Moradia urbana tem que levar em consideração a política urbana, principalmente de terra urbana. Entrevista especial com Ermínia Maricato

Ocupação em São Leopoldo | Foto: Gabriel Ost

Por: Wagner Fernandes de Azevedo | 31 Março 2019

A matemática da habitação no Brasil é complexa. A construção e a entrega de mais de 4 milhões de moradias durante o programa Minha Casa Minha Vida gerou um aumento no déficit habitacional, criando cidades dispersas. Segundo a professora e urbanista Ermínia Maricato, “nos períodos de boom imobiliário houve um aumento exponencial no preço da terra, dos imóveis e dos aluguéis houve uma verdadeira regressão do ponto de vista das condições de vida urbana”.

Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, Maricato analisa criticamente as políticas nacionais de habitação e apresenta suas principais falhas, que além de deteriorarem o problema da moradia, criaram cidades dispersas. Para a urbanista, os programas nacionais “investiram muito na cidade sem discutir a política urbana”, pois foram antes “uma política econômica pós-crise de 2008 para segurar PIB e emprego do que propriamente uma política habitacional”.

Maricato defende que a política habitacional deve levar em conta a cidade, “porque não se mora na casa, simplesmente; se mora na cidade”. A dispersão das cidades criou um novo poder de controle nas regiões em que o Estado não chega. “Hoje, em muitos lugares é o crime organizado que controla esses conjuntos, porque são ilhas, não tem nada em volta, é perfeito para essas organizações”, relata a professora.

No entanto, Maricato recorda que no passado recente políticas habitacionais com participação popular já foram elaboradas e projeta que “a democracia brasileira não tem solução se ela não passa pela cidade, pela capilaridade da participação, da politização e da informação, mas as cidades não estão sendo discutidas”.

Ermínia Maricato (Foto: Projeto Batente)

Ermínia Maricato é urbanista, professora aposentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - USP. Atualmente é professora visitante do Instituto de Economia da Unicamp e colaboradora do curso de Pós-Graduação da FAUUSP, professora visitante do Human Settlements Centre da University of British Columbia, Canadá, e da School of Architecture and Urban Planning of Witwatersrand – Johannesburg/South Africa, além de participar de corpos editoriais. Foi secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano da prefeitura de São Paulo na gestão de Luiza Erundina e secretária executiva do Ministério das Cidades no governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

Confira a entrevista.

IHU On-Line — Qual o maior problema das cidades brasileiras hoje?

Ermínia Maricato — É necessário perceber que grande parte das nossas cidades é constituída de ocupações ilegais. Historicamente a força de trabalho no Brasil nunca conseguiu ganhar o suficiente para comprar moradia no mercado capitalista, formal, nem foi atendida, em suas demandas e necessidades, pelas políticas públicas. Estamos diante de cidades em que a força de trabalho não teve a sua necessidade de moradia atendida nem pelo mercado, nem pelo Estado.

Como essa força de trabalho não evapora no final da jornada — mostro isso no documentário Fim de Semana (1975), dirigido pelo Renato Tapajós —, se constituiu um processo de produção da moradia da classe trabalhadora pela autoconstrução nas grandes metrópoles, por todo Brasil, praticamente pré-moderno, pré-capitalista. Chico de Oliveira, em 1972, mostrou em um artigo que essa forma de produção de moradia, ou seja, o trabalhador construindo sua própria casa com os amigos no final de semana, permitiu o processo de acumulação industrial, já que garantiu uma força de trabalho barata, de baixo salário.

O Brasil se industrializou praticamente no século XX, especialmente entre os anos 1940 e 1980, e esse processo de industrialização é conhecido pelos baixos salários. Trago isso para pensarmos a urbanização de baixos salários. Isso significa que a remuneração dos trabalhadores era suficiente para pagar alimentação, transporte, o mínimo indispensável para a sobrevivência, mas não para moradia. Então a maioria dos nossos espaços, das nossas cidades, resultou em ocupações. Isso é regra, não é exceção. Em parte, depende da região do país; por exemplo, no Sul a parte das cidades que é fruto dessa informalidade é menor, mas se for ao Norte ou ao Nordeste, seguramente mais da metade das grandes metrópoles é fruto de ocupação ilegal.

