12 Novembro 2020
De acordo com um especialista na luta contra o abuso sexual do clero na Igreja Católica, o relatório do Vaticano sobre o ex-cardeal e já laicizado Theodore McCarrick é “um bom exemplo do quão sério essas questões amplas de encobrimento, negação, não cumprimento e insinceridade devem ser enfrentadas” e acredita que outros relatórios similares podem vir.
“É uma investigação sobre o procedimento da Igreja que, esperançosamente, terá consequências, por exemplo, no que diz respeito ao processo de nomeação de bispos”, disse o padre alemão Hans Zollner, um membro da Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores e presidente do Centro para Proteção de Crianças da Pontifícia Universidade Gregoriana. “Eu penso que é um passo importante, e estou certo que esse não será o último deste tipo”.
A entrevista é de Inés San Martín, publicada por Crux, 11-11-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
No relatório há diversas passagens que revelam cartas anônimas alegando abuso sexual da parte de McCarrick enviadas em 1992 e 1993 para o representante papal nos Estados Unidos, a Conferência dos Bispos dos EUA e vários cardeais. McCarrick encaminhou por conta própria alguma dessas cartas para “nossos amigos no FBI” para encontrarem a fonte das cartas, mas não está claro se seu conteúdo foi investigado.
Há também a revelação e um memorando de uma página de um tenente do Middlesex County Prosecutor sobre as acusações contra McCarrick.
Perguntado sobre a necessidade de autoridades civis intervirem quando descobrirem evidências de abuso sexual clerical, Zollner disse que “é o que eu espero que as autoridades civis e oficiais façam”, e que é “o que eles devem fazer, independente de quem a pessoa é: um político, uma estrela famosa ou um líder da Igreja. Isso está claro”.
“Mas se vê que em algumas partes do mundo há um conluio entre autoridades do Estado e pessoas que cometem crimes, e eu não estou falando somente sobre abusos”, falou pelo telefone na terça-feira, duas horas depois de o relatório ter sido publicado pela Santa Sé. “Mas isso tem que ser lidado com essas questões de corrupção e conluio”.
Primeiramente, qual a sua avaliação da reação ao relatório?
Eu penso que é um passo muito importante, é muito extenso, muito detalhado e cada peça muito bem investigada. Eu diria que realmente se levou a sério o compromisso que o Papa e através dele a Igreja tem tomado depois da convocação da cúpula sobre proteção de menores, ocorrido em fevereiro de 2019, em relação à transparência e accountability. É um bom exemplo do quão sério essas questões amplas de encobrimento, negação, não cumprimento e insinceridade devem ser enfrentadas. É uma investigação sobre o procedimento da Igreja que, esperançosamente, terá consequências, por exemplo, no que diz respeito ao processo de nomeação de bispos.
Eu penso que é um importante passo, e estou certo que esse não será o último deste tipo.
Quando você diz que não será o último passo deste tipo, o que você tem em mente especificamente? Por exemplo, eu falei com vítimas no Chile que queriam ver o relatório Scicluna. Você pensa que há esperança de que aquela informação virá à luz, em forma e modelo semelhantes?
Essa foi uma tarefa claramente definida para este relatório, e o Papa deixou bem claro que isso deveria ser feito de forma completa e publicado. Portanto, a tarefa foi definida de forma muito clara desde o início. Penso que isso também deve ser verdade para outros relatórios, então não estou pensando realmente em algo do passado, porque, pelo que eu sei, nenhuma tarefa foi dada a ninguém em relação a ninguém em particular.
Mas tenho certeza de que no futuro teremos outros relatórios sobre pessoas ou países.
Você tem algum país ou pessoa em mente quando diz que um relatório pode ser encomendado em breve?
Não, eu não penso em um país em particular, mas quero dizer, tenho quase certeza de que teremos mais notícias nas próximas semanas, meses e anos. E agora com esse passo sem precedentes dado pela Santa Sé na decisão do Papa, se está com uma porta aberta, por assim dizer, e tenho certeza de que, para casos semelhantes, um procedimento semelhante será escolhido.
A essa altura, McCarrick está com 90 anos de idade e seus crimes expiraram dentro do prazo de prescrição. Quão importante seria se, no futuro, essas investigações fossem ordenadas quando os crimes ainda podem ser examinados nos tribunais civis, e a Santa Sé trabalhasse junto com as autoridades civis para garantir que os padres não só fossem destituídos do sacerdócio, mas também fossem para prisão quando for merecido?
