O fortalecimento do Bitcoin significa a transferência de riqueza e poder a correntes políticas aliadas ao capital. Entrevista especial com Edemilson Paraná

Segundo o pesquisador, o Bitcoin pretende retirar a política da emissão, gestão e administração do dinheiro

Bitcoin | Foto: Reprodução

Por: Patricia Fachin | 13 Agosto 2020

O Bitcoin, uma criptomoeda criada em 2009 depois da crise financeira de 2008, é uma “variante” do liberalismo radical, pois permite a realização de transações financeiras sem intermediários e tem como objetivo “retirar das mãos do Estado e das instituições financeiras e bancos a gestão monetária”, diz o sociólogo Edemilson Paraná à IHU On-Line. “O Bitcoin não nega apenas o incontornável papel do Estado na gestão monetária capitalista, mas a própria possibilidade de uma regulação social que não aquela realizada estritamente pelo mercado. Ocorre que isso é uma ilusão, uma impossibilidade material mesmo, porque uma coisa é criar uma moeda, outra é garantir que ela seja reconhecida socialmente como equivalente geral, o que demanda poder político, poder econômico e, no limite, até violência”, explica.

Autor do livro recém-lançado, Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico (Autonomia Literária, 2020), ele adverte que embora os defensores dessa criptomoeda destaquem o seu caráter “anônimo, descentralizado, aberto, público e auditável”, o Bitcoin visa tratar o dinheiro, por meio do aparato tecnológico, como uma “coisa neutra e apolítica, puramente técnica” e está fundamentado em premissas políticas “neoliberais” e “anarco-capitalistas”. “Essa ideia de neutralidade técnica muito rapidamente nega a si mesma, já que está a serviço de uma forma particular, tecnocrática, de política”, afirma.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Paraná explica como as autoridades estão discutindo tanto a regulação quanto a classificação da criptomoeda e assegura que “o eventual fortalecimento do Bitcoin significa, objetivamente, uma transferência de riqueza e poder social para essa corrente política que, aliada ao capital de risco e às oligarquias que investem em criptomoedas, atenta diretamente contra forças políticas emancipatórias e progressistas em todo o mundo”.

Edemilson Paraná (Foto: Arquivo pessoal)

Edemilson Paraná é mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília - UnB, com período sanduíche realizado na SOAS/University of London. Atualmente leciona no Departamento de Ciências Sociais e nos Programas de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará - UFC e no Programa de Pós-graduação de Estudos Comparados sobre as Américas, da Universidade de Brasília - UnB. Atuou como pesquisador no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea e realizou estágio pós-doutoral nos Departamentos de Economia e de Estudos Latino-Americanos da UnB. Além de outros trabalhos publicados nas áreas de Sociologia Econômica, Economia Política e Teoria Social, é autor do livro “A Finança Digitalizada: capitalismo financeiro e revolução informacional” (Insular, 2016), publicado também em inglês, com o título “Digitalized Finance: financial capitalism and informational revolution” (Brill, 2019, Haymarket, 2020).

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Poderia nos explicar o que é e como funciona o Bitcoin?

Edemilson Paraná - O Bitcoin é uma moeda digital alternativa, uma criptomoeda, e um sistema de pagamento online independente, criado em 2009, com base em um artigo apócrifo, assinado por Satoshi Nakamoto – ente cuja verdadeira identidade nunca foi revelada. Tecnicamente, o Bitcoin é um software de código aberto que ampara o movimento de moedas e pode ser monitorado por todos os usuários em todo o mundo. Nesse sistema, os participantes no desenvolvimento e aprimoramento de seu código supostamente não podem fazer alterações que transcendam a lógica de seu design original. É um sistema que pode ser entendido, então, como uma construção de duas camadas, composta por uma infraestrutura de rede global, por um lado, e uma pequena comunidade de desenvolvedores, por outro. Como uma moeda digital descentralizada, que opera em uma rede par-a-par (peer-to-peer), pode ser usada para comprar um número relativamente limitado de bens e serviços na internet.

Do ponto de vista técnico, trata-se, sem dúvida, de algo inédito: uma moeda gerida de maneira descentralizada e anônima (ou, mais precisamente, pseudônima), amparada por criptografia robusta. Sua administração algorítmica está baseada em um livro público (o chamado ledger), aberto e, portanto, auditável, que registra todas as transações no momento em que são realizadas. O processamento destas transações, em blocos (daí Blockchain, em tradução simples, “corrente de blocos”), é realizado pelos próprios usuários do sistema que, ao utilizarem de seu poder de processamento computacional em prol da “comunidade”, recebem em troca um incentivo pecuniário em Bitcoin – algo que é apoiado, ainda, pela resolução de problemas matemáticos por essas mesmas máquinas. Assim são produzidos (ou “minerados”), trocados e verificados os Bitcoins.

