Manifestações, ativismo e militância: novas formas de compreender a democracia. Entrevista especial com André Luis Leite

Manifestação em São Paulo | Foto: Paulo Pinto - Fotos Públicas

Por: Ricardo Machado | Edição: João Vitor Santos | 13 Dezembro 2019

Desde as Jornadas de Junho de 2013, o espaço político tem constantemente se reconfigurado. Seja à esquerda ou à direita, diferentes correntes têm tomado espaços públicos, das ruas às plataformas virtuais, mobilizando-se para defender seus ideais. “As manifestações de Junho, as Ocupações Secundaristas e os protestos ‘verde e amarelo’ são produto, e produtores, dessa intensa fase de conflito social, iniciada em 2013, na qual as ações coletivas se espalham de setores mais mobilizados para outros menos mobilizados e acentuam, ou explicitam, as tensões sociais que pareciam harmonizadas nos últimos tempos”, observa o psicólogo André Luis Leite, que tem se dedicado a observar esses fenômenos.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele revela como esses movimentos têm reconstituído a ideia de democracia. “Eles desafiaram a ideia de que o cidadão médio brasileiro não tem interesse por política, ou por questões da vida pública. Eles conseguiram desenhar, com intensidades distintas e visando atender a objetivos diferentes, formas de participação que foram bastante atraentes para parcelas significativas da população”, acrescenta. Além disso, André chama atenção para como as ideias de articulações individuais e coletivas se coadunam numa reconfiguração desse espaço político. “Os jovens ativistas parecem estar convencidos de que a democracia é mesmo uma reunião sem fim, mas que participar dessa reunião é condição para que eles aprendam como agir por si mesmos em parceria com os outros. Ninguém solta a mão de ninguém, pois juntos nos fortalecemos individualmente e aumentamos o nosso impacto nos rumos da vida coletiva”, analisa.

Em sua pesquisa, André também chama atenção para a importância de trabalhar conceitos, pois novos fenômenos precisam de novas reflexões. Daí a importância de se repensarem teorias e conceitos para compreender o que se passa diante dos olhos. “Caso nosso vocabulário não esteja adequado para captar as nuances simbólicas presentes nessas disputas, há grandes chances de que ignoremos a produção de novidade que se dá por entre movimentos de repetição. Para ver nascer o novo, é preciso estar atento aos detalhes e isso, nesse caso, implicou compreender a forma como essas palavras vinham sendo usadas no Brasil”, observa, ao distinguir o emprego das palavras militância e ativismo. A primeira, para ele, remonta a algo militar, com pouca reflexão e muita força de ação, enquanto a segunda está mais voltada para uma ideia de adesão desde o aspecto mais individual.

No entanto, fazer avançar a ciência, a teoria e os conceitos requer cuidado. “Não devemos ceder à tentação de usar a distinção proposta entre os modos de agir militantes e ativistas para reforçar estereótipos simplistas. Pensar essa ideia desse modo traz o risco de transformar os conceitos de ‘militância’ e ‘ativismo’ em marcas identitárias estigmatizadas: o militante reativo, sinônimo de retrocesso, portador de moralidade enrijecida versus o ativista criativo, paladino de uma ética relacional e de ator privilegiado da transformação social”, adverte. Por isso, considera mais produtivo centrar a análise nas “transformações no modos de protestos e manifestações da sociedade civil”, pois é isso que demanda “aprimoramento dos termos usados para tratar o assunto”.

André Leite (Foto: Arquivo pessoal)

André Luis Leite é graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e doutor em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista, na Faculdade de Ciências e Letras de Assis. Atuou como pesquisador visitante na Universidade da Cidade de Nova Iorque, EUA, e na Universidade de York, Toronto/Canadá. Ainda é especialista em Educação Permanente em Saúde pela UFRGS. Entre suas publicações, destacamos Militância e Ativismo no Brasil depois de Junho de 2013: entre Estratégias, Repertórios e Instituições (Revista de Psicologia Política, v. 19, p. 154-169, 2019) e Estratégia da Atenção Psicossocial e participação da família no cuidado em saúde mental. Physis (UERJ. Impresso, v. 20, p. 1209-1226, 2010).

