interesses?

João Márcio Mendes Pereira - Além de ser um emprestador de recursos aos Estados nacionais clientes, o Banco Mundial também fornece aconselhamento e assistência técnica a governos, bem como pesquisa econômica sobre o desenvolvimento capitalista. Por meio da pesquisa ele exerce influência intelectual sobre gestores públicos, formuladores de políticas e economistas, além da grande mídia, que costuma reproduzir os diagnósticos e as estatísticas do Banco como se fossem o suprassumo da excelência técnica. Por isso, é correto dizer que ele atua nos campos econômico, político e intelectual ao mesmo tempo.

O tipo de pesquisa que o Banco Mundial realiza envolve três dimensões: em primeiro lugar, a produção de conceitos, definições e normas, com o objetivo de delimitar os termos legítimos do debate sobre desenvolvimento; em segundo lugar, a elaboração de indicadores (métricas) e classificações, com base nos quais se constroem rankings internacionais abrangentes sobre a qualidade do “ambiente institucional” de cada país cliente e se exerce vigilância sobre cada um deles; por fim, a pesquisa fornece explicações sobre as causas dos problemas do desenvolvimento e embasa a prescrição de medidas que os governos devem adotar para superá-los.

O Banco Mundial tem cerca de 12.300 funcionários em tempo integral, dos quais 60% trabalham na sede em Washington, e mais aproximadamente uns cinco mil consultores temporários. A atividade de pesquisa é concentrada pelo Development Economics Vice Presidency - DEC, mas também é feita pelos diversos departamentos, pela Leadership, Learning, and Innovation Vice Presidency e por redes de conhecimento global que são patrocinadas pelo Banco, como o Consultive Group on International Agricultural Research, o Consultive Group to Assist the Poor e a Global Development Network.

 

 

O conhecimento produzido pelo Banco Mundial é gerado pela interação de seis fatores principais:

1) as pautas e demandas dos Estados Unidos e outros grandes acionistas ocidentais;

2) a relação com organizações da sociedade civil (fundações empresarial-filantrópicas, grandes organizações não governamentais e think tanks econômicos) estabelecidas nos países mais influentes, principalmente nos Estados Unidos;

3) a relação com os países clientes e suas políticas nacionais;

4) o predomínio da Economia como disciplina mestra e a evolução das modas e convenções no debate econômico internacional;

5) as redes de conhecimento especializado e fóruns de políticas nos quais ideias e propostas sobre ajuda internacional ao desenvolvimento são disputadas e negociadas;

6) os mecanismos burocráticos internos de filtragem e promoção de determinados modelos, conceitos e abordagens, em detrimento de outros. Além da pesquisa própria ou encomendada a consultores externos altamente selecionados, o Banco também atua como caixa de ressonância e correia de transmissão de determinados modelos, conceitos e ideias produzidos externamente – por exemplo, pelo Tesouro americano, por think tanks estabelecidos em Washington ou mesmo pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE.

A legitimidade intelectual do Banco se baseia na premissa da neutralidade do saber técnico e no caráter multilateral da instituição, percebido como menos politizado e mais neutro do que organizações bilaterais. Tenho argumentado que, apesar da aparência de neutralidade técnica, a pesquisa por ele realizada é essencialmente normativa, uma vez que visa dar suporte às suas prioridades financeiras e políticas. Além disso, nada do que o Banco faz se volta para a construção de capacidade de pesquisa independente nos países clientes.

 

IHU On-Line - Como a relação do Brasil com o Banco Mundial foi se modificando desde os anos 1980 até hoje? O país é cada vez mais dependente ou independente do Banco Mundial e por quais razões?

João Márcio Mendes Pereira - Mais independente, certamente, pois o país não passa por uma crise de endividamento externo, como nos anos 1980. Por outro lado, a atuação do Banco Mundial se tornou amplamente difundida pelo país. É importante frisar que o Banco não se relaciona apenas com a União, mas também com estados e municípios. Os empréstimos para os estados ganharam força durante os governos Lula, chegando ao auge durante o primeiro mandato de Dilma. Essa ida do Banco aos estados ganhou força a partir de 2007 e foi apoiada pelo governo federal, que entrou como garantidor das operações. Significa dizer que, para se analisar a incidência do Banco Mundial no desenho de políticas públicas no Brasil, é necessário olhar para os três níveis da federação e relações, mais programáticas ou mais pragmáticas, que o Banco construiu com setores da burocracia e elites políticas de várias partes do país.

