O protagonismo geopolítico do pontificado de Francisco é uma das razões que explicam a comoção em torno da eleição de Leão XIV, diz o sociólogo. Francisco, pontua, devolveu “um protagonismo em escala global para a Igreja”
O principal legado do pontificado do Papa Francisco para a vida interna da Igreja foi a sinodalidade, mas o ministério petrino sob o governo de Bergoglio também trouxe uma novidade: “pela primeira vez na história da doutrina social da Igreja tem uma crítica frontal ao capitalismo”, destaca Jorge Alexandre Alves, na entrevista a seguir concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “Ao falar da economia que mata, o Papa Francisco traz essa novidade, a percepção de que talvez não haja salvação no capitalismo. Isso não significa dizer que ele era socialista, comunista ou marxista. Muito longe disso. Ele, como homem da Igreja, viveu e aprendeu a dura realidade das relações humanas e sociais a partir do seu lugar social. Ou seja, a experiência na grande Buenos Aires, um território com grandes problemas sociais, profundamente desigual, onde riqueza e pobreza convivem lado a lado”, pontua.
Para Alves, o pontificado de Leão XIV “será uma continuidade discreta” em relação ao de Francisco “porque tivemos um papa profeta”. Entretanto, sublinha, “alguém que tem como referência são Romero indica uma continuidade, mas uma continuidade que será baseada nas estruturas institucionais e numa teologia mais antiga, de resgate da tradição teológica, sobretudo por ele ser um filho de Santo Agostinho”. Este acento, complementa, “tem a ver com o próprio momento da Igreja e é uma resposta também ao que se apontava nas preocupações das congregações gerais em relação à divisão interna da Igreja e à unidade da Igreja. A eleição de Prevost também sinalizou isso. Ou seja, foi uma reposta do Colégio Cardinalício para o mundo, para a praça de São Pedro, de que a Igreja teria que sair do Conclave unida”.
Segundo o sociólogo, ainda é cedo para prognósticos e apontamentos. “O que temos hoje são discursos, pequenos simbolismos e uma enorme disputa de narrativa por esse pontificado. Isso talvez seja o elemento novidadeiro. Por isso tantas pessoas estão dando opiniões”, observa. Uma mudança, contudo, é evidente: passa-se de uma teologia jesuítica para uma teologia agostiniana. “É diferente da perspectiva de serviço no mundo dos jesuítas, da ação missionária no mundo. É uma teologia baseada em uma cristologia focada na figura do Jesus da fé”.
Jorge Alexandre Alves (Foto: Arquivo Pessoal)
José Alexandre Alves é sociólogo formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É professor do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e integra o Movimento Nacional Fé e Política.
IHU – O que explica tantos comentários em torno da eleição do Papa?
Jorge Alexandre Alves – Não sei se você vai concordar comigo, mas, de fato, nunca se falou tanto de um começo de pontificado como este. Estou impressionado com a grande quantidade de opiniões circulando. Isso se explica por várias razões. Primeiro, pelo papel geopolítico do Papa, sobretudo pelo fato de Francisco ter devolvido um protagonismo em escala global para a Igreja. O fim do pontificado de Bento XVI foi marcado por um cenário de crise. A Igreja estava envolvida em escândalos de diferentes matizes. Havia as questões dos abusos, o comportamento duplo de lideranças de instituições, lideranças que foram muito estimadas por Bento XVI e João Paulo II. Havia a batalha de disputa pelo poder no interior da Cúria Romana, que culminou com o vazamento dos documentos do VatiLeaks, os escândalos financeiros.
A Igreja tinha perdido uma certa capacidade de ser protagonista no cenário geopolítico. Aliado com Ronald Reagan e Margaret Thatcher na implosão da experiência do socialismo real na Europa (a partir do que aconteceu na Polônia e na queda do Muro de Berlim), a voz poderosa que Wojtyla foi perdendo força no tempo de Bento XVI, que teve um pontificado mais voltado para as questões internas da Igreja. Isso pode dar margem para muitas interpretações, mas gosto muito das análises que Leonardo Boff fez à época, ou seja, que aquele projeto de Igreja de volta à grande disciplina, para parafrasear o título do texto do padre João Batista Libanio, havia se esgotado e era necessária uma mudança. Por isso elegeram Bergoglio, um papa da Argentina, que adotou o nome de Francisco.
Francisco recupera o protagonismo da Igreja em função do pontificado que realizou, tanto do ponto de vista interno quanto da relação da Igreja com o mundo contemporâneo. Além disso, a morte dele, de certa maneira repentina – porque muitos esperavam que ele partisse quando foi internado no hospital Gemelli, mas ele saiu do hospital e teve uma recuperação impressionante, participando de vários momentos da Semana Santa, mas morreu na primeira segunda-feira após a Páscoa –, causou um impacto muito grande e a pergunta: o que vai ser agora?