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que impacto social e político tiveram os diferentes movimentos de rua no Brasil nos últimos anos, especialmente de Junho de 2013 às eleições de 2018?

André Luis Leite – Há quase consenso entre os pesquisadores de que aqueles foram eventos cruciais na produção do que temos vivido no país. Contudo, o sentido e a direção do impacto causado por toda aquela movimentação ainda segue em discussão. O IHU explorou bem essa pluralidade na Edição 524 de 2018 da revista IHU On-Line, a qual debateu os efeitos de Junho cinco anos depois. Foram aqueles acontecimentos os disparadores do nacionalismo antipartidário – ou anti-Partido dos Trabalhadores, como dizem uns e outros – coroada em 2019 com a eleição de Jair Bolsonaro? Foi lá onde nasceu a ‘nova’ direita brasileira? Junho foi fascista ou autonomista?

Feito esse esclarecimento, quero sublinhar o seguinte:

a) os movimentos de rua, bem como a ocupação das redes sociais e de prédios públicos, foram, e seguem sendo, um sinal tanto de aumento do desejo de tomar parte nas questões políticas, quanto do reconhecimento da insuficiência dos canais institucionalmente estabelecidos para participação cidadã (voto quadrienal e participação de conselheiros de direitos, conferências de políticas públicas, comissões propostas no poder executivo etc.);

b) esse ciclo de protestos explicitou a pluralidade de vozes e da incompatibilidade de projetos de país presentes na nossa sociedade civil, ou, dito de outro modo, ele escancarou o esvaziamento de um certo ideal de consenso e harmonia social, os quais foram reforçados entre 2003 e 2013 devido à relativa prosperidade econômica e estabilidade institucional;

c) esses eventos foram fundamentais para a consolidação da esfera virtual como arena estratégica da disputa pelos rumos da vida pública e também campo crucial das batalhas eleitorais.

Socialmente, esses três fatores explicam o surgimento, a articulação e a difusão de movimentos sociais vários, com pautas muito distintas entre si. Entre 2014 e 2019, a proliferação de ações coletivas contestando, apoiando, negando, suportando, contradizendo, aprovando e questionando os mais diversos aspectos da vida cotidiana pública e privada no Brasil foi mesmo surpreendente. Politicamente, me parece que o impacto produziu: a renovação do alinhamento de forças partidárias que marcou os primeiros 15 anos do século XXI; os esforços para que cada partido político marcasse aquilo que o diferenciava dos demais; e as tentativas de explicitar o alinhamento de interesses do cidadão ordinário com a pauta defendida por determinadas legendas visando fazer os cidadãos retomarem sua confiança nas instituições da democracia representativa.

IHU On-Line – Afinal de contas, há diferenças entre “ativismo” e “militância”? De que forma se pode caracterizar cada uma das perspectivas?

André Luis Leite – Parti dessa pergunta, e passei os últimos quatro anos pesquisando vídeos, entrevistando pessoas e analisando textos em busca de respostas. Resolvi trabalhar com essa questão por três motivos:

a) os integrantes do Movimento Passe Livre - MPL – coletivo fundamental nas, e para as, Jornadas de Junho – recusaram o termo militância e preferiram a palavra ativismo para nomear a si mesmo e as suas ações;

b) antes de 2013, a palavra ativismo não estava tão presente no vocabulário político nacional;

c) sou psicólogo e sei que as palavras carregam mais sentido, e produzem mais efeitos, do que costumamos reconhecer.

Meu objetivo com o estudo foi destrinchar os significados, distinções e semelhanças dessas duas formas de agir em conjunto. Por sinal, é fundamental começar dizendo que, no Brasil, os dois termos enquadram metodologias para se agir em conjunto a fim de interferir/intervir nas normas que regem a nossa vida em sociedade. Essa definição ressalta o que há de comum entre os dois termos e, ao mesmo tempo, ajuda a entender o que nelas há de diferente.