 

 

IHU On-Line - Qual tem sido a incidência do Banco Mundial nas políticas públicas desenvolvidas no Brasil? Pode nos dar alguns exemplos a partir da experiência brasileira?

João Márcio Mendes Pereira - A incidência do Banco é bastante significativa, muito superior ao que se supõe. O Brasil é o segundo maior cliente histórico do Banco em volume de recursos emprestados, atrás apenas da Índia. Por outro lado, o volume de empréstimos do Banco é pequeno, quando comparado ao PIB nacional ou ao orçamento geral da União. É por isso que devemos considerar os empréstimos como veículos de indução de mudanças institucionais. É por meio deles que o Banco Mundial veicula e difunde prescrições de políticas aos governos dos países em desenvolvimento. A concessão de recursos incentiva compromissos formais e torna os governos mais receptivos às ideias do Banco. O dinheiro normalmente induz a mudanças na composição e no destino das despesas públicas do país receptor, na medida em que para cada operação contratada com o Banco (um recurso extraordinário), os governos devem desembolsar uma contrapartida financeira, que pode ser muito maior, e depois têm de pagar a dívida em moeda forte. Os empréstimos embutem condicionalidades exigidas pelo Banco Mundial, que podem ser pontuais ou bastante amplas e incidir sobre a configuração das políticas públicas e a estrutura do Estado.

Dito isso, a carteira de empréstimos da instituição é bastante diversificada em termos de setores e tem como clientes os estados, a União e municípios. Considerando os últimos trinta anos, os principais estados clientes (cujos empréstimos representam 74% da carteira aos estados) são, em ordem de importância: Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Rio Grande do Sul, Ceará e Pernambuco.

A carteira do Banco abrange inúmeros projetos federais e estaduais, que vão desde infraestrutura (por exemplo, a Linha 4 do metrô de São Paulo, rodovias, o abastecimento de água em São Paulo etc.), passando por meio ambiente, educação, saúde, políticas sociais (por exemplo, o Bolsa Família), energia (sobretudo via hidrelétricas), desenvolvimento rural e urbano. Mas a principal forma de atuação é por meio da remodelagem da gestão pública e do gasto público, em todos esses setores citados, combinando empréstimos, aconselhamento, assistência técnica e influência intelectual. O Banco é, na verdade, uma força de indução de reforma do Estado brasileiro, nos diferentes níveis da federação.

 

 

IHU On-Line - Quais são as consequências de os países desenvolverem suas políticas públicas a partir das orientações do Banco Mundial?

João Márcio Mendes Pereira - Depende, não existe uma resposta única. Pode haver projetos do Banco que tragam benefícios materiais (por exemplo, na área de infraestrutura, saneamento e abastecimento de água). Porém, é importante entender que, nos últimos trinta anos, o Banco Mundial tem financiado, em termos relativos, cada vez menos infraestrutura e cada vez mais políticas públicas, em todos os setores. Por exemplo, muito do que vemos como empréstimos para “meio ambiente” são, na verdade, para reconfigurar a gestão ambiental. Em linhas gerais, o Banco promove uma agenda de políticas voltadas para a constituição de economias e sociedades de mercado, centradas na maximização do lucro privado e na competitividade global como princípios organizadores fundamentais. Cabe ao Estado, na visão do Banco, criar condições institucionais e legais para amparar essa construção e proteger a propriedade privada (patrimonial e financeira), cuja concentração em poucas mãos só fez aumentar nas últimas décadas.

Para o Banco, o combate à extrema pobreza via políticas focalizadas não passa por qualquer medida de combate à concentração de renda e riqueza. Tudo isso nada tem nada a ver com a constituição de sociedades mais igualitárias, com políticas que garantam direitos universais de cidadania e com soberania nacional.

 

 

IHU On-Line - Em que consiste a agenda educacional do Banco Mundial para o Brasil? Quais são os aspectos positivos e negativos dessa agenda?

João Márcio Mendes Pereira - O Banco Mundial se tornou um ator relevante nas discussões internacionais sobre educação durante a década de 1980, no contexto das políticas de ajuste estrutural. De lá para cá, a agenda educacional do Banco Mundial segue uma continuidade fundamental, combinada com uma evolução incremental.