Fiquei impressionado porque soubemos da notícia da morte do Papa na manhã de segunda-feira e, à tarde, pessoas de todos os campos já estavam sendo entrevistadas. Num portal mais progressista, um entrevistado dava cinco nomes de “papabile”. Daqueles nomes, alguns poderiam continuar o magistério de Francisco, mas dois não estariam nesse cenário se fôssemos considerar a trajetória de suas vidas, independentemente de terem sido leais ao Papa. Lealdade não necessariamente significa concordância ou manter a mesma linha ou visão eclesial que o papa reinante.
É bom lembrar que Bergoglio foi feito cardeal pelo Papa João Paulo II no começo do século XXI e foi um arcebispo com posições antagônicas em relação às que ele próprio adotou enquanto pontífice. Temos que levar isso em consideração nas análises. É muito difícil, no mundo atual, com a grande quantidade de informações que circulam, com informações incorretas, meias-verdades e mentiras, ter capacidade de apreender o que está acontecendo neste momento.
IHU – O que o pontificado de Francisco significou para a Igreja e para além dela?
Jorge Alexandre Alves – Francisco escreveu, auxiliado por teólogos e especialistas, talvez o principal documento ambiental da década passada, a Laudato si’. Um documento reconhecido e valorizado no campo das questões ambientais. Isso deu uma notoriedade para ele e para o catolicismo em escala global porque é uma posição muito crítica em relação às questões ambientais e contrária ao negacionismo científico, muito abalizada nas melhores práticas de pesquisa das questões ambientais contemporâneas. É um texto belo e de uma teologia que dialoga diretamente com a teologia de Francisco de Assis e com o grande saber que caracteriza a Companhia de Jesus.
O segundo elemento externo importante é o encontro do Papa com os movimentos sociais. Francisco se encontrou duas vezes com os movimentos sociais de todo o mundo, uma vez na Bolívia e outra, em Roma. A defesa dos três T's (terra, teto e trabalho) é decisiva para legitimar a ação dos movimentos sociais na luta por melhores condições de vida para as pessoas, sobretudo para os mais pobres e excluídos da cidade e do campo.
O terceiro elemento são as críticas econômicas a partir das questões ambientais e da aproximação dos movimentos sociais que culminaram no documento da Economia de Francisco e Clara, onde Francisco é categórico ao afirmar que esse sistema econômico mata. Essa é uma novidade do ministério petrino porque, pela primeira vez na história da doutrina social da Igreja, tem uma crítica frontal ao capitalismo. Ela não está posta nos documentos anteriores. A Rerum Novarum inaugura a doutrina social da Igreja no mundo moderno e, depois, João Paulo II escreveu a Centesimus Annus. Mas, ao falar da economia que mata, Francisco traz essa novidade, a percepção de que talvez não haja salvação no capitalismo. Isso não significa dizer que ele era socialista, comunista ou marxista. Muito longe disso.
Francisco, como homem da Igreja, viveu e aprendeu a dura realidade das relações humanas e sociais a partir do seu lugar social. Ou seja, a experiência na grande Buenos Aires, um território com grandes problemas sociais, profundamente desigual, onde riqueza e pobreza convivem lado a lado. Ele era um padre que circulava nas favelas. Mesmo sendo arcebispo de Buenos Aires, andava de transporte público. Além disso, teve a experiência da teologia latino-americana que, na Argentina, foi chamada de teologia do povo e tinha uma percepção das contradições a partir do plano da antropologia e da cultura. Isso tudo desenha um cenário de uma presença da Igreja ad extra, fora dos muros, para essas questões. Isso fez de Francisco uma figura querida internacionalmente.
Internamente, Francisco resgata as intuições dos padres conciliares e recupera a recepção latino-americana de recepção do Concílio Vaticano II (CVII), principalmente através da conferência do episcopado latino-americano realizada em Medellín em 1968. A vontade dele de desejar uma Igreja pobre para os pobres, ou usar as simbologias do papado para mostrar essa orientação, como o uso da roupa branca, sapato preto, a dispensa de todos os símbolos de poder monárquico do pontífice romano, a proposição de uma Igreja que esteja em saída, que vá para as periferias existenciais, não apenas para as periferias materiais, mas para as periferias da alma, do isolamento, da exclusão, da solidão, foi muito profética. Tivemos um fenômeno muito raro na Igreja de termos um papa profeta. Nesse sentido, Francisco se conecta diretamente a João XXIII.
Alguns autores italianos e norte-americanos falam que dos doze anos de pontificado, Francisco viveu pelo menos dez num estágio de permanente guerra civil porque nunca vimos uma oposição tão dura, desrespeitosa e desonesta intelectualmente feita a um pontífice na história contemporânea da Igreja. Com seu estilo, profecia e determinação em fazer as reformas da Igreja e em fazer uma Igreja mais sinodal – que foi o grande elemento de recuperação do CVII –, de certa maneira Francisco encontrou resistências e antagonismos. Uma boa parte das reformas dele estão incompletas em função disso. Dar continuidade às reformas é a missão que teremos daqui para frente.