Não precisa pensar muito para perceber a aproximação entre as palavras militância e militar. Militar requer disciplina. Isso envolve regras rígidas, controle, padronização, repetição, hierarquia e regularidade. Um exército é eficaz quando poucos pensam e muitos fazem, quando as diferenças são suprimidas e as tropas atendem prontamente a seus comandantes. Os coletivos que vêm insistindo no uso do termo ativismo têm se organizado preferencialmente através de arranjos descentralizados, em que a liderança e as decisões são partilhadas entre muitos. Eles vêm usando as novas tecnologias de comunicação e informação para dar corpo a suas ações e têm na ideia de redes seu modelo organizativo estratégico. Neles a importância da agência, da criatividade e das necessidades singulares imediatas são reconhecidas e valorizadas. O pressuposto, comum em meios militantes, de que é preciso negar as necessidades, desejos e vontades singulares para atender as pautas coletivas é amplamente questionado em meios ativistas.

Retrógrados, intolerantes e violentos X progressistas

Entendidas dessa forma, essas duas palavras sintetizam ideias que caracterizam polos entre os quais é possível situar grande parte das estratégias e repertórios de protesto que têm comparecido na cena pública nacional. Classificar militantes como retrógrados, intolerantes e violentos, e ativistas como progressistas, benevolentes e pacifistas pode até ser tentador nesse tempo de grenal em que vivemos, mas diminui bastante o potencial explicativo que a ideia tem. Perceber como modos de agir mais heterônomos, hierarquizados e disciplinadores são combinados com outros mais autônomos, dispersos e autogeridos é o desafio que precisaremos abraçar.

IHU On-Line – O que há de comum e de particular entre as mobilizações de Junho de 2013, as Ocupações Secundaristas e as manifestações “verde e amarelo” que, de diferentes maneiras, ocuparam espaços públicos nos últimos anos?

André Luis Leite – Em comum eu diria que:

a) elas fazem parte do ciclo de protestos que têm em Junho seu ponto de expansão;

b) elas mostram que, como insiste há tempos o professor Vladimir Safatle, a sociedade brasileira possui bastante energia de revolta;

c) elas apresentam as transformações que as formas de protesto têm sofrido no Brasil e no mundo.

Vários aspectos as diferenciam e aqui eu gostaria de destacar que elas ajudam a entender como o sentido e a direção dados à energia de revolta dos participantes de um protesto são influenciados pelo ato de participar das ações coletivas. Deixe-me começar por esse ponto. A pesquisadora Rosana Pinheiro Machado descreve as insurreições de Junho de 2013 no Brasil, e outras tantas que aconteceram mundo afora, como “revoltas ambíguas”. Ela defende que o sentido das mudanças que as insurreições contemporâneas vão sugerir não é algo que está completamente dado antes das manifestações acontecerem. Segundo ela: “direita e esquerda são os polos para onde as rebeliões ambíguas podem pender”. É óbvio que as pessoas carregam consigo valores e ideias sobre o que fazer e para onde ir antes de ingressar em uma ação coletiva, contudo, essas referências não são estáticas e podem ser modificadas de acordo com o curso das ações.

Os articuladores dessas manifestações que você citou foram muito bem-sucedidos em construir, e sustentar, enquadramentos interpretativos que gerassem identificação nas pessoas e que as auxiliassem a direcionar para determinado fim a energia que elas estavam dispostas a investir. Os três movimentos sociais mencionados acima capitanearam a indignação presente naquele momento e os usaram para atingir distintos objetivos políticos. Eles ofereceram caminhos possíveis, os quais foram seguidos por sujeitos diversos, e que, inicialmente, estavam dispersos no tecido social. Isso é um ponto de diferenciação importante. O projeto Grafias de Junho coletou fotos de cartazes daquele momento e ajuda a perceber como a pluralidade estava posta ali. Em tempo, você pode ter notado que eu não me referi à ideia de cooptação. Supor que uma ação coletiva foi cooptada tem como pressuposto a crença de que ela tinha uma essência original que foi corrompida e adulterada por um agente externo e oportunista. A ideia de revoltas ambíguas sublinha a inexistência dessa essência pura e nos coloca diante do fato de que o que será feito com essa energia de revolta é algo a ser disputado pelos sujeitos presentes na arena política.