Desde o início, o Banco apresenta uma visão economicista e administrativista da educação, como uma atividade a ser gerida por economistas e administradores, e não por educadores. A educação pública é pensada como uma área importante para o ajuste fiscal, ou seja, uma área que deve passar por cortes de gasto. Toda a visão do Banco se ampara no conceito de capital humano, segundo o qual os indivíduos devem adquirir competências e habilidades para agregarem conhecimento à sua força de trabalho, a fim de se tornarem mais competitivos no mercado.

Nesse sentido, durante a década de 1980, no bojo dos programas de ajuste macroeconômico e fiscal promovidos pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional - FMI, a educação pública foi pensada pelo Banco como uma atividade central para aliviar a pobreza mediante a focalização do gasto público na educação básica. Isso serviria para melhorar o capital humano dos mais pobres. Ganharam força, então, teorias e modelos que afirmavam que o custo-benefício da focalização do gasto público na educação básica seria maior do que se o Estado financiasse, por exemplo, o ensino superior. Esse tipo de defesa também ajudou a abrir as portas para provedores privados na educação básica, na medida em que a educação pública, nesse nível, deveria priorizar tão somente os mais pobres. Quem pudesse pagar por educação, que fosse comprá-la no mercado.

Ao mesmo tempo, o Banco elaborou uma abordagem sistêmica da reforma educacional a ser aplicada pelos Estados clientes, com o objetivo de impulsionar mudanças de fundo nessa área. Um dos pontos que surgiram nesse período foi a ideia de cobrança de taxas aos alunos que podem pagar, principalmente no ensino público superior.

Outro elemento importante das prescrições educacionais do Banco consiste na combinação de descentralização administrativa dos sistemas educacionais com centralização da definição da matriz curricular e da avaliação. Para o Banco, cada vez mais a avaliação escolar deve se pautar em indicadores de aprendizagem quantificáveis, padronizáveis e comparáveis nacional e internacionalmente. É o império das métricas aplicável à educação.

 

 

Educação como um setor econômico

Nas décadas de 1990 e 2000, tudo isso continuou presente nas diretrizes educacionais do Banco Mundial. Porém, algumas novidades surgiram. A primeira delas é a visão de educação como um setor econômico aberto a negócios, como qualquer outro. Há, cada vez mais, uma exaltação do papel do setor privado (filantrópico e empresarial), com o objetivo de tornar a educação um setor de serviços aberto à competição global.

De outro lado, a visão hipermercadista herdada dos anos 1980 (quanto mais mercado, menos Estado) deu lugar à noção de Estado “eficaz” e “eficiente”, “parceiro” do capital privado. Daí, inclusive, a ênfase na ideia de “governança”, que designa a cooperação entre atores públicos e privados na “oferta” de serviços educativos. Disso resultam duas ideias: primeira, o Estado não precisa ser o único (ou mesmo o principal) fornecedor de educação pública; segunda, mesmo a educação pública pode ser prestada, direta ou indiretamente, por entidades privadas (fundações filantrópicas, entidades sem fins lucrativos, ONGs ou mesmo empresas terceirizadas), por meio de parcerias público-privadas. Como, para o Banco Mundial, a boa gestão pública é aquela que mimetiza ao máximo a empresa privada, a boa escola pública é aquela que imita a escola privada, o que constitui uma forma mais sofisticada de privatização.

Por fim, nos últimos dez anos, o Banco Mundial tem se concentrado no tema da “crise de aprendizagem”, a ser averiguada e monitorada por métricas e indicadores cada vez mais detalhados, muitos dos quais elaborados pelo próprio Banco. Mas a agenda política é aquela que vem desde os anos 1980, com mudanças incrementais.

 

 

IHU On-Line - Como as diretrizes do Banco influenciaram o modelo educacional existente no Brasil hoje, principalmente nas escolas e universidades privadas?

João Márcio Mendes Pereira - De 1949 (quando o Brasil contratou o primeiro empréstimo) até 1989, o Banco Mundial fez apenas três empréstimos específicos para projetos educacionais: em 1971, 1974 e 1984, todos contratados pela União. Porém, indiretamente, a “educação” figurou como subcomponente em projetos setoriais diversos, principalmente os de desenvolvimento rural.