A emissão de novas unidades dessa criptomoeda é limitada (a 21 milhões de unidades) e ocorre como resposta à solução (“trabalho”/dispêndio de poder computacional) de desafios ou quebra-cabeças algorítmicos (equações) que são programados para acederem, de modo escalar, a níveis sempre crescentes de complexidade – algo que contribui para a compensação e a manutenção de um registro público (uma cadeia de blocos) de todas as transações realizadas.

IHU On-Line - O Bitcoin surgiu depois da crise de 2008. Que contexto possibilitou a sua emergência e com qual objetivo essa criptomoeda surgiu?

Edemilson Paraná - O Bitcoin é a primeira e mais importante das criptomoedas. Ele surge basicamente com o objetivo declarado de retirar das mãos do Estado (e das instituições financeiras e bancos) a gestão monetária. Para isso ele se utiliza de todo esse conjunto de mecanismos que acabei de detalhar. O mais importante deles, para além do uso da criptografia, é a tecnologia Blockchain, que foi concebida especialmente para esse propósito.

O surgimento do Bitcoin está intimamente relacionado aos humores políticos do pós-crise de 2008. A variante de liberalismo radical que grande parte dos pioneiros e entusiastas do Bitcoin professa se conecta diretamente às impressões e sentimentos de nossa época: a busca por proteção e privacidade nas comunicações frente aos grandes monopólios público-privados da informação, a descrença generalizada nas distintas esferas do Estado como representante legítimo e promotor da vontade pública frente ao que aparece como sua captura pelo poder econômico, a impotência da cidadania frente ao que aparece como a ascensão de uma plutocracia global, a exigência de transparência na ação pública como forma de prevenção à corrupção, a busca por novas formas horizontais, autônomas, descentralizadas e autogeridas de associativismo em rede etc. É por essas razões que ele inspira certo fascínio.

Naturalmente, as criptomoedas são também herdeiras de outros desenvolvimentos técnicos, históricos, sociais, sem os quais elas não teriam sido possíveis. De modo geral, isso remete à emergência do que eu chamei, em meu livro anterior, de “finança digitalizada”, ou seja, às afinidades estruturais entre o desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação e o processo de integração, liberalização e abertura dos mercados em nível global. Mais especificamente, o Bitcoin é produto de fatores cognitivos, como os avanços da criptografia e da matemática dos algoritmos; fatores tecnológico-materiais, como o desenvolvimento e espraiamento da internet pelo mundo e o aumento exponencial da capacidade de processamento computacional; e, é claro, fatores de ordem político-ideológica, como a constituição dos movimentos de hackers, ciberativistas, criptoanarquistas e cypherpunks.

IHU On-Line - É possível identificar o perfil das pessoas que utilizam Bitcoin?

Edemilson Paraná - Por definição, a própria existência de uma criptomoeda está sustentada na ideia de que não é possível conhecer a identidade daqueles que realizam transações ou participam de seus ambientes de negociação. Então, claro, qualquer tentativa de conhecer o perfil dessas pessoas é bastante limitada.

Mas se observamos, por exemplo, o engajamento geral da comunidade em conteúdos sobre o Bitcoin na internet, percebemos que ele é esmagadoramente masculino (cerca de 88%) e situado na faixa de 25 a 44 anos (mais de 73%). Esses dados reforçam algumas outras pesquisas que também vêm apontando para um público majoritariamente masculino, com idade entre 30 e 50 anos, e que tende a apoiar ideias econômicas e políticas liberais.

IHU On-Line - Como os Estados nacionais reagem às criptomoedas e como estão tratando a sua regulamentação?

Edemilson Paraná - Apesar de o Bitcoin ser construído para evitar a regulação econômica que o Banco Central tipicamente exerce sobre a emissão e gestão monetária, isso não quer dizer que, como ativo, ele possa – ainda que esse seja o seu objetivo – escapar completamente de certa regulação jurídica e policiamento estatal. Em todo caso, não se trata de uma tarefa simples.

Em primeiro lugar, há, entre as autoridades, a questão de como o Bitcoin deve ser classificado, se como uma moeda virtual, um ativo/propriedade ou uma mercadoria. Depois, há a dúvida sobre a necessidade de regulamentar as transações com Bitcoins e, em caso positivo, qual a melhor forma de fazê-lo, especialmente no que diz respeito às regras contra a evasão de divisas, lavagem de dinheiro e o financiamento de atividades ilícitas. Finalmente, os reguladores avaliam se irão permitir o engajamento dos bancos em transações com Bitcoins e, em caso positivo, de que maneira.