Eu me sinto privilegiado de ter sido testemunha ocular desse pontificado. Se alguém em 2011, ou mesmo em 2012, dissesse que poderíamos ter um Francisco, eu acharia muito difícil; só seria possível por uma ação do Espírito Santo, que foi o que realmente aconteceu. Todos nós, que passamos os últimos 12 anos acompanhando o dia a dia de Francisco, tivemos um tempo de verdadeira graça. Foi um verdadeiro kairós, uma teofania, no mundo contemporâneo, termos o pontificado de Francisco.
IHU – Qual foi o estilo de Francisco e sua forma de governança ao longo de doze anos?
Jorge Alexandre Alves – Ele era uma figura de enorme carisma e enfrentou oposição no seu próprio quintal, na Cúria Romana. Então, acredito que algumas vezes ele tenha sido obrigado, por causa das circunstâncias, a tomar decisões discricionárias. Quando ele nomeia algumas figuras para o Colégio Cardinalício e retira a tradição de sedes episcopais, que eram tradicionalmente cardinalícias, esperava-se que um novo arcebispo de uma diocese logo se tornasse cardeal, mas isso não aconteceu.
Assim como ele também foi deixando de nomear, para o Colégio Cardinalício, alguns prelados que eram da burocracia romana. Ele teve que enfrentar isso e precisou lidar com as experiências das nunciaturas apostólicas, que nem sempre fazem o melhor papel, sobretudo no diálogo com as igrejas nacionais em relação à nomeação dos bispos. Isso fez com que ele tomasse medidas centralizadoras e se cercasse de algumas pessoas de sua absoluta confiança. É o que me pareceu que ele tentou fazer quando chegou a idade de aposentadoria do cardeal Marc Ouellet, que era muito vinculado a Bergoglio. Francisco o manteve à frente do Dicastério para os Bispos e depois o substituiu por Prevost, um norte-americano que é muito mais latino na sua experiência pastoral. Isso marca o estilo de Francisco.
Como jesuíta, o papa sabia dosar a hora de agir discricionariamente, mas também a hora de ouvir pares, de ouvir vozes, de ceder. Ao mesmo tempo, o que chega para nós é que o ambiente de antagonismo a Francisco na Cúria era muito forte. Ele, como portenho e argentino, reagia a isso à sua maneira. Por isso, muitas queixas.
Agora, é bom observar que quem se queixa hoje, no passado esteve diretamente implicado na crise da Igreja, seja no campo do acobertamento dos abusos sexuais, seja no comportamento duplo de muitas autoridades religiosas, seja no vazamento da burocracia vaticana, seja no fechamento doutrinal litúrgico. Isso tem uma razão de ser da parte de Francisco. Não tem como mudar uma burocracia pesada, que se comporta da mesma maneira há séculos, de uma hora para a outra. Esta talvez seja a tarefa mais difícil de um pontífice: renovar a estrutura de burocracia que funciona dentro da Cidade do Estado do Vaticano.
IHU – O que o Papa Francisco quis dizer à Igreja com a insistência na sinodalidade? A proposta da sinodalidade teve uma intencionalidade específica para o interior da Igreja? O que seria?
Jorge Alexandre Alves – Sim. Foi produzir as mudanças que a Igreja precisava. Seria um novo arggiornamento. A Igreja precisou de um novo aggiornamento. Quando Bento XVI renuncia, um gesto muito corajoso, ele sinaliza a falência de um determinado modelo de Igreja e, para que uma nova Igreja emergisse, seria preciso um aggiornamento. Isso já estava previsto pelos padres conciliares no VCII, com a experiência da sinodalidade. Na impossibilidade de ter concílios com maior regularidade, colocar-se numa perspectiva sinodal significa resgatar o Capítulo 2 da Lumen gentium, aquele princípio eclesiológico da Igreja como povo de Deus que caminha e segue junto.
É uma tentativa de se reconectar e se religar às experiências das primeiras comunidades cristãs que tinham a capacidade sinodal de estar decidindo tudo em conjunto, coletivamente, como comunidade. Esta é a principal missão: colocar-se no caminho sinodal para poder caminhar como testemunhas do Evangelho, discípulos e discípulas missionários a caminho do reino definitivo, ajudando a construir o Reino de Deus aqui na terra. Esse talvez seja o principal legado desse pontificado para a vida interna da Igreja.
IHU – O Papa Francisco ficou conhecido por muitas expressões que tinham significado pastoral e teológico: Igreja em saída, hospital de campanha, não ser cristão água de rosa, a guerra é uma loucura. Que aspectos do magistério dele entraram na mentalidade e na vida da Igreja e tendem a continuar reverberando e quais tendem a ser atenuados por não terem sido tão bem recebidos ou incorporados na prática?
Jorge Alexandre Alves – Há uma frase que você não mencionou, mas acho importante: “que os bispos tenham cheiro de ovelha”. Essa expressão se tornou uma marca do pontificado de Francisco, assim como a expressão “padre das esquinas”. Ou seja, o ministério ordenado tem que estar a serviço do povo de Deus e não para ser servido pelo povo de Deus. Nesses doze anos, várias autoridades eclesiásticas tiveram que renunciar às suas funções e isso se tornou objeto de escrutínio público na comunidade católica. Leão XIV carrega essa perspectiva também. Há uma humanização dos religiosos.