Voltemos para as comunalidades entre os movimentos citados. As manifestações de Junho, as Ocupações Secundaristas e os protestos “verde e amarelo” são produto, e produtores, dessa intensa fase de conflito social, iniciada em 2013, na qual as ações coletivas se espalham de setores mais mobilizados para outros menos mobilizados e acentuam, ou explicitam, as tensões sociais que pareciam harmonizadas nos últimos tempos. De certo modo, eles desafiaram a ideia de que o cidadão médio brasileiro não tem interesse por política, ou por questões da vida pública. Eles conseguiram desenhar, com intensidades distintas e visando atender a objetivos diferentes, formas de participação que foram bastante atraentes para parcelas significativas da população. Os três apresentam traços comuns com as formas contemporâneas de mobilização e participação social que têm se espalhado pelas praças, ruas e redes sociais pelo mundo afora. Trata-se de movimentos capitaneados em grandes centros urbanos e difundidos via internet e redes sociais para recantos diversos do país; eles são, ou foram inicialmente, defensores de uma certa independência em relação aos partidos políticos e outras instituições canônicas da democracia representativa e se organizam em torno de pautas geradoras de problemas que afetam o cotidiano da vida nas grandes cidades.

Modos de agir

Do ponto de vista dos modos de agir, enquanto o MPL e as ocupações secundaristas podem ser relacionados mais diretamente a práticas ativistas e a pautas do campo da esquerda, o Movimento Brasil Livre - MBL se valeu de uma estratégia na qual estão combinados o apelo à participação direta, intenso uso das novas tecnologias de comunicação e informação típicas do ativismo, com estruturas de liderança e arranjos organizativos centralizados mais afeitos às formas de ação militante.

Dois documentários recentes são muito ilustrativos das semelhanças e diferenças aqui apontadas. Espero a tua (re)volta (2018), de Eliza Capai, acompanha as manifestações dos secundaristas em São Paulo e apresenta relações entre essas e os ocorridos de 2013. Eliza explora com maestria e humor a pluralidade de narrativas e as tensões existentes entre os atores que se movimentam na margem esquerda do rio. Não vai ter golpe (2019), dirigido por Alexandre Santos e Fred Rauh, apresenta a construção do MBL enquanto ação da sociedade civil organizada visando ser o responsável pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff. O filme revela elementos fundamentais para compreensão dos modos de ação de Kim Kataguiri e seus exércitos virtuais.

 

 

IHU On-Line – De que forma as novas nomenclaturas e definições colocam em causa teorias sociológicas clássicas?

André Luis Leite – Em tempos de mudanças rápidas e de incertezas generalizadas, os questionamentos feitos pela reorganização das formas de luta para as teorias sociológicas clássicas têm acontecido com maior intensidade e frequência. Neste cenário é necessário atualizar as semânticas usadas para compreender o que se passa nas ruas, praças e redes sociais. Até pouco tempo atrás, por exemplo, no Brasil não era muito comum ver a expressão militância ser usada por indivíduos localizados na margem direita do espectro político. O crescimento mundial de ações coletivas defendendo pautas conservadoras e até contrárias aos ideais democráticos força os pesquisadores em ciências sociais a reverem certas premissas que sustentam seus discursos.

Eu tenho trabalhado com a Sociologia Norte-Americana sobre movimentos sociais e, nesse campo, me parece que a principal provocação feita pelas formas contemporâneas de protesto diz respeito à concepção de sujeito que sustenta as teorias canônicas do campo. A Teoria de Mobilização de Recursos - TMR, proposta por John D. McCarthy e Mayer N. Zald, por exemplo, parte da premissa de que a decisão de agir seria ato de deliberação individual, resultado de cálculo racional entre benefícios e custos.

Já a Teoria do Processo Político - TPP, desenvolvida por Charles Tilly e colaboradores, avança pouco em relação às premissas da TMR, uma vez que assume como condição para ação coletiva a avaliação racional feita pelos sujeitos de estruturas de oportunidades políticas favoráveis. Caso não haja tais condições, não haveria ação coletiva contestatória. Essas teorias sustentam-se em uma concepção de sujeito movido prioritária e quase exclusivamente pelo propósito de aumentar ganhos e diminuir perdas, agindo apenas quando as oportunidades são favoráveis e seguindo fielmente os planos traçados por seus líderes carismáticos.