Por que esses prolegômenos? Porque a ocupação ilegal é regra e não exceção, dada a característica de um mercado que produz uma mercadoria — a habitação — para poucos, muito cara. Em alguns lugares é produto de luxo, às vezes nem a classe média consegue acesso ao mercado formal, é muito difícil. Você não tem o mercado produzindo moradia barata, de acesso fácil. Nós tivemos dois booms imobiliários, que foi o Banco Nacional de Habitação - BNH , de 1965 a 1980, e o Minha Casa Minha Vida, de 2008 a 2015. Mas, fora isso, é o povão construindo a cidade. A sua própria cidade.

Ocupação é regra e o Estado é ausente

E agora com essa característica de muitas preponderâncias, com a ausência do Estado, há milícias e o crime organizado entrando fortemente nas cidades do Brasil todo, não dá para dizer que é somente o Rio de Janeiro. Por mais que as milícias preponderem no Estado fluminense e o Primeiro Comando da Capital - PCC  em São Paulo, tem-se uma expansão do crime organizado substituindo o Estado em todas as periferias. É muito impressionante a organização do PCC em São Paulo, por exemplo, porque garante até uma certa previdência nas periferias.

Então quando discutimos habitação é muito importante entender que não é só falar de casa. Isso porque se mora na cidade. Se você morar na sua casa, mas ela estiver fora da cidade – como tivemos muito nesses períodos de boom imobiliário – e ao mesmo tempo não é rural, você não tem transporte, esgoto, água, escola próxima, então você não vive. Não tem condição. A lógica da habitação urbana não pode ser desvinculada do desenvolvimento urbano.

Os dois insumos principais da habitação, sem os quais ela não existe, são a terra e o financiamento para construir ou adquirir uma casa. Se não tem nenhum dos dois, como nossa força de trabalho não tem, a terra é ocupada ilegalmente. Há, por exemplo, um milhão de pessoas morando em proteção de mananciais em São Paulo, onde é proibida a moradia concentrada, então a ocupação da área deve ser de baixa densidade. Mas o que há é ocupação de alta densidade, de pobres, o que ocorre há 40 anos, pois os trabalhadores não têm acesso à terra, que é o principal para a habitação, isto é, terra urbanizada e bem localizada. Assim eles acabam sendo expulsos para áreas que são, inclusive, reservas ambientais. Eles não têm escolha.

Existem teses que mostram que 25% das moradias do Rio de Janeiro são ilegais, diante de toda legislação urbanística, mas principalmente diante da ocupação do solo, isto é, sem registro ou escritura. Essas pessoas não fazem parte de movimentos organizados, isso é resultado da falta de uma política de controle do uso e ocupação do solo. Mas a terra no Brasil, rural ou urbana, funciona como um nó nas relações sociais. A história da propriedade da terra no Brasil permeia a dominação, os privilégios, a especulação; isso vários autores já escreveram.

Então essa questão das ocupações tem que ser vista nesse contexto. Os pobres ocupam compulsoriamente, porque eles não têm outra solução. Se olhar o número de brasileiros que ganham menos de dois salários mínimos, onde estão? É a maioria da população. Eles vão morar onde na cidade? São atendidos por quem? Pelas políticas públicas? Isso não, porque política pública de moradia é feito susto, de vez em quando vem uma. Houve uma época interessante, a das prefeituras democráticas populares, mas acabou.

Existe também uma ocupação ilegal por parte da elite. A lei é um ardil no Brasil. A legislação urbanística é muito detalhada, e a legislação federal é avançadíssima para uma sociedade atrasada. Então tem muita moradia que é feita dentro do mercado, que aparentemente seria legal, mas não é, como é o caso dos loteamentos fechados. Eles se multiplicaram no Brasil inteiro na última década e constituem uma ilegalidade, porque loteamento, quando a mercadoria é o lote e não a construção, é regido pela lei federal 6.766/79. Essa lei obriga o loteador a doar para o município as ruas públicas — você não poderia morar e fechar — e, obrigatoriamente, uma porcentagem da gleba sob a forma de praças e áreas verdes. Mas existem, inclusive, juízes morando em loteamentos fechados. Recentemente, no governo Temer, saiu a Medida Provisória 759/2016, que pode resolver esses conflitos fundiários, e é possível regularizar loteamentos fechados.