Sabemos das pesquisas do padre Agenor Brighenti sobre a situação do clero no Brasil, uma situação de crise, com muitos clérigos com a saúde mental abalada. Também tem a questão das relações afetivas, que é um nó no catolicismo brasileiro e em escala global também. Isso foi um elemento importante de humanizar a figura do religioso, do sacerdote, do bispo e do papa. Um papa que se permite marejar os olhos, como aconteceu com Leão XIV, mostra o legado do que Francisco fez com o pontificado.
A ideia da Igreja como hospital de campanha é uma questão importante, mas sofre resistências em função do avanço, em várias partes do mundo, do ultraconservadorismo e ultratradicionalismo católico, que são uma expressão do fundamentalismo religioso de matriz católica. Não é um fenômeno do catolicismo, mas um fenômeno do mundo contemporâneo esse apelo e tentativa de refúgio numa mensagem absoluta do ponto de vista religioso, que garante alguma segurança num mundo em meio a tantas transformações e de uma mudança de época em que tudo é transitório e onde há a impressão de que não há futuro. Agarrar-se ao passado é certeza de alguma segurança.
O Papa Francisco também fez referência ao excesso de paramentação na liturgia e isso causou muita resistência. A restrição que ele determinou às celebrações da missa em latim também produziram essas resistências em alguns setores eclesiásticos. Mas o principal fator de resistência foi o fato de ele propor uma Igreja pobre para os pobres. Esse é um tema que incomoda muito em função dos diferentes interesses que giram em torno da Igreja, nos diferentes grupos e instituições católicas que hoje apontam para outra direção.
IHU – Quais foram as reformas feitas pelo Papa Francisco?
Jorge Alexandre Alves – O Sínodo para as Famílias trouxe uma belíssima contribuição porque rediscute o que é núcleo familiar. Isso faz um bem para a Igreja num tempo em que havia um discurso muito forte – e ainda o é – da ideologia de gênero, que não tem fundamentação científica, surgida dentro de setores ultraconservadores do catolicismo norte-americano e que se espalhou pelo mundo católico. Quando se abre a possibilidade de, com discernimento espiritual e pastoral com o sacerdote local, readmitir e abrir possibilidade de oferecer a Eucaristia para pessoas de segundas núpcias que têm uma vida de Igreja, aprofunda-se o sentido da expressão de a Igreja ser um hospital de campanha e não um prêmio para os puros.
O Sínodo para a Juventude fala de um protagonismo juvenil maior e recupera expressões que, no caso brasileiro, são caras à Pastoral da Juventude, mas isso ficou meio na sombra de outras questões.
As questões ambientais e a Economia de Francisco e Clara foram importantes para pensar se, dentro da lógica de mercado, é possível superar as contradições ambientais que estão matando o nosso planeta e destruindo, de maneira definitiva, os recursos naturais não renováveis e colocando em risco, sobretudo, as pessoas mais pobres em escala global. Trazer isso para dentro da realidade da Igreja foi importante para despertar a consciência, com o surgimento das pastorais da ecologia, do meio ambiente, dos grupos de integridade da criação.
Uma questão que ficou em aberto foi a escolha dos bispos. Estou dizendo isso pela experiência piloto que Francisco realizou na diocese de Roma. O cardeal Reina, vigário da citada diocese, foi escolhido a partir de um processo de consulta diocesana interna. O Papa gostaria que isso pudesse acontecer primeiro de uma maneira piloto em outras realidades diocesanas, mas não foi possível porque, depois desse processo, veio a pandemia e, em seguida, as condições de saúde do pontífice já eram outras e isso ficou de lado.
O Documento Final do Sínodo para a Amazônia discutia e previa – o que não saiu no documento Querida Amazônia que Francisco escreveu – um novo rito litúrgico para a Amazônia e uma discussão sobre a questão da ordenação de homens casados nas comunidades indígenas. Essa é uma questão com a qual, em algum momento, Leão XIV vai ter que se deparar. Esse é um legado incompleto de Francisco.
Ficou incompleta também a reforma da Cúria. As novas constituições da Cúria Romana preveem uma troca do corpo de funcionários a cada cinco anos, onde vários retornariam para suas dioceses e viria um novo grupo. Ainda não teve a primeira volta e não sabemos o que Leão XIV vai fazer com isso. Tenho a esperança de que ele aprofunde e continue a reforma curial, da mesma maneira que já se colocou publicamente como continuador do espírito de sinodalidade que Francisco recuperou para a Igreja.
IHU – Que perfil de episcopado foi constituído a partir das nomeações de Francisco no Brasil e em outras partes do mundo?
Jorge Alexandre Alves – Teve de tudo um pouco. Bons bispos foram escolhidos para a Igreja do Brasil. Figuras que o Papa trouxe do exterior, como o atual arcebispo de Cachoeira do Itapemirim, no Espírito Santo, um brasileiro que exercia atividade missionária na África e foi bispo da diocese de Pemba, em Moçambique, numa região de muitos conflitos religiosos e presença de grupos fundamentalistas islâmicos. Por várias vezes, ele arriscou sua própria vida. O Papa, num duplo movimento de preservar a vida desse bispo e, ao mesmo tempo, de fortalecer um bispo mais à sua imagem e semelhança para a Igreja do Brasil, o traz de volta ao país e o coloca numa diocese do Espírito Santo.