Ao que parece, os adeptos dessas propostas teóricas ainda não reconheceram completamente o fato de que sujeitos não se movem apenas por uma racionalidade hipotético-dedutiva instrumental, minimizadora de gastos e maximizadora de ganhos. Questões afetivas, expectativas culturais e anseios singulares também entram nessa conta e pedem atenção especial dos cientistas estudando fenômenos políticos. Recentemente mais importância tem sido dada a tais aspectos graças a um movimento conhecido como Virada Emocional nos estudos sobre movimentos sociais e ações coletivas. Pesquisadores como James Jasper, Francesca Polletta, Jeff Goodwin, dentre outros, têm se esforçado para investigar a forma como emoções, afetos e aspectos morais se manifestam no contexto das ações contestatórias.

Trabalhei com as propostas desses autores e usei palavras comuns e assuntos corriqueiros como ponto de partida para uma investigação sobre as formas contemporâneas de ação coletiva que se espalham por praças, redes sociais e celulares no Brasil e no mundo. Fiz isso pois é preciso reconhecer a inseparabilidade entre questões teóricas e políticas, entre práticas culturais e modos de vida. Atualizar os pressupostos que usamos para estudar como os sentidos são produzidos, difundidos e consumidos no dia a dia é condição fundamental para que avancemos na compreensão dos significados que vêm sendo dados hoje às noções de ‘militância’, ‘mobilização’, ‘engajamento’, ‘ativismo’ e ‘movimento social’.

IHU On-Line – Na sua avaliação, há um descompasso entre a teoria sociológica e a compreensão dos episódios fáticos do mundo contemporâneo? Como essas duas coisas (episódios fáticos e modelos de análise da sociologia) se encontram e desencontram?

André Luis Leite – Se aceitarmos que a compreensão dos episódios não ocorre imediatamente e que ela vai mudando a depender dos episódios subsequentes, me parece prudente falar em descompasso. Estudar algo demanda um tempo e, muitas vezes, um certo distanciamento daquilo que se estuda. As teorias são sempre feitas com os recursos, conceitos e compreensões existentes em um dado momento histórico. Esse contexto pode mudar rapidamente e provocar um desalinhamento entre aquilo que está postulado pelos livros e o que se observa nas práticas cotidianas.

É mister destacar que não se trata de falha, erro, ou problema do conhecimento sociológico, e sim, algo ligado à especificidade do discurso científico. Teorias são perecíveis ao tempo, e precisam, portanto, ser atualizadas na medida em que outras informações e ideias são propostas. Isso faz com que fatos e modelos vão se encontrando e desencontrando de forma contínua, assistemática, e produzam interferências uns nos outros. Novas ideias modificam a compreensão que temos de certos fatos, e novos fatos vão levando à interrogação e reformulação das ideias. Há quem considere esses encontros e desencontros um processo dialético perene de produção de teses, antíteses e sínteses.

IHU On-Line – Qual a importância de se definir com clareza o que são as coisas? Em suma, por que diferenciar militância de ativismo?

André Luis Leite – Revisando os estudos brasileiros sobre militância publicados entre 1980 e 2015, percebi que o termo era usado para nomear objetos de investigação muito diferentes entre si. O uso dessa expressão não era acompanhado de conceituações, definições ou tentativas de explicações sobre aquilo que se desejava enquadrar sob esta alcunha. Movimentos sociais, partidos políticos, diretórios acadêmicos, centrais sindicais, além de sociólogos e outros pesquisadores empregavam a palavra indistintamente quando abordam as ações coletivas para intervir nas normas sociais, quando descrevem o engajamento de pessoas em certas ações e também ao apresentar grupos lutando por certas pautas. Diante dessa constatação e visando entender melhor o que os participantes dos coletivos ativistas estavam negando quando se recusavam a adotar a palavra militância, defini o termo para poder seguir com a investigação.