A história do Brasil é uma história de ilegalidade fundiária, de grilagem, de fraude registrada; há uma vasta bibliografia demonstrando isso. Escrevi, em um artigo para Carta Capital, que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST  e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto - MTST não são vilões, e sim as vítimas do problema fundiário no país. Eles são uma minoria. Hoje, por exemplo, está sendo – ou já foi – aprovada uma lei para transformar todo o patrimônio público em terras em um fundo imobiliário, fundiário. Nós temos um patrimônio gigantesco e, para se ter uma ideia de como ele é tratado, não temos no Brasil um levantamento detalhado desse patrimônio, não temos um cadastro disso que é uma riqueza de todos nós. Por que é desconhecido? Porque sempre foi usado em benefício privado. Então, poderíamos ter tranquilamente um cadastro do que se tem em patrimônio de terras públicas.

IHU On-Line — A partir da sua introdução, podemos aprofundar melhor alguns pontos. Primeiro, poderia relatar melhor as políticas de habitação citadas anteriormente? Por que essas políticas foram limitadas? E que pontos positivos elas tiveram?

Ermínia Maricato — Elas foram limitadas porque para fazer política habitacional precisa-se de terra urbanizada, não só terra. E precisa de financiamento. Em qualquer país do mundo, a menos que se tenha uma herança, precisa-se de financiamento, e a moradia é o bem de consumo privado mais caro.

O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço - FGTS, criado em 1967, é um fundo que também serve para financiar moradia. No período do BNH e do Minha Casa Minha Vida houve um investimento forte, mas os fundos principais desse investimento ainda são os mesmos: caderneta de poupança privada e FGTS. No Minha Casa Minha Vida houve um importante subsídio que veio do Orçamento Geral da União, e foi desenhado muito semelhantemente ao BNH, mas mais voltado à população de baixa renda. No BNH, na época, houve algum desvio no subsídio para faixas de renda média e média alta, porque tanto o FGTS quanto o Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo - SBPE são duas fontes de dinheiro baratas.

Houve também muita produção de baixa renda. Entre os anos 1975 e 1980 foram produzidos por volta de 4 milhões de moradias e prédios. E no Minha Casa Minha Vida também, o mesmo número de moradias foi entregue. O que se tem nos dois períodos é uma especulação com terras que mudou a configuração das cidades brasileiras, então as cidades passaram a ser mais dispersas. Este é um conceito urbanístico importante: cidade dispersa é aquela em que você tem uma baixa densidade de ocupação do solo, e isso torna a cidade muito mais cara, precisa levar água, esgoto, pavimentação, transporte, coleta de lixo etc. para áreas onde a população está dispersa. Em ambos os booms imobiliários houve um forte investimento em habitação, então ocorreu uma expansão horizontal das cidades e os conjuntos habitacionais foram construídos fora da malha urbana consolidada.

O que acontece quando isso se dá? A cidade fica muito mais cara para todo mundo, e se tem a incorporação, na cidade, de terras vazias. No caso do Minha Casa Minha Vida, por exemplo, a Caixa Federal exigia que o conjunto habitacional respeitasse o limite de ocupação urbana, dentro do perímetro urbano, e as Câmaras Municipais então estenderam esse perímetro, incorporando o Minha Casa Minha Vida nesses terrenos. Quando se incorpora muita terra dentro do perímetro urbano, desorganiza-se o mercado fundiário, mexe-se com o preço da terra, dos imóveis e dos aluguéis.