Tivemos boas surpresas, como o atual bispo de Roraima, figura que exercia um trabalho com os mais pobres em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, um franciscano que passou boa parte da vida atuando na Baixada Fluminense e hoje está numa diocese marcada pela presença das comunidades indígenas. Dois bons bispos vieram da Congregação dos Padres Missionários do Sagrado Coração. Um deles, se não me engano, está na Bahia, e outro, no interior do Maranhão.
São nomes muito bons. No Rio de Janeiro, tivemos um bom bispo em Nova Friburgo. Ele foi transferido para o interior de São Paulo. Tivemos uma geração de bispos que, de alguma maneira, estavam dentro desse perfil de bispos com cheiro de ovelhas. Quando não teologicamente afinados com Francisco, pelo menos, fazendo um esforço de serem essas figuras mais próximas do povo.
As nomeações do episcopado não dependem necessariamente da vontade pessoal do Papa porque são mais de cinco mil dioceses no mundo. Ele delega isso para alguém. Ele delegou isso, por uma década, para o cardeal Ouellet e, depois, o cardeal Prevost assumiu esse ministério nos últimos dois anos.
No caso da Igreja do Brasil, houve um determinado perfil de bispos até 2018 e, a partir de 2019, foram nomeados bispos que não estavam tão alinhados com a Igreja de Francisco. Não estou discutindo o valor intelectual nem as qualidades morais, mas me pareceram ter outro perfil. Como são muitos nomes para uma Igreja muito grande, como é a brasileira, sempre se opera na lógica de que vem um bispo mais progressista, outro mais moderado, outro mais conservador. Diria que a Igreja brasileira hoje, como sempre foi, tem um perfil de episcopado muito moderado.
Diferentemente de outras épocas, tem um campo progressista que não tem mais o mesmo protagonismo público no episcopado brasileiro que teve em outros momentos, como foi nos anos 1970 e 1980, cujas figuras deixam saudades nas pessoas até hoje. Eu, que não vivi esse período, posso mencionar dez bispos daquela época que tiveram uma protagonismo notável e uma presença pública importante na Igreja do Brasil, testemunhando, de maneira simples, humilde e muito coerente, o Evangelho: dom Aloísio Lorscheider, dom Paulo Evaristo Arns, dom Luciano Mendes de Almeida, dom José Gomes, dom Adriano Hypólito, dom Mauro Morelli, para citar alguns. Mas poderia mencionar dom Antônio Fragoso, dom Fernando de Oliveira, dom Pedro Casaldáliga, dom Moacyr Grechi, dom Demétrio Valentini. Tivemos uma geração luminosa de bispos e isso eleva o sarrafo na expectativa em relação ao episcopado.
Havemos de nos lembrar também que durante o episcopado de João Paulo II foi feita uma revisão dos institutos de formação do clero no Brasil. Reforçou-se o modelo de seminário. Alguns institutos teológicos encerraram suas atividades nos anos 1980, após um conjunto de visitas realizadas a mando da Cúria Romana. Isso tudo incide na formação da juventude e das novas gerações de sacerdotes, que é o material humano de onde se tem os novos bispos. Nisso eu tenho uma esperança para o próximo pontificado, uma vez que Prevost foi responsável por um conjunto de nomeações nos últimos dois anos, ou seja, que os bispos sejam escolhidos dentro desse espírito de bispos com cheiro de ovelha, mais próximos do povo e das grandes causas que a Igreja defende, sobretudo no campo da doutrina social.
Também houve uma mudança nas nomeações quando houve uma troca de núncio. Tivemos um perfil um pouco mais moderado de nomeações episcopais para o Brasil. Em outros lugares do mundo, percebemos claramente a ação de Francisco. Nos EUA, em algumas arquidioceses importantes, foram nomeados bispos para estabelecer um contraponto à extrema-direita norte-americana e à oposição explicita que Francisco sofria em setores eclesiásticos. Destaca-se também a experiência do Peru, com a nomeação de Prevost para Chiclayo, mas sobretudo a troca na arquidiocese de Lima, em que Francisco substitui um bispo muito conservador e influente no episcopado peruano por alguém que pertencia à faculdade de teologia, a qual o arcebispo anterior perseguia.
IHU – Por que acredita que o novo pontificado será uma continuidade mais discreta em relação ao pontificado do Papa Francisco? Em que aspectos a continuidade já está se manifestando?
Jorge Alexandre Alves – A eleição de Leão XIV, no contexto do conclave, representou uma derrota do campo conservador, que gostaria de ver um papa que escolhesse outro nome e tivesse outro estilo. Será uma continuidade discreta porque tivemos um papa profeta, que foi um ponto fora da curva na história dos pontificados contemporâneos. Um papa reformador, que não apenas tentou reformar a instituição, mas reformou o próprio papado também. Isso deixa marcas. Seria muito difícil um novo pontífice fazer grandes rupturas com o estilo e a nova dimensão que o papado assumiu com Francisco.
