Emergência climática pode ser mais letal à Floresta Amazônica do que desmatamento. Entrevista especial com Vitor Gomes

Foto: Welington Pedro de Oliveira

19 Julho 2019

Vitor Gomes faz questão de dizer que é um amazônida e, como ser da floresta, sente diretamente os impactos da degradação ambiental. “Isso despertou meu interesse em utilizar minhas habilidades em tecnologia para desenvolver modelos que pudessem mostrar alguns destes impactos”, revela. Foi por isso que partiu da área da informática para as Ciências Ambientais e acabou coordenando estudos que revelam que há algo ainda pior para a Floresta Amazônica do que o desmatamento: a crise climática. “A conclusão surgiu com base nos resultados sobre a perda de área de distribuição das espécies. As perdas provocadas pelas mudanças climáticas podem ser maiores, pois o clima muda ao longo de toda a região, enquanto o desmatamento se concentra em algumas regiões”, observa, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Os estudos que coordenou reúnem pesquisadores do Brasil e da Holanda e atestam: metade das espécies de árvores da Amazônia estão ameaçadas de extinção pelo aquecimento global. “Em todos os cenários foi observada grande proporção de ameaças, variando entre 48% (cenário mais otimista) e 49% (cenário mais pessimista)”, explica. “Todavia, a proporção de espécies na classe de ameaça de maior risco de extinção (Criticamente Ameaçada) é maior no cenário pessimista (22%), enquanto no cenário otimista esse número cai pela metade (11%)”, completa. O pesquisador ainda alerta que, embora seja possível projetar os danos que podem ser causados em decorrência da crise climática, este é apenas o início dessa longa incursão. “Ainda tentamos entender as correlações entre as mudanças do clima e seus efeitos sobre a floresta”, observa.

Para ele, “a saída para evitar que isso ocorra no futuro pode estar intimamente ligada à mitigação das emissões de gases de efeito estufa e à restauração florestal”. E, na sua opinião, reverter essa emissão de gases é urgente, pois, do contrário, podemos estar perdendo biodiversidade que sequer imaginamos que exista. “Existem perdas de diferentes ordens, mas fundamentalmente sofremos danos profundos pelo desconhecimento do que estamos perdendo. Há muito o que ser estudado na Amazônia, por exemplo. Alguns autores pontuam uma responsabilidade moral, em detrimento da capacidade que os seres humanos possuem de destruir a biodiversidade”, alerta.

Vitor Gomes (Foto: Arquivo Pessoal)

Vitor Hugo Freitas Gomes é doutor em Ciências Ambientais na Universidade Federal do Pará, mestre em Gestão e Desenvolvimento Local e especialista em Redes de Computadores pela mesma instituição. Graduado em Processamento de Dados pelo Centro Universitário do Pará, tem experiência com linguagens de programação, processamento de imagens, modelos de distribuição, conservação, biodiversidade e desenvolvimento sustentável. Atualmente, integra a Rede Amazon Tree Diversity Network ATDN. É autor da tese Análise dos Impactos das Mudanças Climáticas e do Desmatamento sobre a Flora Arbórea da Amazônia. Recentemente, justamente com mais três pesquisadores do Brasil e da Holanda, Vitor apresentou uma análise combinando cenários de impactos do desmatamento e das mudanças climáticas com conclusões alarmantes .



Confira a entrevista.

IHU On-Line – O desmatamento é hoje a maior causa de perda de habitat na Amazônia, mas, segundo pesquisa que você coordenou, em poucas décadas a crise climática deve ser a maior causadora de danos à floresta, superando o desmatamento. O que os levou a essa conclusão?

Vitor Gomes – A conclusão surgiu com base nos resultados sobre a perda de área de distribuição das espécies. As perdas provocadas pelas mudanças climáticas podem ser maiores, pois o clima muda ao longo de toda a região, enquanto o desmatamento se concentra em algumas regiões.

IHU On-Line – Que outras descobertas nessa pesquisa os surpreendeu?

Vitor Gomes – Metade das espécies de árvores da Amazônia estarão ameaçadas de extinção. Em todos os cenários foi observada grande proporção de ameaças, variando entre 48% (cenário mais otimista) e 49% (cenário mais pessimista). Todavia, a proporção de espécies na classe de ameaça de maior risco de extinção (Criticamente Ameaçada) é maior no cenário pessimista (22%), enquanto no cenário otimista esse número cai pela metade (11%). Além disso, o estudo demonstrou que as áreas protegidas da Amazônia podem ser eficazes em combater a diminuição da riqueza de espécies.