Então houve, nesses dois períodos de boom imobiliário, um aumento exponencial no preço da terra, dos imóveis e dos aluguéis. Em São Paulo, por exemplo, depois de 2005, houve um aumento de 225% no preço da moradia, no metro quadrado construído, e de 260% no Rio de Janeiro. E também houve um aumento muito grande do valor do aluguel. Além disso, segundo a Associação Nacional de Transportes Públicos - ANTP, ocorreu a ampliação das viagens interurbanas, que ficaram mais longas, com isso as pessoas levam mais tempo para chegar ao trabalho, porque ele é muito concentrado nas cidades. Portanto, houve uma verdadeira regressão, do ponto de vista das condições de vida urbana, com esse boom imobiliário, apesar do incrível investimento que foi feito.

IHU On-Line – A senhora apresenta o argumento de que “habitação não é só casa” e as políticas de habitação executadas não levaram em conta esse princípio. Porém, pode-se dizer que, pelo menos em números, esses programas resolveram o problema do déficit habitacional?

Ermínia Maricato — Esse contexto é muito complexo. As pessoas pensam que se constroem casas e diminui o déficit. Havia em 2007 mais de 7 milhões de moradias no déficit, medido pela Fundação João Pinheiro. Nós construímos e entregamos mais de 4 milhões de moradias e saímos desse período, em 2016/2017, com um déficit ainda maior. É uma matemática difícil de entender.

O que aconteceu? Muita gente que não entrava no déficit porque pagava um aluguel que cabia perfeitamente dentro do orçamento, passou a fazer parte do déficit porque o aluguel subiu. O ônus excessivo com aluguel é parte do déficit, o qual tem também outros critérios: coabitação familiar, mais de uma família no mesmo domicílio, congestionamento, que considera o número de pessoas por quarto, qualidade do material de construção etc.

Somente em SBPE, FGTS e OGU, entre 2008 e 2015, foram 800 bilhões de reais em moradia. Esse dinheiro responde ao desemprego e ao crescimento do PIB? Em parte. Tudo isso foi para responder à crise de 2008, e não exatamente para produzir moradia urbana. Moradia urbana tem que levar em consideração a política urbana, principalmente de terra urbana. Nós temos lei avançada no Brasil, que fala que toda propriedade tem que cumprir uma função social. E o Plano Diretor fala que toda propriedade vazia, ociosa, que não cumpre a função social, vai passar por penalidades, como o IPTU progressivo. A gente não consegue aplicar a lei.

Em São Paulo existem 400 mil imóveis vazios no município, ou seja, há um número de vagas maior do que o déficit. Esse investimento massivo nas cidades gerou a ampliação horizontal e vertical, em um novo padrão de horizontalização e verticalização, com dispersão; investe-se um mundo de dinheiro, mas não se regula o solo. Então aumentou o preço da moradia, por especulação, e o déficit também aumentou.

IHU On-Line – A senhora considera isso políticas públicas de habitação?

Ermínia Maricato — Claro que foram políticas públicas, foi com dinheiro público. Mas dentro do Minha Casa Minha Vida existia um programinha que pegou 2% desse dinheiro todo, que era o Minha Casa Minha Vida Entidades. Esse programa veio dessa tradição das prefeituras democráticas e populares. Fui secretária de Habitação em São Paulo, na gestão da Luiza Erundina, e começamos esse programa de movimentos sociais, de universidades, que se mobilizaram muito inspirados pelas cooperativas de habitação do Uruguai. E nós constituímos um programa, que se deu em Porto Alegre e também em São Leopoldo, onde o Ary Vanazzi fez parte dessa construção, que chamávamos de Reforma Urbana: uma reforma no solo para ele cumprir uma função social na cidade e produzir moradia de forma participativa, muitas vezes com os próprios futuros moradores participando da construção, ou apenas fazendo a gestão da obra. E nisso se incorporaram arquitetos, engenheiros, advogados e assistentes sociais. Essa política gerou no Brasil um conjunto de habitações marcadas por boa arquitetura, boa construção e preço baixo.