Além disso, a Igreja é uma instituição enorme, um grande transatlântico, e não vemos transatlântico dando cavalo de pau, como fazem os jet skis. Nesse sentido, a continuidade é discreta. Ainda estamos muito no começo do pontificado e é difícil fazer apontamentos e prognósticos definitivos do que será. Precisamos esperar muitas coisas acontecerem e dar algum prazo para o novo Papa. O que temos hoje são discursos, pequenos simbolismos e uma enorme disputa de narrativa por esse pontificado. Isso talvez seja o elemento novidadeiro. Por isso tantas pessoas estão dando opiniões.
Leão XIV vai dar continuidade à sinodalidade e à reforma da Cúria, mas vai fazer isso na perspectiva do fortalecimento das instituições. Francisco, nesse sentido, foi um pontífice disruptivo. Não me parece que seja esse o perfil de Prevost, em função da experiência dele na Ordem de Santo Agostinho. Portanto, tem a questão do estilo. Francisco tinha um estilo bem-humorado, uma forma de ser mais expansiva e típica de um latino-americano. Prevost é uma figura mais tímida, embora muito da sua teologia tenha sido sedimentada na América Latina, no Peru. Quando ele foi eleito, muitas imagens circularam. Uma delas é uma foto dele no gabinete, em Chiclayo, com a fotografia de Óscar Romero ao fundo. Isso me parece um elemento de continuidade. Francisco sabia quem estava colocando no Dicastério para os Bispos.
Alguém que tem como referência São Romero indica uma continuidade, mas uma continuidade que será baseada nas estruturas institucionais e numa teologia mais antiga, de resgate da tradição teológica, sobretudo por ele ser um filho de Santo Agostinho. Isso tem a ver com o próprio momento da Igreja e é uma resposta também ao que se apontava nas preocupações das congregações gerais em relação à divisão interna da Igreja e à sua unidade. A eleição de Prevost também sinalizou isso. Ou seja, foi uma reposta do Colégio Cardinalício para o mundo, para a Praça de São Pedro, de que a Igreja teria que sair do Conclave unida.
A Praça São Pedro foi uma eleitora nesse conclave. A imagem de Francisco estava presente de forma potente na comoção e na presença das pessoas. Isso, de alguma maneira, deu um sinal ao Colégio Cardinalício e reverberou no conclave. Talvez aí tenha sido uma ação do Espírito Santo.
IHU – Que tipo de reações ao pontificado de Leão XIV tem observado no Brasil, tanto dentro quanto fora da Igreja? Quais são as narrativas em disputas?
Jorge Alexandre Alves – Tem as narrativas do campo conservador, que falam em contrarreforma. Os grupos tradicionalistas do Brasil têm procurado, em pequenos gestos do Papa e em frases descoladas do contexto mais amplo de seus discursos, colocar na boca do Papa coisas que ele não disse, para trazer a ideia de que o Papa vai caminhar numa direção oposta à de Francisco. Embora isso não seja dito publicamente, eles acham que ele vai recuperar o modelo eclesial que alcançou um beco sem saída no fim do pontificado de Bento XVI. Nesse sentido, tem uma grande produção de comentários e conteúdos de grupos querendo pautar o começo do pontificado nessa linha nas mídias sociais.
Tem, por outro lado, grupos ligados a setores progressistas e liberais que estão afirmando que esse pontificado é uma continuidade de Francisco, que ele vai dar conta de todas as iniciativas que o predecessor deixou incompletas e continuará nesse caminho, seja na Igreja, seja na sua relação com o mundo. Em outras palavras, há uma boa vontade com Leão XIV nesse sentido.
IHU – Quais são as suas expectativas em relação ao novo pontificado?
Jorge Alexandre Alves – Francisco aumentou muito a nossa expectativa porque aumentou o grau de exigência em relação ao pontífice. Esperamos mais de Leão XIV porque ele está sucedendo Francisco nesse tempo histórico. Nisso também está pautado o debate sobre se ele é mais progressista ou conservador, qual é a sua teologia, qual é a sua eclesiologia.
O que diríamos de Leão se ele tivesse sido eleito após a renúncia de Bento XVI? Acho que não teríamos muitas dúvidas sobre o que representaria Leão, com todos os indicadores que ele deu. Ainda que não tenha adotado alguns gestos simbólicos de Francisco, ele deu algumas sinalizações poderosas. Uma delas foi ter ido rezar no túmulo de Francisco logo no segundo dia. Para efeitos de comparação, Wojtyla, logo que assumiu o solis pontífice e se tornou João Paulo II, se dirigiu à tumba do monsenhor Josemaría Escrivá, fundador do Opus Dei. Prevost foi visitar o túmulo de Francisco. Isso dá uma medida de comparação interessante sobre em quem ele está se espelhando.
Isso não significa que eu não tenha algumas preocupações em função da conjuntura eclesiástica e de como o campo conservador e tradicional, que dispõe de muitos recursos econômicos e uma presença midiática forte, vai atuar para reverter as reformas iniciadas por Francisco.