De 1989 até agosto de 2020, o Banco autorizou quinze empréstimos para a educação: um para o governo Collor, três para o governo Itamar, três para o governo FHC e um para o governo Temer. Os demais foram contratados pelos estados do Paraná (1994), Ceará (2000), Bahia (2000 e 2003), Pernambuco (2004 e 2009) e pelo município do Recife (2012). Note-se que os governos Lula e Dilma não contrataram empréstimos para educação, embora os governos do PT (em Recife) e do PSB (em Pernambuco) o tenham feito. Em matéria educacional, das quinze operações realizadas, treze foram contratadas por governantes de partidos de centro e de direita (PMDB, PSDB e PFL).

De modo geral, o receituário político do Banco Mundial se volta para o setor público, não para o setor privado, já que os clientes do Banco são os Estados nacionais. Por outro lado, há uma agência do Grupo Banco Mundial chamada Corporação Financeira Internacional (International Finance Corporation) cuja missão é emprestar diretamente ao setor privado. No Brasil, nos últimos vinte anos, grandes conglomerados empresariais da educação são clientes importantes da CFI, como o Grupo Estácio S.A., a Faculdade Maurício de Nassau e o Grupo Anhanguera. Segundo documento recente, a CFI pretende intensificar os empréstimos e a assessoria técnica a tais empresas nos próximos anos.

 

 

IHU On-Line - Apesar de o receituário do Banco se voltar para a educação pública, ele gera consequências e impactos tanto na educação pública quanto na privada. A expansão de novas instituições privadas, como essas que o senhor citou (Grupo Estácio S.A., Faculdade Maurício de Nassau e Grupo Anhanguera), são consequência dessa política. Como a ascensão desses grupos e a visão de que a educação é um negócio incidem sobre o ensino no sentido de alterar, inclusive, o entendimento sobre qual é a finalidade das universidades e da educação? O que mudou no modo como se entendia a finalidade da educação antigamente e como se entende qual é a finalidade da educação universitária hoje?

João Márcio Mendes Pereira - Instituições privadas comerciais visam o lucro. A educação, para elas, é uma mercadoria cujos custos de produção devem ser minimizados ao máximo possível. Isso gera implicações diversas sobre as condições de trabalho dos docentes e sobre o produto final que é ofertado aos pagantes. A queda da qualidade é inevitável, mas ela é precificada e há quem esteja disposto a pagar por isso, mesmo que seja por falta de melhores opções. Algumas dessas empresas são verdadeiros conglomerados, têm capital aberto na bolsa de valores e se financiam a partir de fundos de investimento de origens e composição diversas, que se nutrem da maximização da exploração da força de trabalho docente e técnica e da precarização dos contratos de trabalho. Alguns desses conglomerados começaram a se expandir nos ensinos fundamental e médio, onde o Estado oferece a imensa maioria das vagas (ao contrário do ensino superior, onde as instituições privadas ofertam a maioria das vagas).

Ao contrário das universidades públicas e de algumas comunitárias, não fazem pesquisa nem extensão, reduzindo o trabalho docente à sala de aula, presencial ou a distância (modalidade que cresceu enormemente no Brasil nos últimos três anos, em função dos baixos custos e lucros mais elevados). Com os processos de neoliberalização e privatização em curso nos últimos quarenta anos, o fato é que se abriu um enorme mercado de serviços em saúde e educação para o capital privado explorar. Bens que antes eram considerados não mercadorias, passaram a sê-lo. Atualmente, uma das bandeiras desse segmento é a autorregulação (as empresas se autorregulariam). Num país como o Brasil, esvaziar o papel de regulação e fiscalização do Ministério da Educação - MEC (coisa que, aliás, já está acontecendo) seria um retrocesso imenso.

 

IHU On-Line - As universidades que não entendem a educação apenas como um negócio podem reagir a esse modelo educacional que está em curso no país? De que modo?

João Márcio Mendes Pereira - Certamente, procurando fazer um trabalho de qualidade, o que só pode ocorrer se houver valorização do trabalho docente, da pesquisa e da extensão, resguardando-se sempre a plena liberdade de ensino e debate.

 

IHU On-Line - O senhor disse recentemente que, para entender a agenda do Banco Mundial para a área educacional brasileira hoje e nos próximos anos, é preciso considerar dois documentos: “Um Ajuste Justo”, de 2017, e “Estratégia de Parceria de País”, de 2017. Em que consistem esses documentos? Qual é o diagnóstico desses documentos e em que aspectos estão corretos ou equivocados?