Esse movimento me permitiu ser mais preciso quanto à delimitação do meu objeto de estudo e dar a devida atenção à questão levantada pelos ativistas. Explico. Nas disputas pelas modificações das normas sociais, as palavras não são neutras já que elas criam, carregam e difundem ideias, propósitos e intenções. Inserir uma palavra nova na cena política é uma tentativa de reconstruir ações, renovar sentidos e criar outros possíveis. Definir as condutas a serem adotadas, os rumos a serem traçados e as direções a serem seguidas coletivamente é função das normas que regem a vida coletiva. O debate político – seja feito dentro ou fora do aparelho do Estado – envolve a construção dessas normas, e, nessa arena, as palavras escolhidas apresentam os atores para si mesmos e também para aqueles que acompanham sua atuação.

Quando os jogadores estão disputando os termos a serem empregados nas diferentes arenas, é necessário que os pesquisadores captem as nuances e adequem seu vocabulário para descrever aquilo que está acontecendo. Conceituar os termos presentes na cena é, então, condição para poder começar a acompanhar aquilo que está se passando diante dos nossos olhos. Caso nosso vocabulário não esteja adequado para captar as nuances simbólicas presentes nessas disputas, há grandes chances de que ignoremos a produção de novidade que se dá por entre movimentos de repetição. Para ver nascer o novo, é preciso estar atento aos detalhes e isso, nesse caso, implicou compreender a forma como essas palavras vinham sendo usadas no Brasil.

IHU On-Line – De que forma compreender a nova correlação de forças no âmbito das disputas narrativas ajuda a construirmos alternativas políticas para nossos impasses?

André Luis Leite – A disputa nas narrativas é correlata das tentativas de transformação nas práticas. Escutar com atenção aquilo que pode passar despercebido, ou que é sumariamente criticado pela discursividade vigente, oferece boas pistas sobre possibilidades ainda não atualizadas e potenciais alternativas para os problemas do nosso tempo. Os anos de trabalho como psicoterapeuta me fizeram atentar para isso, e agora carrego comigo esse aprendizado para minhas análises sobre as questões sociais. No caso da disputa simbólica que sustenta a tensão entre os termos militância e ativismo, desembaralhar os sentidos presentes nas formas de uso dessas palavras serve para encontrar, analisar e construir alternativas a pontos de estrangulamento em práticas naturalizadas.

Por exemplo, a dura crítica feita pelos ativistas a representantes canônicos do campo progressista nacional trouxe de volta à cena fragilidades que já estavam presentes há muito tempo. Em um estudo muito interessante sobre a formação desse campo no Brasil durante os governos militares, a pesquisadora Rosalba Lopes aponta como elemento importante dessa cultura política a tendência à centralização e hierarquização dos processos decisórios e organizacionais refletindo uma visão infantilizada dos indivíduos e priorizando uma atuação do tipo vanguardista (aquela na qual um grupo seleto de indivíduos esclarecidos dotado de talento e habilidades excepcionais é responsável pelas decisões estratégicas). Movimentos autoidentificados como ativistas reconheceram a permanência desse traço nas formas políticas vigentes e tentaram produzir alternativas concretas a ele através de infindáveis assembleias nas quais tudo e todos decidem, mesmo que vez ou outra pareça que nada foi decidido.

Ao fazerem isso, os jovens ativistas escolheram deliberadamente manejar um conjunto diferente de problemas e explorar alternativas outras na construção de soluções para antigos impasses. Uma das pautas mais proeminentes dos movimentos de Junho de 2013 e mesmo assim, ou até por isso, uma daquelas que recebeu menos respostas estatais, pedia ampliação e renovação nas formas de participação dos cidadãos na vida política. Não por acaso, as ocupações das escolas de ensino médio em São Paulo, em 2015, e boa parte daquelas que se espalharam por Institutos Federais de Educação e Universidades pelo país ao longo de 2017, empenharam-se para manufaturar arranjos organizativos priorizando participação direta na organização e condução das ações.

Os ocupantes parecem entender que a liberdade é mesmo “uma reunião sem fim”, mas que participar dessa reunião é condição para inventar o mundo que se deseja habitar, bem como para aprender maneiras de viver nele. Acompanhar a forma como as palavras carregam as intenções e propósitos de quem as usa, nos impede de minorar os esforços daqueles que trabalham ativamente pela reconstrução das nossas formas de vida, oferecendo assim, pistas interessantes para que inventemos o futuro. Belchior tinha razão quando dizia que o novo sempre vem, contudo, é preciso estar atento para conseguir enxergá-lo.