Vou mencionar algumas falas importantes de Leão XIV em continuidade com Francisco. Para os cardeais, ele mencionou a sinodalidade, ainda que, teologicamente, alguns tenham ficado preocupados com o que ele disse no sermão ao Colégio Cardinalício. No sermão, Prevost recupera o capítulo dois de Lumen gentium, recupera a sinodalidade e indica um caminho. No aniversário da Associação Pro Centesimus Annus, ele recupera a Rerum Novarum e fala dos direitos dos trabalhadores no mundo digital. Desconfio que o primeiro grande documento do pontificado seja algo relacionado ao trabalho no mundo digital.
Tem duas coisas que me preocupam, mas não são uma crítica ou uma oposição a Leão. Ele tem insistido muito na unidade e no diálogo da Igreja. Falou sobre isso ao receber líderes de outras religiões. Tem mencionado isso em todas as falas. Meu ponto é: como se constrói a unidade com grupos que não estão dispostos ao diálogo? Esse é um grande desafio. Se pensamos em unidade, que não é uniformidade, pensamos em grupos diferentes e divergentes entre si, mas que, ao conversarem ou iniciarem um processo de escuta, estão dispostos a chegarem a denominadores comuns, a consensos mínimos para melhor testemunhar o Evangelho e o Reino de Deus e melhor ser presença como Igreja no mundo.
Agora, se determinados grupos dentro da Igreja estão fechados em si mesmos e consideram todos os demais hereges e infiéis, como dialogar? Tais grupos, de diferentes formas, foram responsáveis pela crise que tirou visibilidade da Igreja, que fez dela uma presença secundarizada no mundo e fez com que a Igreja perdesse relevância em pontificados anteriores. Esse diálogo vai se dar em quais bases?
Em linhas gerais, a mesma agenda que Francisco imprimia na relação da Igreja com o mundo, Prevost vai continuar, com o tema da paz. Ele já colocou a Igreja à disposição para as negociações de paz tanto na Ucrânia quanto na Faixa de Gaza. A Igreja vai ser uma mediadora importante entre russos e ucranianos, para encerrarmos esse conflito que só tem vítimas e não tem um lado certo, para que a paz volte a imperar num mundo marcado por guerras. O que menos precisamos nesse tempo de catástrofe climática é de guerras.
IHU – Qual é a teologia que está por trás desse pontificado? Pelos discursos, homilias, pronunciamentos públicos e a primeira catequese na audiência geral, é possível identificar qual a teologia que guiará o pontificado?
Jorge Alexandre Alves – Uma teologia de matriz agostiniana. É diferente da perspectiva de serviço no mundo dos jesuítas, da ação missionária no mundo. É uma teologia baseada em uma cristologia focada na figura do Jesus da fé. Alguns teólogos têm apontado que só é possível o Jesus da fé porque tem o Jesus histórico, mas esse é um debate teológico.
Entendo que Prevost faz isso para reportar à autoridade e se colocar como alguém que carrega a tradição teológica da Igreja. Se isso vai ser bom ou ruim, vamos ver mais à frente. Ao mesmo tempo, ele tem experiência da teologia latino-americana. Além disso, essa é uma característica dos agostinianos: quando estão com os pés na realidade são muito engajados, envolvidos e preocupados.
IHU – Alguns vaticanistas dizem que o programa do novo pontificado já está claro. Concorda? Quais diria que são as linhas gerais apresentadas pelo Papa Leão XIV?
Jorge Alexandre Alves – As linhas gerais já estão dadas, sim. A questão da paz, a busca pela unidade, a questão do mundo do trabalho na era digital. O que mais me preocupa para frente é o que esse pontificado vai fazer em relação à vida interna da Igreja. Mas sobre isso, vamos ter que esperar para ver quem será o prefeito do Dicastério para os Bispos, como ele vai encaminhar a questão da liturgia, como se dará a nomeação dos bispos, se ele vai recuperar a experiência feita na diocese de Roma com Francisco, como a questão da sinodalidade vai ser encaminhada, se ele vai criar mecanismos para que a sinodalidade chegue nas paróquias e comunidades diocesanas.
Isso tudo está em aberto. Não temos como prever o que vai acontecer. Pensamos nas linhas mais gerais dos grandes temas que ele abordará, mas não sei se temos uma direção muito clara de como ele vai conduzir internamente a Igreja. Isso ainda está para ser dado. Os agostinianos têm dito que ele não é o tipo de pessoa que fugirá das suas responsabilidades, da sua missão e que ele dará conta do recado.
IHU – Nos primeiros pronunciamentos do Papa sobressaem-se algumas palavras: inquietação, unidade e amor. Essas palavras têm qual significado vindas de um agostiniano? Teologicamente, o Papa está querendo expressar um sentido?