O que me incomoda é não ter bibliografia sobre isso, pois os alunos de Arquitetura não sabem que durante mais de 20 anos nós fizemos boa política habitacional com boa arquitetura. Essa tradição abriu, com certa dificuldade, espaço no Minha Casa Minha Vida e, pelo menos, chegou a essa produção de 2% do orçamento, em que os moradores de baixa renda organizados em movimentos sociais discutem o projeto: primeiro eles conquistam um terreno – em geral essa conquista é uma doação dos municípios ou dos governos estaduais –, depois os governos pagam uma assessoria técnica para discutir os projetos com os moradores e posteriormente é orçado e a comunidade vai atrás de um financiamento — foi o que aconteceu  com o Minha Casa Minha Vida Entidades.  São conjuntos muito interessantes.      

IHU On-Line — Por que apenas 2% do orçamento foi destinado a esse programa?

Ermínia Maricato —Isso você deveria perguntar para o governo, mas eu tenho uma resposta rápida: essa produção de coparticipação social, muitas vezes na obra, mas em geral no projeto, não é tão rápida. Ela pode não ser lenta, mas não é tão rápida como chegar e falar para uma construtora que você será responsável pela terra, por elaborar o projeto e construir e a prefeitura dirá quem são os beneficiários, para quem vai a moradia.

Com isso, sobra uma questão entre a Caixa e os beneficiários finais, que irão morar no local. Mas a tradição que inauguramos foi tão importante que gerou a Lei Federal da Assistência Técnica. Então, se formos ao Sindicato dos Arquitetos do Rio Grande do Sul, no Conselho de Arquitetura e Urbanismo ou no próprio Instituto de Arquitetos do Brasil, encontraremos muitas pessoas, entre elas o Clóvis Ilgenfritz, que foi deputado federal e é o “pai” dessa lei de Assistência Técnica, que gostariam que os arquitetos pudessem dar assistência técnica a toda periferia urbana, não só na produção de novas moradias. Por quê? Porque há bairros construídos apenas pelos moradores, porém eles têm problemas urbanísticos, mas é possível resolvê-los a partir de um projeto urbanístico que corrige as casas que são insalubres — que não têm ventilação e que são focos de doenças respiratórias —, a drenagem das águas, o problema da circulação de área e de pedestres.

Lobby empresarial

A discussão do déficit tem uma armadilha, porque os empresários gostam muito de discutir déficit e dizer que “faltam sete milhões de moradias e nós precisamos construir isso rapidamente”; mas não é só isso. Se olharmos para uma cidade podemos tirar do déficit muita coisa se melhorarmos as residências, se fizermos uma reforma ou uma ampliação da moradia. Uma parte desse déficit é de infraestrutura, então o reduziremos se levarmos infraestrutura. Isso não é muito legal para empresário que quer construir muito. E para construir rápido e em grande quantidade, eles acham que tem que ser “daquele jeito”: pegam uma terra, que em geral é cara e eles não conseguem colocar dentro do orçamento, portanto estendem o perímetro urbano e colocam terra rural dentro da cidade — era rural e passou a ser urbana — e ali podem construir o conjunto habitacional. E muitas das pessoas que fizeram isso estão ligadas à especulação fundiária: construiu o conjunto habitacional, é o dono da terra que fica entre o conjunto e a cidade consolidada, e ganha muito mais na terra até do que na obra.

IHU On-Line — A senhora trabalhou no Ministério das Cidades como secretária-executiva (2003-2005). Tem muita pressão da especulação imobiliária sobre as políticas de habitação? Como se dá a relação entre os agentes da especulação imobiliária e o Estado? E quem são os agentes que controlam o mercado imobiliário e o espaço urbano?

Ermínia Maricato — Tem total. A cidade é um grande negócio e existem os interesses. Quem são os capitais que comandam o investimento urbano? Eles controlam, inclusive, o fundo público, por quê? Porque muda o preço da terra quando a infraestrutura de determinado bairro é melhorada. Por exemplo, constrói a Vila Olímpica, coloca metrô que vai da Barra para o Galeão, é alterado o preço da terra com este investimento. E nós abandonamos o que foi na nossa época das prefeituras democráticas o principal programa do ciclo: o Orçamento Participativo.