IHU On-Line – Quais os impactos dessa “nova” postura dos atores sociais em um contexto de corrosão da democracia representativa na forma como está dada?

André Luis Leite – Diante dos riscos postos à Democracia Nacional, urge aos corpos democráticos ampliar a capacidade de reconstruir as narrativas que fazem do Presente, enquanto (re)encantam e constroem a história do Futuro. Humanidade e a realidade do mundo se produzem contínua e mutuamente, e da mesma forma que o presente é produzido por atos feitos no passado, o futuro é obra das ações desenvolvidas no tempo presente. Muitos dos “novossujeitos, posturas, arenas e bandeiras de luta que têm pululado nas redes sociais e praças do Brasil e no mundo nos impactam por permitirem uma expansão da nossa imaginação política.

Digo isso pois eles têm sido marcados por tentativas de experimentar aqui e agora o mundo no qual seus integrantes almejam viver no futuro. Como a pergunta foca em democracia, quero usar como exemplo disso uma iniciativa fortemente marcada pela postura experimental e coletivamente gerida que caracteriza o ativismo brasileiro. Falarei do Movimento e da Mandata Ativista.

Em 2016, um grupo de cidadãos da cidade de São Paulo resolveu se juntar para apoiar candidatos pleiteando vagas na câmara de vereadores da cidade. Juntos eles almejavam fazer chegar aos cargos do legislativo municipal pessoas mais vinculadas às necessidades da cidade. A proposta é também inventar formas mais colaborativas e participativas de atuar dentro da política institucional. Na ocasião, o grupo apoiou nove ativistas diferentes ao pleito e conseguiu garantir a eleição da vereadora Sâmia Bonfim. Em 2018, eles deram um passo mais ousado e propuseram uma candidatura conjunta de oito ativistas. A hoje codeputada Mônica Seixas, apresentada na urna eletrônica como Monica da Bancada Ativista, foi eleita com 149.844 votos. Os eleitores que digitaram 50900 na urna estavam, na verdade votando em: Mônica Seixas, jornalista, feminista negra e ativista socioambiental; Anne Rammi, ciclista e ativista de causas ligadas à maternidade; Chirley Pankará, indígena e pedagoga; Claudia Visoni, jornalista, ambientalista e agricultora urbana; Erika Hilton, transexual, negra e ativista de direitos humanos; Fernando Ferrari, atuante nas questões ligadas à juventude periférica e à participação popular no orçamento público; Jesus dos Santos, defensor da cultura, da comunicação e do movimento negro; Paula Aparecida, professora da rede pública, feminista e ativista pelos direitos dos animais; e Raquel Marques, sanitarista, ativista pela equidade de gênero e do parto humanizado.

Os participantes dessa ação coletiva reconhecem duas camadas distintas, mesmo que conectadas, no seu agir hoje: o Movimento Bancada Ativista e a Mandata Bancada Ativista. “O movimento seguirá sua missão de pensar em estratégias potentes e inovadoras para eleger ativistas, a mandata tem a função de dar suporte aos ativismos que rolam em SP por meio de uma atividade legislativa conectada com as ruas” . No que diz respeito aos processos organizativos e decisórios relativos à Mandata, os ativistas na assembleia legislativa informam que “ as tomadas de decisão aqui são consensuadas entre todos, sendo que cada codeputada tem prioridade em sua pauta principal, podendo dar a última palavra caso haja discordância”.

Alternativa à falta de representatividade

Ainda será preciso tempo para avaliar o quão potente é esse arranjo organizativo, contudo, é inegável que esse experimento no fazer legislativo tenta endereçar de um modo muito peculiar a falta de representatividade que assola a política institucional. Sem esperar por uma necessária reforma política e manejando criativamente o fato de o Tribunal Superior Eleitoral ainda não ter reconhecido as candidaturas coletivas, os integrantes da mandata ativista nos lembram de que as normas, regras e instituições que permeiam a vida em sociedade foram feitas por nós para atingir dados fins, caberá a nós reconstruí-las, e, para tanto, será preciso encontrar formas de experimentar novos arranjos possíveis. Esse é o tipo de contribuição que os “novosatores e práticas já estão trazendo para a necessária reorganização dos sistemas democráticos representativos.