João Márcio Mendes Pereira - Além desses dois documentos, é preciso considerar também o documento intitulado “Covid-19 no Brasil: impactos e respostas de políticas públicas”, de 2020. Em conjunto, eles afirmam três teses: primeira, o principal fator responsável pela baixa qualidade da educação pública brasileira é a baixa qualidade dos professores; segunda, o número de professores é excessivo em relação ao número de alunos; terceira, o problema da educação pública não é de financiamento, e sim de gestão (gasta-se muito e mal).

As três teses são equivocadas, pois não levam em conta as condições de trabalho e se prendem a métricas que não consideram a diversidade de contextos sociais e educacionais de vida e aprendizagem. Esse é um dos problemas das métricas que se pretendem objetivas e universais. Ademais, o Banco descaradamente manipulou estatísticas para afirmar que há poucos alunos por professor nas redes públicas. Também não é verdade que o problema central da educação pública brasileira seja má gestão. Claro que sempre se pode melhorar em termos de gestão pública, e muitas coisas têm de melhorar mesmo, e muito, mas é de um diagnóstico completamente enviesado reduzir os problemas a apenas esse tópico. Além disso, o financiamento da educação pública ainda é insuficiente e abaixo do que gasta a maioria dos países de renda per capita média.

 

 

Diretrizes do Banco Mundial para a educação

A partir dos três documentos citados, o Banco Mundial então propõe medidas que afetam muito negativamente a educação pública, como a manutenção do teto de gastos, a desvinculação total dos gastos em educação de qualquer obrigação constitucional e a realização de uma profunda reforma gerencial na educação, a fim de reduzir o custo por aluno. Além disso, o Banco também apoia a finalização do ciclo de reformas dos sistemas estaduais e municipais de previdência dos professores, a fim de fazê-los trabalhar por mais tempo e ganhar menos.

Para os ensinos fundamental e médio, o Banco Mundial propõe a não reposição dos professores que se aposentarem até 2027, a fim de aumentar o número de alunos por professor. Também recomenda reformatar a gestão escolar, por meio do pagamento de bônus a professores e funcionários conforme o desempenho das escolas (premiando indivíduos, não a escola como um todo), a contratação de empresas privadas para fornecimento de “serviços educacionais” (escolas charter, por exemplo) e a difusão de parcerias público-privadas na educação (por exemplo, para a elaboração de materiais, métodos de avaliação etc.).

Já para o ensino público superior, o Banco prescreve a redução do gasto público anual por aluno, o que obrigaria as universidades a revisarem a sua estrutura de custos e buscarem recursos em outras fontes. Também defende a cobrança de mensalidades dos alunos “que podem pagar”, estabelecendo uma linha de corte muito baixa e absolutamente irrealista. De maneira complementar, o Banco defende a concessão de crédito estudantil para alunos de universidades públicas e bolsas para os alunos mais pobres. Na prática, o que o Banco faz é usar o “combate à pobreza” para tentar legitimar a focalização do gasto público nos segmentos mais pobres, com o objetivo de demolir o princípio da gratuidade universal da educação superior pública e ampliar o número de alunos do setor privado.

Em 2017, a fim de apoiar a reforma do ensino médio propugnada pelo governo Temer, o Banco autorizou um empréstimo de 250 milhões de dólares. Pouco desse recurso foi desembolsado até agora, devido a vários fatores, entre os quais a inação e a total incapacidade de coordenação do MEC, sob o governo Bolsonaro, com as secretarias estaduais de Educação. Mas é provável que essa questão seja retomada. A reforma do ensino médio é considerada a âncora da atuação do Banco na educação nos próximos anos.

 

 

IHU On-Line – A primeira tese, de que o principal fator responsável pela baixa qualidade da educação pública brasileira é a baixa qualidade dos professores, não pode ser considerada parcialmente correta, uma vez que há um consenso no Brasil de que a educação é uma área que precisa melhorar muito, especialmente se considerarmos o número de analfabetos funcionais existentes no país?

João Márcio Mendes Pereira – Certamente, há muito o que melhorar na educação (pública e privada) brasileira. Essa ideia de que o ensino privado é necessariamente melhor do que o público é falsa. Mesmo nos rankings e métricas internacionais, que têm muitos problemas metodológicos e devem ser tomados sempre com cautela, as escolas federais aparecem muitíssimo bem posicionadas, e isso não ocorre à toa. Por outro lado, grande parte do ensino privado na educação básica é feita por escolas de baixo padrão. Mais investimento, melhores condições de trabalho e cobrança de resultados são ingredientes indispensáveis para uma educação pública de qualidade.