IHU On-Line – Como a crise climática tem impactado os habitats e formas de vida da Região Amazônica?

Vitor Gomes – Atualmente, a crise climática pode atuar principalmente na mudança dos regimes de chuva (ou sua sazonalidade), o que pode encurtar os períodos chuvosos e prolongar os períodos secos. Este tipo de mudanças pode impactar diversas formas de vida que dependem da definição destes períodos para desenvolver seus modos de vida.

IHU On-Line – De que forma a crise climática incide sobre as árvores e espécies vegetais da Amazônia? Quais as espécies mais vulneráveis?

Vitor Gomes – As espécies amazônicas podem sofrer pelas mudanças nos regimes de chuva, que podem afetar a disponibilidade de água em toda a região. Espécies localizadas em regiões de ecótono [áreas de transição ambiental, onde comunidades ecológicas diferentes entram em contato] podem sofrer de maneira mais intensa. Nestas áreas, há um choque constante entre diferentes ecossistemas, como, por exemplo, nos limites entre os biomas Amazônia e Cerrado, na porção sul da floresta.

Nos últimos milênios, a Floresta Amazônica tem vencido este choque, por conta do aumento da umidade na região, em detrimento do aumento da sazonalidade latitudinal da Zona de Convergência Intertropical rumo à direção sul da floresta, que atualmente leva calor e umidade das massas de ar amazônicas até a região. Ou seja, a floresta tem sido favorecida por este processo nos últimos milênios. Todavia, esses processos, que normalmente levam milênios, têm ocorrido num ritmo muito mais acelerado em consequência das mudanças climáticas. Esse processo de expansão ocorreu de forma mais intensa nos últimos 3 mil anos, quando a Floresta Amazônica não expandiu mais.

IHU On-Line – No que consiste a migração das árvores reportada na sua pesquisa? Quais os riscos?

Vitor Gomes – Consiste no tempo necessário à migração das populações arbóreas. As árvores estão fixas ao solo e dependem de polinizadores e dispersores para se mover em direção a novas áreas. Este processo pode demorar milênios, e as transformações promovidas pelo clima, e sobretudo pelo desmatamento, têm ocorrido em décadas. Desta forma, as árvores podem não ter tempo hábil para se mover em direção a novas áreas por conta das mudanças em seu habitat. O habitat preenchido pelas espécies que estudamos pode se tornar inadequado em alguns anos, tal como mostramos na pesquisa, e costumamos dizer que suas populações não poderão simplesmente "pegar um ônibus" em direção a novas áreas com condições adequadas. Por este motivo, grande parte das espécies poderá enfrentar sérias ameaças no futuro.

IHU On-Line – A crise climática tem relação direta com a perda de cobertura vegetal, especialmente na Floresta Amazônica. Agora, além da derrubada das árvores, esse desequilíbrio climático pode ser ainda mais devastador do que motosserras. Quais as saídas possíveis para se resolver essa equação?

Vitor Gomes – A crise climática é um problema de ordem global, e ainda tentamos entender as correlações entre as mudanças do clima e seus efeitos sobre a floresta. Em algumas regiões do planeta os efeitos são evidentes, como no aumento gradativo do degelo do ártico provocado pelo aumento das temperaturas na região. Apesar dos efeitos na floresta serem menos perceptíveis, nos ficou muito claro no estudo impactos do clima ao longo de toda a floresta. Nenhuma fronteira, muro ou país está livre das mudanças climáticas. O desmatamento, por sua vez, concentra-se em regiões pontuais, acompanhando o avanço de estradas e mudanças de uso da terra promovidas por atividades produtivas. Apesar de o desmatamento impactar mais do que o clima, no futuro isto pode ser revertido.

A saída para evitar que isso ocorra no futuro pode estar intimamente ligada à mitigação das emissões de gases de efeito estufa e à restauração florestal. Um estudo publicado mostrou que o Brasil possui 50 milhões de hectares de áreas aptas à restauração florestal, considerando apenas áreas abandonadas, fora de áreas urbanas ou ligadas a atividades produtivas.