Jorge Alexandre Alves – Sim, está. Essa é uma boa pergunta. Imagino que ele quer pensar nessas categorias como categorias de perenidade, como algo que permanece além do tempo, das estruturas, das instituições, que é, na perspectiva de um agostiniano, o que deve ficar da mensagem cristã, da mensagem de Jesus Cristo, do Jesus da fé, da paz, da doação, do serviço. O fato de ele ser um agostiniano coloca essas questões como as grandes verdades da existência humana, as quais precisam ser buscadas por todos aqueles que se dizem seguidores de Jesus Cristo. Esse me parece que é o sinal. A questão é como isso se traduz na realidade sócio-histórica de cada época, neste quadrante da história.
Talvez que o amor que seja dito hoje não é o amor radical que fez com que aquele homem tão humano, que só podia ser divino, saísse da Galileia, desafiasse os poderes de seu tempo e terminasse sua vida numa cruz. Tem muito a ver com isso, ou seja, há a necessidade de redimensionarmos o amor. O amor se tornou uma grande mercadoria na sociedade, tanto na lógica da sociedade de consumo, mas também internamente na Igreja, como se o amor fosse aquele sentimento etéreo, aquela produção de catarse que me leva a amar apenas um ser espiritual, mas que não me faz enxergar a realidade do meu próximo. Não posso amar a Deus que não vejo se não amo o próximo a quem eu vejo. Essa é a mensagem de fundo. Leão XIV, pelo vigor físico e tempo de pontificado que esperamos dele, vai ter muito tempo para explicitar o sentido radical do amor.
IHU – Em relação à unidade, a que atribui a insistência? O que o Papa está comunicando ou tentando dizer para a Igreja, mas também ao mundo externo?
Jorge Alexandre Alves – Ele tem a intenção de curar feridas, de encerrar conflitos, como aqueles que fizeram com Francisco, que foi muito sujo e muito feio. Um pontífice que é difamado, e muitas vezes parecia ser mais detestável por parcelas de católicos do que por não católicos, é uma coisa muito curiosa e sui generis na história da Igreja.
Leão XIV se utiliza desse simbolismo da autoridade do sucessor de Pedro, que ele o é, para poder se afirmar frente a esses grupos, mas para ter legitimidade de autoridade para fazer o que precisa ser feito e não pode ser feito por Francisco. Essa é a minha suspeita e esperança. Mas, por outro lado, ele acredita que é possível que setores antagônicos e divergentes possam se sentar à mesa e ter pontos comuns e possam dialogar. Não sei se Prevost está sendo ingênuo demais nisso. O tempo é quem vai dizer. Mas ele acredita que isso é possível, que o grande testemunho que a Igreja pode dar a um mundo tão dividido e polarizado do ponto de vista ideológico é testemunhar uma Igreja capaz de respeitar a sua diversidade interna. É nesse sentido que ele vai insistir.
Está na pauta também a tentativa de não uniformizar a Igreja, mas reconhecê-la como uma unidade na diversidade, e estabelecer canais e vínculos de diálogo. Ou seja, tentar estabelecer algum grau de paz interna. Por isso, também, ele saúda o povo na Praça de São Pedro com a paz. Devemos aguardar para ver se os grupos extremistas que fazem mais barulho nas redes estão dispostos a essa paz. Não me parece até o presente momento. Vamos esperar os próximos meses. Só vamos poder ter uma avaliação mais precisa daqui um ano, pelo menos.
IHU – Na primeira homilia, o Papa Leão XIV advertiu os cristãos que vivem um ateísmo prático. O tema gerou um debate entre teólogos italianos. Como interpreta o acento posto pelo pontífice neste assunto?
Jorge Alexandre Alves – Isso é reflexo da sua teologia agostiniana, que entende Deus como uma categoria absoluta. É o fundamento da fé. Ele chama atenção para a perda dos elementos de transcendência porque vivemos em uma sociedade cada vez mais marcada pelo consumo, pela lógica do grande capital, onde até a fé se torna mercadoria. Ele chama atenção para isso. Há um ateísmo prático porque a transcendência leva a pensar nas grandes narrativas do campo da moral, da política, no sentido da vida, e o ateísmo prático desconstrói o sentido da vida.
Ele não quis fazer uma crítica a quem é ateu, no sentido de que os ateus estão condenados. O Papa quis chamar atenção para um ateísmo que desconsidera toda e qualquer possibilidade de uma experiência transcendental à vida. Numa sociedade marcada pela cultura do descarte, como dizia o Papa Francisco, pela lógica da acumulação, não há espaço para isso.
IHU – O papa nomeou a primeira mulher para a Cúria, Irmã Tiziana Merletti. O que significa?
Jorge Alexandre Alves – Continuidade direta com o que Francisco estava começando, ou seja, colocou uma secretária num dicastério que já tinha uma prefeita. Ao fazer isso, retira dali um constrangimento porque o secretário anterior era um cardeal e, em função de uma certa misoginia na Cúria Romana, muitas vezes, funcionários de outros dicastérios procuravam o cardeal ao invés de procurar a prefeita, quando deveriam falar com ela. Isso encerra a discussão sobre quem pode participar das reuniões de conselhos e das gestões dos dicastérios da Cúria Romana. Obrigatoriamente, vai ter uma mulher ou duas mulheres na mesa, em pé de igualdade com outros homens. É um sinal muito positivo.