Como a economia das criptomoedas está ainda em seu estágio inicial, as autoridades vêm, em geral, adotando a postura de aguardar para obter mais informações antes de uma decisão definitiva a respeito de qual abordagem empregar. Uma dúvida central é saber como tais criptomoedas se comportarão quando operarem em uma escala ampliada (se é que isso virá a ocorrer algum dia) e de que maneira podem ou não eventualmente desestabilizar os mercados e as práticas monetárias e financeiras correntes. Há, por consequência, entre os reguladores, certa ambiguidade e poucos consensos. Por isso, os países têm adotado posições as mais diversas, desde legislações mais permissivas até medidas totalmente proibitivas.

Um caso emblemático é o da China. O país adotou ações duras para reprimir tudo que estivesse relacionado às criptomoedas, despontando, neste quesito, como talvez a mais rigorosa dentre as grandes economias. Isso representou, em certo aspecto, uma reviravolta, já que, em 2017, os mineradores chineses de Bitcoin representavam mais de 50% do total e, àquela altura, a adoção de criptomoedas na China aumentava a uma taxa maior do que em qualquer outra região do mundo, fazendo do país um centro global para o comércio de criptomoedas. Segundo as autoridades chinesas, essas restrições são parte de um esforço maior de contenção de saídas de capital e combate à corrupção. O interessante é perceber que isso não impediu o país de incentivar fortemente a pesquisa e desenvolvimento da tecnologia Blockchain em várias frentes e, inclusive, lançar seu próprio projeto de moeda digital estatal.

IHU On-Line - O Bitcoin é uma criptomoeda gerida de forma descentralizada e anônima, mas o senhor diz que ela não é dinheiro e, sim, uma inovação financeira. Quais são as vantagens e desvantagens em relação à emissão de outras moedas e transações financeiras tradicionais?

Edemilson Paraná - O Bitcoin é um criptoativo, uma inovação financeira, mas não é e não pode ser, no sentido pleno da definição, dinheiro. Há vários argumentos que sustentam essa posição, todos longamente desenvolvidos no meu livro sobre o assunto. Mas a primeira coisa que precisa ficar clara é que essa sua impossibilidade de performar plenamente todas as funções do dinheiro não advém de nenhuma vantagem ou desvantagem técnica. Isso é antes uma questão econômica e sociopolítica mais ampla – algo que costuma ser ignorado nessa discussão.

A abordagem, bastante arraigada no senso comum, que foca no dinheiro como uma “coisa”, nos leva automaticamente a enquadrar a questão em termos das vantagens ou desvantagens específicas de cada “tolken”, de cada “veículo” monetário para realizar certas tarefas específicas. Mas se olhamos para a dimensão macroestrutural, fica bastante claro que o dinheiro é muito mais do que isso: o dinheiro é uma relação social, e não uma “coisa”.

Para começar, o dinheiro é um representante do trabalho social, um veículo de objetivação da divisão social do trabalho, que, no capitalismo, se dá por meio do mercado. Ou seja, o dinheiro é um veículo de representação e realização do valor, a forma geral e abstrata da riqueza e não uma mera “mercadoria” como as demais. Ele é o “equivalente geral”, a materialização da própria “trocabilidade” entre a coisas. Perceba que, com isso, a sua posse configura, para começo de conversa, um poder social. Dinheiro é poder porque é, como diz Marx, o nexo social com a sociedade que o indivíduo pode carregar no seu bolso.

Dinheiro como bem público

Então, no capitalismo, o dinheiro é simultaneamente um “bem público” e um objeto de desejo privado. Nessa condição de “bem público”, ele é referência para todos os atos de produção e troca de mercadorias, bem como para a mensuração da riqueza. É por isso que ele deve estar sujeito a normas de emissão, circulação e destruição que sustentem e reafirmem de modo contínuo essa sua “universalidade” como padrão de preços, meio de circulação e forma geral da riqueza. Isso pressupõe, obviamente, a sociedade, o Estado, um conjunto de determinações as mais diversas, porque como equivalente geral, o dinheiro não pode ficar puramente à mercê dos interesses privados. Para que sirva de maneira funcional aos propósitos privados, ele precisa ter, digamos, uma existência “pública”.

Ora, é exatamente isso tudo que o Bitcoin busca negar com seu impulso privatista, individualizante, anticoletivista – tratando, por meio de todo o seu aparato tecnológico, o dinheiro como uma coisa neutra e apolítica, puramente técnica. O Bitcoin não nega apenas o incontornável papel do Estado na gestão monetária capitalista, mas a própria possibilidade de uma regulação social que não aquela realizada estritamente pelo mercado. Ocorre que isso é uma ilusão, uma impossibilidade material mesmo, porque uma coisa é criar uma moeda, outra é garantir que ela seja reconhecida socialmente como equivalente geral, o que demanda poder político, poder econômico e, no limite, até violência.

Então o que o Bitcoin pretende negar a todo custo é o fato de que a gestão monetária inevitavelmente perpassa o conflito distributivo, a eleição de prioridades políticas e econômicas e, assim, as posições relativas e lutas entre as classes; que o dinheiro é perpassado por coerção e confiança, por ideologia. O interessante é que, ao fazê-lo, ele nos ajuda justamente a enxergar melhor o que o dinheiro de fato é no capitalismo. O Bitcoin é, na verdade, um contrafactual do dinheiro realmente existente.

IHU On-Line - Quais são os argumentos daqueles que são favoráveis e contrários às criptomoedas? Que grupos apostam nessa criptomoeda e quais são reticentes?

Edemilson Paraná - Os defensores tendem a destacar seu caráter anônimo, descentralizado, aberto, público e auditável, a segurança do sistema e, sobretudo, o fato de a emissão de moeda não estar na mão do Estado e ser rigidamente controlada a partir de um limite preestabelecido de emissão – o que supostamente serviria para evitar a dinâmica tipicamente inflacionária que caracteriza o dinheiro fiduciário. Isso é algo que atrai além de liberais radicais e uma comunidade de geeks e desenvolvedores, pessoas buscando fugir da regulação do Estado para realizar trocas econômicas e guardar parte de sua riqueza e, sobretudo, uma plêiade de investidores de ocasião que buscam obter ganhos expressivos e de curto prazo com as flutuações no seu preço.

Entre os grupos reticentes estão aqueles mais atentos às distorções e instabilidades que tipicamente estão relacionadas a formas de investimentos especulativas de alto risco e alta volatilidade, governos e reguladores, e analistas econômicos e sociais de correntes teóricas as mais diversas que não aceitam a teoria monetária falha, absolutamente equivocada, que está por trás do Bitcoin. Entre os argumentos contrários, aparecem o risco de instabilidade e fragilidade financeira, a ocorrência de formas múltiplas de golpes e fraudes, os problemas relacionados a ocultação de patrimônio, evasão fiscal e de divisas, os efeitos deletérios da filosofia política que o sustenta e, por fim, a virtual impossibilidade de o Bitcoin vir a se tornar dinheiro no sentido amplo e completo do termo.

IHU On-Line - Por que compreende o Bitcoin como uma “utopia tecnocrática do dinheiro apolítico”?

Edemilson Paraná - O Bitcoin pretende retirar a “política” da emissão, gestão e administração do dinheiro. A ideia é que isso deve ser feito de modo estritamente técnico, algorítmico, impessoal e sem intervenção de uma terceira parte, ou seja, sem passar por nenhuma instância de regulação ou mediação representativa, deliberativa, em suma, decisória. É como se tudo pudesse ser resolvido por meio da técnica, do código, evitando a necessidade de discricionariedade e “confiança” (em uma autoridade monetária, em instituições intermediárias, na contraparte que negocia etc.) para o sistema funcionar. Assim, eles acreditam, é possível finalmente produzir um dinheiro “honesto”, livre de intervenções “tirânicas” do Estado e suas instituições corruptas, sustentadas pela lógica “perversa” da dívida.

É algo que leva ao paroxismo ideias bastantes conhecidas como as de que dívida é algo sempre moralmente degradante e, portanto, evitável a todo custo; de que o Banco Central deve ser totalmente autônomo em relação aos governos democraticamente eleitos para que possa realizar uma política monetária estritamente “técnica” (como se algo “puramente” técnico fosse de fato possível sem, na verdade, esconder justamente outra forma de política). Não chega a ser uma coincidência que Milton Friedman, economista cujas ideias servem de inspiração ao Bitcoin, tenha sugerido, no começo da década de 1990, que o Federal Reserve, o “Banco Central” estadunidense, devesse ser substituído justamente por um computador.

O interessante é perceber, então, que, apesar desses valores de neutralidade técnica, ou melhor, de pretensa substituição da política pela técnica na gestão monetária, é evidente que o Bitcoin está amparado em premissas políticas bastante acentuadas: neoliberais (inspiradas em Milton Friedman e Friedrich Hayek) e, no limite, anarco-capitalistas. Então essa ideia de neutralidade técnica muito rapidamente nega a si mesma, já que está a serviço de uma forma particular, tecnocrática, de política.

IHU On-Line - Por que considera o Bitcoin uma ameaça à democracia?

Edemilson Paraná - O Bitcoin está basicamente concebido em cima de valores ultraliberais, radicais; ou seja, está estruturalmente “codificado” para enfraquecer o poder da regulação política sobre a economia, atacar o Estado, promover o mercado como instância de autorregulação social, fortalecer a propriedade individual como a mãe de todas as liberdades, estimular a competição entre os indivíduos e, portanto, impossibilitar as dinâmicas e mecanismos políticos de redistribuição, característicos de qualquer ideário de democracia orientado pelos valores de igualdade material, solidariedade coletiva e liberdade social “positiva”. Então, o eventual fortalecimento do Bitcoin significa, objetivamente, uma transferência de riqueza e poder social para essa corrente política que, aliada ao capital de risco e às oligarquias que investem em criptomoedas, atenta diretamente contra forças políticas emancipatórias e progressistas em todo o mundo.

É realmente difícil enxergar como seria possível resistir, no interior dessa plataforma, a esses valores políticos que estão, como eu disse, literalmente codificados em seu software. No entanto, é preciso destacar que o Bitcoin é perpassado por inúmeros conflitos e, por isso, se desenvolve também de modo um tanto imprevisível. Se é verdade que o balanço final quanto ao Bitcoin passa longe de ser animador neste quesito, seria também um equívoco, claro, sustentar que todos os integrantes da sua comunidade de usuários estão situados na direita liberal, ou mesmo que sua base técnica não poderá jamais, de uma vez por todas, ser utilizada para fins outros que não aqueles correspondentes a esse conjunto de valores.

Então, apesar desses problemas, é inegável que esse é um “experimento” interessante, que vem abrindo uma nova arena para outras experimentações sociais e técnicas, com possíveis repercussões em esferas ainda desconhecidas. Talvez o Bitcoin e, especialmente, o Blockchain possam, de modos que ainda não conhecemos, servir a razões políticas outras para além daquelas que lhe deram origem e que seguem orientando seu funcionamento. Mas para que isso aconteça, além de um diagnóstico crítico em relação àquilo que precisa ser devidamente evitado ou superado, é necessário, ainda, colocarmos em perspectiva para onde caminha o desenvolvimento relativamente imprevisível de tais tecnologias e de que modo ele é influenciado pelas lutas sociais, políticas e econômicas em curso. É basicamente o que eu tento fazer no meu livro sobre o assunto.

IHU On-Line - Em 2014, Elizabeth Ploshay, membro do conselho diretor da Bitcoin Foundation, disse que em dez anos todo mundo estará usando e fazendo algum tipo de transação com Bitcoins, seja enviando a criptomoeda para suas famílias em outros países, para comprar na internet ou fazer doações. Concorda? Como avalia essa declaração?

Edemilson Paraná - Ninguém de nós pode prever o futuro, mas penso que, por tudo o que mobiliza, meu estudo traz argumentos bastante sólidos para demonstrar que prognósticos desse tipo – bastante improváveis – representam mais um desejo de alguns do que uma projeção sólida, ancorada em dados e evidências confiáveis. Vindo de quem vem – de uma integrante da Bitcoin Foundation – faz sentido: é uma previsão que basicamente se confunde com propaganda.

Aliás, isso é, em grande parte, o que se vê por aí. Intervenções sobre o assunto que, para além de ingênuas e celebracionistas, simplesmente não tratam de maneira realista a questão porque, em geral, estão mais preocupadas em fazer propaganda, em vender a ideia. Por isso me pareceu fundamental tratar o assunto a partir de uma outra abordagem.

Todo esse ufanismo tecnológico, essa excitação retórica e política em torno do assunto, revela algo interessante sobre o Bitcoin, mas também sobre a moeda em geral: o fato de que o dinheiro é parte nuclear da reprodução ideológica geral da vida social no capitalismo. Se a gente olha para esse aspecto específico no caso do Bitcoin, percebe que ele se configura como a materialização de uma combinação contraditória entre o desenvolvimento e intensificação do processo de neoliberalização das sociedades, de um lado, com os seus limites, problemas e promessas não realizadas, de outro, no contexto de esgotamento e crise do capitalismo pós-2008; o contorcionismo, em suma, de uma ideologia para dar inteligibilidade a um mundo que a desafia.

 

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