O controle sobre o orçamento público é uma das coisas mais estratégicas e importantes que a sociedade, a comunidade e os cidadãos podem fazer; é controlar a localização do investimento, no que e onde será investido, porque interfere no preço da terra. Portanto, temos sobre o orçamento público um lobby fortíssimo, como nós tivemos no PAC da Mobilidade ou como tivemos na localização dos conjuntos habitacionais. Quem são esses lobbies? O capital de construção de infraestrutura — as grandes empreiteiras —, o capital de construção de edificações, o capital de incorporação imobiliária, o capital financeiro e imobiliário e os proprietários de terra.

Isso existe em muitas cidades agora subordinadas a esses interesses e são interesses que casam com o financiamento de campanha eleitoral. E as nossas cidades ficam dominadas pelos interesses de quem ganha dinheiro com a produção das cidades, com a produção de infraestrutura e, às vezes, até com a zeladoria — manutenção da cidade, como a coleta do lixo. Quando vamos para a periferia vemos que é diferente o padrão de manutenção. E o metro quadrado tem um custo que varia de acordo com a localização na cidade: em certos bairros tem um preço e em outros tem preços diferentes; em alguns bairros aqui em São Paulo a expectativa de vida é menos de 60 anos e em outros a expectativa média é de 80 anos. Tudo isso pesa no custo do metro quadrado e se colocarmos muito dinheiro na produção desse espaço, se não for controlado o preço da terra e o investimento, é o reino da especulação. Não dá para separar moradia — casa — de cidade, em hipótese alguma.

IHU On-Line — A reforma urbana depende da reforma política?

Ermínia Maricato — Estou escrevendo um artigo perguntando por que as cidades saíram da agenda nacional. Não é que não seja importante discutir o que está acontecendo na conjuntura, porque estamos em uma encruzilhada grande no Brasil neste momento. Mas acredito que a democracia brasileira não tem solução se ela não passa pela cidade, pela capilaridade da participação, da politização e da informação, e as cidades não estão sendo discutidas, por quê? Por que saíram da agenda, se nós fomos tão felizes durante o período das prefeituras democráticas e populares? Por que o orçamento participativo foi replicado no mundo inteiro — 2.800 cidades, incluindo Nova York e cidades da Escandinávia? E por que isso foi esquecido? Por que foi ignorado?

A política habitacional do governo federal recente foi muito mais uma política anticíclica, isto é, foi antes uma política econômica pós-crise de 2008 para segurar PIB e emprego do que propriamente uma política habitacional. Mas por que tudo o que fizemos de virtuoso foi esquecido?  Por que a questão da participação que era tão cara na década de 1980, por exemplo, ficou refém da pasta institucional? Eu fui para o governo federal na equipe de transição para criar o Ministério das Cidades. Nós tínhamos Ministério, Conferência e Conselho nacionais, conferências municipal e estadual. Em certa ocasião fui ministrar uma palestra em Porto Alegre e o pessoal de São Leopoldo queria que eu fosse à Conferência Municipal, mas eu já não acreditava mais nisso, eu não acreditava mais em uma participação que estava restrita à pasta institucional, que valoriza cargos, mandatos, eleições e ignora essa capilaridade necessária que tínhamos nos anos 1970 e 1980 nos bairros. Uma participação que traz essa solidariedade entre as mulheres, especialmente as mulheres chefes de família e de baixa renda, em relação ao cuidado com os filhos, à reivindicação da creche.

Estou dizendo tudo isso porque não dá para isolar a política habitacional desses aspectos, como fez o Minha Casa Minha Vida. Apesar de que, olhando o esforço da Caixa Econômica Federal percebemos que havia uma regulação, com trabalho de um quadro técnico competente, e a ideia era não permitir que os conjuntos ficassem fora da cidade — existia essa ideia. Mas é importante registrar: eu quero fazer a crítica, acredito que foi um projeto desenvolvimentista equivocado porque investiu muito na cidade sem discutir a política urbana, embora a Caixa tivesse regras para a localização dos conjuntos habitacionais. Eles deveriam ter certa distância de escolas, de postos de saúde, de transporte. No entanto, muitas vezes esses equipamentos foram construídos posteriormente e, na verdade, estavam a muita distância da cidade consolidada — como eu falei.