IHU On-Line – Qual a importância da legislação de proteção da Reserva Legal para frear essa destruição da Amazônia? E como o projeto de lei que tramita no Senado, de autoria de Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), que quer rever a Reserva Legal, pode acelerar ainda mais essa destruição?

Vitor Gomes – Utilizando uma matemática simples e acessível, este projeto de lei pode automaticamente flexibilizar o uso de 89 milhões de hectares de áreas de floresta, que são hoje protegidos pelo dispositivo da Reserva Legal. Mudanças de natureza brusca como essa podem trazer impactos significativos à floresta. O aumento das taxas de desmatamento pode acompanhar mudanças de ciclo econômico ou ambiental, como em 1995, ano de maior registro de aumento da taxa de desmatamento na Amazônia brasileira (29 mil km2), subsequente à chegada do plano real.

IHU On-Line – Como mensurar os danos, não só para a região Pan-Amazônica, mas para o mundo, da perda de diversidade que vem ocorrendo na floresta?

Vitor Gomes – Existem perdas de diferentes ordens, mas fundamentalmente sofremos danos profundos pelo desconhecimento do que estamos perdendo. Há muito o que ser estudado na Amazônia, por exemplo. Alguns autores pontuam uma responsabilidade moral, em detrimento da capacidade que os seres humanos possuem de destruir a biodiversidade. A biodiversidade pode ser interpretada enquanto um provedor de serviços, sustentáculo da vida humana, recurso natural, pilar da saúde humana (Farmacopeia, proteção contra infecções), progenitora da biofilia, fonte de conhecimento, e até mesmo enquanto seu poder de transformação das preferências humanas. Cada um destes pontos agrega valor à biodiversidade e eles também são importantes aspectos de reflexão.

IHU On-Line – Quais os desafios para recuperação de áreas degradadas na Amazônia?

Vitor Gomes – Incentivar a recuperação destas áreas, e também torná-las atrativas. Do ponto de vista dos pequenos e médios produtores rurais, que detêm muitas das áreas de passivos ambientais na Amazônia, a restauração pode não ser atraente do ponto de vista econômico. Existem hoje trabalhos que propõem processos de restauração produtiva, onde consorciam-se espécies de relevância ecológica com espécies de valor comercial, que podem ser aproveitados por meio do manejo produtivo. Um bom processo de seleção de espécies é também fundamental. A recuperação deve prever a utilização de espécies que originalmente faziam parte da composição da área degradada. Um bom processo de seleção de espécies aumenta as chances de sucesso do ponto de vista ecológico.

IHU On-Line – Como proteger a floresta hoje?

Vitor Gomes – Certamente por meio de esforços multi e interdisciplinares. Como você mesmo citou, temos aspectos biológicos e técnicos, e também econômicos, políticos, culturais, sociais... Não há uma receita pronta. O que está em xeque são os modelos de desenvolvimento propostos para a Amazônia. Ao que nos parece, o sinal que temos do governo hoje é que a Amazônia é nossa matriz de recursos e devemos fazer o aproveitamento econômico dela. Este mesmo modelo vem sendo desenvolvido nas últimas décadas e seus desdobramentos têm mostrado reflexos negativos em todos os aspectos citados anteriormente. No final das contas, nem a economia da região se desenvolve, muito menos o país, ficando apenas os prejuízos, sobretudo sociais e ambientais.

IHU On-Line – Você é graduado em processamento de dados, com especialização em redes de computadores e mestre e doutor na área de Ciências Ambientais e recursos naturais. Como, na prática, você articula esses diferentes campos? O que o motivou a construir essa formação visando estudos sobre a questão ambiental?

Vitor Gomes – Faço parte de uma nova geração, formada em programas interdisciplinares, discutindo os problemas ambientais sob várias perspectivas diferentes. Tem sido um desafio solucionar as problemáticas ambientais, pois elas são inerentemente interdisciplinares, e grande parte dos gestores e acadêmicos responsáveis por estas soluções na atualidade tiveram formação disciplinar. Eu sempre gostei de tecnologia, e moro na Amazônia. Desenvolvi de forma natural um profundo respeito pela floresta. Como amazônida, sinto diariamente os impactos dos modelos de desenvolvimento empregados na região, e isso despertou meu interesse em utilizar minhas habilidades em tecnologia para desenvolver modelos que pudessem mostrar alguns destes impactos.

 

Leia mais