Sei que a Santa Sé o faz se e quando chega o pedido adequado. Este é um procedimento normal, se os meios de comunicação e de apresentação do pedido formal forem feitos de forma adequada, sei que a Santa Sé coopera. O problema é que muitas vezes as denúncias surgem cerca de 25, 35, 45 anos após o abuso ter ocorrido e, em muitos países, as autoridades estaduais, se há um estatuto de limitações, estão lá ou não, não querem ou não podem mais acompanhar porque há poucas provas para estabelecer a veracidade deste fato, razão pela qual as autoridades estaduais não agem.
A Santa Sé coopera. Mas ela só pode cooperar quando uma ação legal ocorre por motivos civis e as autoridades pedem ajuda pelos canais apropriados.
Você mencionou que considerou este relatório um passo importante. Mas quando coisas dessa magnitude surgem, geralmente há um “mas”, como “é um bom primeiro passo, mas mais ‘pode ser feito’, ‘mais poderia ter sido dito’, ‘a accountability ainda poderia ocorrer’”. Você tem um “mas” para este relatório?
Dentro das limitações de direitos de personalidade e confidencialidade que você esperaria em qualquer procedimento legal em um Estado ou na Igreja, acho que este relatório produziu uma quantidade enorme de evidências. Isso mostra claramente que eles olharam em detalhes eu não sei quantas páginas de documentos.
Já me perguntaram muitas vezes “você não acha que a Santa Sé vai simplesmente descartá-lo” ou que “[a Igreja] usaria a pandemia como desculpa”, e eu sempre disse que sabia que eles estavam trabalhando nisso e que estava confiante que seria publicado. E agora nós temos, temos 460 páginas, e se pode ver onde pode apontar a responsabilidade pessoal, se pode ver onde o sistema não funciona e onde a combinação de ambos traz consigo um desastre como a promoção dessa pessoa para se tornar um cardeal e continuar os abusos.
O “mas” são as consequências que realmente extraímos deste relatório, e quão rápido o processo para a nomeação dos bispos será influenciado pela leitura de tal relatório. Repito o que disse: creio que deve haver um processo mais aprofundado para ver quem são os candidatos capazes a se tornarem bispos, e essas perguntas não devem ser feitas apenas no contexto clerical, ou seja, pessoas da hierarquia e de “dentro”, por assim dizer. Você precisa daqueles que podem dar seus conselhos de uma perspectiva diferente porque isso é necessário e, no final, é útil para a eficácia do ministério.
Por causa do dano que foi feito à Igreja nos Estados Unidos e em todos os outros lugares ao nomear uma pessoa como arcebispo de Washington de quem pelo menos três bispos sabiam que não havia apenas rumores, mas tinham algum tipo de evidência de que isso era verdade?
Lendo o relatório emerge que autoridades civis devem ter conhecimento, ou poderiam ter conhecimento, sobre os crimes de McCarrick. Quão importante é a intervenção de autoridades civis quando eles verem esse tipo de padrão? Porque isso não é “matéria de Igreja”, é um crime ou um comportamento criminoso.
Espera-se que as autoridades civis e oficiais intervenham. É isso que eles devem fazer, independente da pessoa: um político, uma estrela famosa ou um líder de Igreja. Isso é claro.
Nós todos fazemos parte da responsabilidade com o outro...
Sim, mas se vê que em alguns lugares do mundo há um conluio entre autoridades estatais e pessoal que cometeram crimes, e eu não estou falando apenas de abusos. Mas isto precisa ser enfrentando sob essas questões de corrupção e conluio. Infelizmente, ocorre em muitos lugares do mundo e em várias áreas da sociedade.
Alguma reflexão final para leitores ou sobreviventes que, ao lerem este relatório, possam revisitar suas experiências e frustrações?
Sim. Já recebi feedback de sobreviventes que disseram que ficaram muito zangados quando o leram. Só posso dizer que devemos ser gratos àqueles que tiveram a coragem e determinação para falar, mesmo depois de anos e mesmo depois de não terem sido acreditados em primeira instância. Eu diria que por mais difícil que seja de digerir e por mais horrível que seja ler isso, é também um sinal de que os sobreviventes criaram um processo que, em última análise, levou à publicação deste relatório, e podemos esperar que a partir daí, outras etapas seguirão.
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Hans Zollner espera que o relatório McCarrick “tenha consequências” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU