Favelas do Brasil: acreditar em si mesmo é a única alternativa. Entrevista especial com Renato Meirelles

Foto: Ian Porce

Por: Ricardo Machado | 18 Fevereiro 2020

A produção e a circulação econômica das favelas do Brasil ultrapassam a ordem de R$ 119,8 bilhões por ano, o que corresponde a uma grandeza maior que o Produto Interno Bruto – PIB de Honduras. Vivendo, na maior parte dos casos, no hiato das políticas públicas e das benesses sociais do capitalismo, o empreendedorismo de si torna-se não propriamente uma alternativa, mas a única saída para muitos moradores. “Se por um lado é verdade que ela [a população da favela] é vítima do sistema [capitalista], de outro não parecem existir muitas alternativas a não ser acreditar em si mesmo. Esses brasileiros já entenderam que não há outro jeito de ir para frente se não for com as próprias forças”, relata o pesquisador Renato Meirelles, um dos autores da pesquisa Economia das favelas. Renda e consumo nas favelas brasileiras, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

“A grande descoberta – o que, para mim, que já a estudava há muito tempo, não é tão novo – é que, se por um lado há uma imagem pejorativa e negativa das comunidades brasileiras, associada com pobreza, com falta de estrutura, com criminalidade e violência, quando você sobe os morros e entra nos becos descobre a real imagem: de que ali tem um monte de empreendedores, de potência econômica e de boas ideias”, complementa Meirelles.

As incursões insidiosas contra as populações das periferias protagonizadas por forças policiais que, entre outros casos, levaram à morte de nove jovens em Paraisópolis, São Paulo, refletem um novo desejo de parte desta população: respeito. “Quando nós perguntamos para eles quais eram os maiores sonhos para as favelas em que viviam, a maioria das respostas dizia respeito a demandas públicas (segurança, saúde, moradia, escola, transporte), mas muita gente (12%) respondeu que sonha com mais respeito a eles, por exemplo. Essa também é uma demanda legítima”, pondera o entrevistado.

Renato Meirelles (Foto: Valter Campanato | Agência Brasil)

Renato Meirelles é presidente do Instituto de Pesquisa Locomotiva. Foi fundador e presidente do Data Favela e do Data Popular, onde conduziu diversos estudos sobre o comportamento do consumidor emergente brasileiro, atendendo às maiores empresas do Brasil. Em 2012, Renato fez parte da comissão que estudou a nova Classe Média Brasileira, na Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Considerado um dos maiores especialistas em consumo e opinião pública do país, é autor dos livros Guia para enfrentar situações novas sem medo (Porto Alegre: Editora Saraiva, 2009) e Um País Chamado Favela (São Paulo: Gente, 2014). Renato também é colunista da revista Brasileiros e da Exame.com.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que a pesquisa Economia das Favelas traz de novo para o debate sobre estas populações?

Renato Meirelles – Tudo. Até então, ninguém havia se debruçado sobre as favelas brasileiras de forma tão profunda. Os dados que foram coletados vão levar muito tempo para serem recebidos, analisados e discutidos pela sociedade, pelas instituições públicas e privadas, pelo terceiro setor, pelo governo etc. No entanto, um ponto é central em tudo isso: nosso estudo coloca a favela em outro lugar. A grande descoberta – o que, para mim, que já a estudava há muito tempo, não é tão novo – é que, se por um lado há uma imagem pejorativa e negativa das comunidades brasileiras, associada com pobreza, com falta de estrutura, com criminalidade e violência, quando você sobe os morros e entra nos becos descobre a real imagem: de que ali tem um monte de empreendedores, de potência econômica e de boas ideias.

IHU On-Line – O que mais o surpreendeu nos dados levantados pela pesquisa realizada pelos institutos Data Favela e Locomotiva, em parceria com a Central Única das Favelas - CUFA e a Comunidade Door?

Renato Meirelles – O tanto de sonhos. De ter uma casa própria a se aposentar, de ter saúde a ver quem se ama feliz, os moradores de favela revelaram todo um mundo de coisas que eles aspiram na vida. Mais do que isso, 52% deles respondem, sem hesitar: em breve não serão sonhos, mas realidades. Isso demonstra não apenas que a favela é um lugar de aspirações, de buscas, como também que ela está confiante de que vai chegar lá. É uma disrupção total com o senso comum que o “asfalto” tem.

IHU On-Line – Quais as limitações e potencialidades de se pensar as Favelas em perspectiva com dados econômicos dos Estados brasileiros? Até que ponto faz sentido fazer comparações? Por que elas são ilustrativas?

Renato Meirelles – Na Locomotiva, nós gostamos muito de fazer comparações desse tipo, e inclusive bolamos uma pequena série nas nossas redes sociais, no final do ano passado, chamando a atenção para os países que existem dentro do Brasil. Elas são ilustrativas porque evidenciam as nossas potencialidades. A movimentação de dinheiro das favelas brasileiras é maior do que o PIB de Honduras, por exemplo – o que nos permite dizer que temos a população inteira de um país dentro do nosso, com algo em comum. Mas não é apenas ilustrativo, porque se você observar essa afirmação com calma, vai notar a potência e a responsabilidade que o Brasil tem diante de suas questões – como é o caso das favelas. Isso vale para os estados e seus respectivos governos.

IHU On-Line – Um dos dados divulgados pela pesquisa aponta, de um lado, certo pessimismo em relação ao Brasil, mas, de outro, otimismo em relação ao crescimento pessoal. O que isso significa em termos de compreensão política dos cidadãos?

Renato Meirelles – Que as pessoas estão confiando mais em si mesmas do que nas possibilidades políticas e que, principalmente, estamos tratando de gente que está sempre perto da situação de necessidade. Isso não é novo, mas na pesquisa aparece de uma forma manifesta: quando nós perguntamos para os moradores de favelas sobre seus sonhos, também queríamos saber o que eles acham que precisam ter para realizá-los. Algumas das coisas mais citadas dizem respeito a fatores totalmente pessoais, como disciplina, fazer um curso, ir para a universidade, etc. Elas estão contando consigo mesmas – e essa é uma grande força para as comunidades, porque as leva para frente.

IHU On-Line – Em que sentido os dados apresentados evidenciam a incorporação do ideal neoliberal nestas populações que são, justamente, as principais vítimas desse sistema?

Renato Meirelles – Mais do que essa incorporação, estamos falando de uma população de quase 14 milhões de pessoas que nunca foi prioridade para o Estado brasileiro. Então, o dilema é mais complexo, porque se por um lado é verdade que ela é vítima do sistema, de outro não parecem existir muitas alternativas a não ser acreditar em si mesmo. Esses brasileiros já entenderam que não há outro jeito de ir para frente se não for com as próprias forças.

Quando nós perguntamos para eles quais eram os maiores sonhos para as favelas em que viviam, a maioria das respostas dizia respeito a demandas públicas (segurança, saúde, moradia, escola, transporte), mas muita gente (12%) respondeu que sonha com mais respeito a eles, por exemplo. Essa também é uma demanda legítima. Tem como mudar isso? Claro que tem, mas isso passaria muito por uma mudança política de grande magnitude – e que não parece estar no nosso horizonte.

IHU On-Line – A pesquisa leva em conta dados sobre a religiosidade dos moradores e o crescimento dos evangélicos. É possível inferir alguma relação entre os princípios da teologia da prosperidade e o aumento na crença do crescimento pessoal?

Renato Meirelles – Com base nos dados da nossa pesquisa, não é possível fazer essa afirmação. Muitos outros estudos foram e estão sendo feitos para compreender melhor o crescimento dos evangélicos no Brasil nas últimas décadas, e parece não haver dúvida que esse é um dos fenômenos mais relevantes do nosso país neste século, mas acredito que ainda é cedo para relacionar as duas coisas.

IHU On-Line – Levando em conta os resultados obtidos, como o Brasil é visto a partir da perspectiva das Favelas?

Renato Meirelles – Eu acho que devo usar novamente a palavra “potência”. Durante a produção da pesquisa fui várias vezes a campo treinar e fiscalizar os moradores que aplicaram os questionários e, em todas elas, o que vi foi apenas um universo de potencialidades, oportunidades, ideias, pessoas criativas abrindo caminhos – e isso tudo fala muito do Brasil.

IHU On-Line – O que a favela tem a ensinar sobre como lidar com as crises econômica e social?

Renato Meirelles – Em uma das minhas visitas a campo, na favela de Paraisópolis, em São Paulo, eu conheci o dono de uma loja de materiais de construção que, imigrante do Norte nos anos 1970, prosperou ali mesmo, no lugar onde ele começou a vida na cidade. O que me chamou atenção foi quando ele me disse que ali, na loja dele, nunca tem crise. Acho que essa é uma grande lição: crise é regra na favela, não exceção. No entanto, em certo sentido, a favela se basta, depende de seus próprios recursos para existir. Isso só funciona na base da solidariedade, de uma rede de pessoas que compartilha uma mesma experiência e que se ajuda. Nesse momento da nossa história, isso diz muito.

 

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