Quem define a localização dos conjuntos habitacionais é o município; é competência constitucional. Por isso que os proprietários de terra e especulação imobiliária são problemas locais, estaduais ou metropolitanos. Uma prefeitura poderia perfeitamente ter negado a licença para a construção de conjuntos habitacionais em lugares ermos, como aconteceu.

Hoje, em muitos lugares, é o crime organizado que controla esses conjuntos, porque são ilhas, não tem nada em volta, é perfeito para essas organizações. O Estado esteve presente porque construiu o conjunto, assegurou que terá coleta de lixo e transporte durante a semana — não no final de semana —, mas não assegurou mais nada, não tem cidade ali — e não moramos na casa, moramos na cidade.

IHU On-Line — Qual o futuro que a senhora vislumbra para a política habitacional e para os movimentos de luta por moradia e pela terra?

Ermínia Maricato — Em primeiro lugar, a partir de um posicionamento da Frente Brasil Popular, nós estamos constituindo uma rede e é impressionante o poder de atração das pessoas de se juntarem à questão para formular propostas. É o que estamos chamando de BrCidades — Um projeto para as cidades do Brasil. Começamos redigindo um manifesto pensando no médio e longo prazo, porque olhando a história do Brasil e das cidades brasileiras, não dá para pensar que mudaremos as coisas rapidamente, pois são muitas práticas e relações sociais consolidadas com o ambiente construído, com a apropriação da renda imobiliária e com a segregação.

Nós temos um aspecto muito positivo no fim do túnel que é essa reunião de pesquisadores, acadêmicos, lideranças sociais e entidades profissionais — da Engenharia, da Arquitetura e do Serviço Social. Além disso, professores de 26 universidades já estão mobilizados pensando moradia, mobilidade, saneamento, gênero, raça — o problema racial é crucial para a história do Brasil. Esse é o lado interessante que está dando muita esperança, é um crescimento muito forte e muito espontâneo. É possível perceber que as pessoas estão sentindo a ausência de um projeto para a cidade, estão sentindo a expansão de religiões conservadoras que ocuparam um espaço que foi deixado pelos partidos progressistas de esquerda.

Desafio do Estado e frustração da esquerda

Por outro lado, existe um dado de crescimento do crime organizado, e, se considerarmos a criminalização dos movimentos, chega a ser ridículo diante do crescimento do crime organizado.  O ministro [Sérgio] Moro  vai ter muito trabalho se ele quiser enfrentar realmente o crime organizado no Brasil, porque ele está se expandindo de forma exponencial. Verificamos isso exatamente nos bairros onde o Estado não está presente; no máximo temos escolas, um ou outro equipamento de saúde e de educação e a polícia. Uma polícia que mata e morre não é só algoz, ela também é vítima, porque a desigualdade é muito profunda.

Se estudarmos mobilidade no Brasil, o preço da tarifa e o tempo que as pessoas passam no transporte, é possível percebermos que é uma situação explosiva. E essa situação de extrema desigualdade, segregação, é um sofrimento que aumentou muito com o crescimento do desemprego e do subemprego.

Existe uma tensão muito forte para manter essa segregação, essa desigualdade, como normal, e é mantido pela polícia. Em 2016 o Atlas da Violência no Brasil mostra que morreram por armas de fogo 62 mil pessoas, em 10 anos foram 500 mil pessoas, ou seja, estamos vivendo uma guerra. Isso é uma coisa que a esquerda não teve sensibilidade para perceber. A esquerda perdeu duas bandeiras fundamentais: uma é a luta contra a corrupção e a outra é a luta pela paz, pela Segurança Pública.    

IHU On-Line — Deseja acrescentar algo?

Ermínia Maricato — Eu estou aposentada, mas trabalhando muito. Para além das minhas tarefas acadêmicas, eu trabalho voluntariamente, com muitos colegas, para retomar uma luta pelo conhecimento técnico, científico e para combater o analfabetismo urbanístico.  E, além disso, para mostrar que isso está muito relacionado. E se o Brasil está atravessando uma crise política, econômica, social e ambiental, nas periferias das grandes cidades essa crise adquire contornos dramáticos e explosivos.

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