Agora, é preciso considerar que os avanços do Brasil em matéria educacional, durante os últimos cem anos, foram significativos, acelerando-se bastante depois da Constituição de 1988, que instituiu, pela primeira vez, o direito de voto aos analfabetos, o que obrigou os políticos a se preocuparem mais com a educação e com as políticas sociais de modo geral. Há muito o que fazer, corrigir, melhorar e inovar, e o Brasil tem acúmulo de conhecimento e expertise para deslanchar nessa área.

Fala-se muito em parcerias público-privadas, mas o que deveríamos mesmo fazer são parcerias público-público, envolvendo universidades e redes de ensino, de preferência articuladas a planos de desenvolvimento regional. Quando as instituições públicas não comparecem, não se fazem presentes na busca de soluções em um dado estado ou município, pode crer que o setor privado prevalecerá. Isso ocorre, por exemplo, em programas de capacitação docente de redes municipais ou estaduais, nos quais o poder público opta por contratar instituições privadas para prestarem o serviço, ao invés de priorizar o que as universidades públicas têm a oferecer. O problema está nos dois lados e não é simples, mas precisamos valorizar as parcerias público-público, que sempre terão menor custo aos cofres públicos (pois não visam o lucro) e carregarão um potencial de formação de recursos humanos e de desenvolvimento regional que o setor privado jamais poderá suprir.

Por fim, não dá para aceitar discursos como o do Banco Mundial que responsabilizam os professores e professoras por todos os males da educação, ao mesmo tempo que fingem desconhecer as péssimas condições de trabalho que, com poucas exceções, predominam nas redes públicas de educação.

 

IHU On-Line - É possível e desejável os países romperem relações com o Banco Mundial?

João Márcio Mendes Pereira - Quando há crescimento econômico e facilidade em acessar crédito internacional barato em outras fontes, os empréstimos do Banco Mundial tendem a ser menos demandados pelos países em desenvolvimento. O grande problema dos empréstimos do Banco são as condicionalidades, pelas quais os governos se comprometem a realizar determinadas políticas e mudanças institucionais, em troca de recursos. Países que tenham condições de negociar com o Banco de maneira autônoma podem sacar proveito das relações com a instituição. Quando isso não ocorre, fica realmente complicado.

Por outro lado, as relações de um país cliente com o Banco sempre passam por grupos locais, organizados dentro do aparelho de Estado (normalmente, nos ministérios do planejamento e da fazenda) e na sociedade civil. Tais relações podem ter um perfil mais programático e ideológico, ou mais pragmático. Varia muito, é preciso considerar caso a caso. Mesmo num dado país isso pode acontecer: o governo federal ser mais à esquerda e governos estaduais e locais mais à direita, com uma visão de desenvolvimento mais próxima do Banco, ou vice-versa.

O ponto central é que os Estados clientes não são meras vítimas, pois há sempre algum nível de negociação, adaptação, filtragem e tradução local das normas e ações prescritas pelo Banco. Em outras palavras, é preciso investigar quais são as visões de mundo, as alianças e os interesses mútuos entre o Banco Mundial e grupos domésticos, organizados tanto no Estado como na sociedade. Em todo caso, vale frisar que o máximo da carteira de empréstimos do Banco Mundial para o Brasil se deu durante os dois governos de Lula, em função tanto dos valores contratados pela União (7,7 bilhões de dólares, pouco acima do que contratou o governo FHC) como do contratado por estados (8,8 bilhões de dólares) e municípios (1,3 bilhão de dólares).

 

 

IHU On-Line - Quais são as diretrizes internacionais e nacionais do Banco Mundial para os países, pós-pandemia, e qual sua avaliação sobre elas?

João Márcio Mendes Pereira - Para o Brasil pós-pandemia, o Banco Mundial prescreve a retomada da agenda de reformas neoliberais iniciada pelo governo Temer, continuada pelo governo Bolsonaro, mas ofuscada pela pandemia. Isso significa privatizações, maior abertura da economia à concorrência global, redução do custo do trabalho para o capital, forte ajuste fiscal, entre outras medidas. Se alguém pensa que a pandemia enterrou politicamente o neoliberalismo, precisa ler os documentos do Banco Mundial.

 

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