IHU On-Line – Nesse contexto, como mobilizar paixões alegres em torno de um mundo melhor?

André Luis Leite – Paixões alegres me remetem à ideia de menos medo e mais potência. Não é tarefa simples inventar formas de vida menos minadas pelo temor que parece rondar os nossos dias. Paixões alegres demandam expansão da nossa capacidade de agir, e isso é uma tarefa necessariamente collectividual – quer dizer, é simultânea e necessariamente coletiva e individual. Explico. Para que possamos agir, cada um de nós precisa reconhecer a nossa dependência do mundo e dos Outros, quer dizer, atentar para a dimensão coletiva presente em nossos atos. Ao mesmo tempo, o ato em si é necessariamente individual – dado que efetuado por um corpo individual e precisa ser executado por um sujeito separado dos demais.

Há uma tensão paradoxal aqui: ninguém pode fazer um Outro mais potente, contudo, ninguém pode ser mais potente na ausência de um Outro. Para avançarmos na construção de paixões alegres em busca de um mundo mais sustentável, precisamos construir relações mais solidárias no sentido jurídico do termo, quer dizer, pensando solidariedade como equivalente a responsabilidade partilhada entre os sujeitos. Também será necessário entender que desejos, vontades e anseios de mundo singulares não precisam ser necessariamente suprimidos em nome da construção de um projeto de futuro partilhado.

Colaborar e encontrar pontos de equilíbrio entre as necessidades grupais e aquelas de cada um é a tarefa complicada que as assembleias intermináveis dentro dos coletivos ativistas tentam executar. O tempo investido nisso tem como retorno o aumento da potência de ação de cada sujeito. Os jovens ativistas parecem estar convencidos de que a democracia é mesmo uma reunião sem fim, mas que participar dessa reunião é condição para que eles aprendam como agir por si mesmos em parceria com os outros. Ninguém solta a mão de ninguém, pois juntos nos fortalecemos individualmente e aumentamos o nosso impacto nos rumos da vida coletiva. Essa aposta tem me parecido interessante e produtiva tanto para reinventar o concreto, quanto para afirmar em ato mundos possíveis aqui e agora.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

André Luis Leite – Gostaria de ressaltar mais uma vez que não devemos ceder à tentação de usar a distinção proposta entre os modos de agir militantes e ativistas para reforçar estereótipos simplistas. Pensar essa ideia desse modo traz o risco de transformar os conceitos de "militância" e "ativismo" em marcas identitárias estigmatizadas: o militante reativo, sinônimo de retrocesso, portador de moralidade enrijecida versus o ativista criativo, paladino de uma ética relacional e de ator privilegiado da transformação social. Os resultados obtidos pela minha pesquisa contrariam a ideia de que a militância seria um modo de ação de menor valor que o ativismo. Associar a primeira com posições políticas exclusivamente à esquerda e a última com posicionamentos à direita, também não é uma conclusão possível.

Cada uma dessas metodologias possui pontos fortes e fracos, não há superioridade absoluta de uma em relação à outra e ambas coexistem em diversas formas de ações coletivas no Brasil. Eu não tive, ou tenho, nenhuma intenção de menosprezar os esforços feitos por aqueles que usam seu tempo para a recriação dos nossos modos de vida. O objetivo do meu estudo foi chamar atenção para o fato de que as transformações nos modos de protestos e manifestações da sociedade civil demandavam o aprimoramento dos termos usados para tratar o assunto. Dessa forma, ele contribui para fazer ressoar no universo acadêmico aquilo que se passa fora da academia. Por fim, acredito que entender melhor esse assunto também é relevante fora da academia, especialmente em tempos de escalada do autoritarismo e crise nos sistemas democráticos. Sendo assim, traduzi a pesquisa em um livro escrito na forma de uma crônica. “Para entender isso tudo aí: militância e ativismo depois de Junho” está em fase de edição e deve ser lançado em junho de 2020.

 

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