“Nós nos tornamos um vírus para o planeta”. Entrevista com Philippe Descola

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23 Mai 2020

Em entrevista ao Le Monde, o antropólogo Philippe Descola explica que essa pandemia deve levar a uma “política da Terra” entendida como uma casa comum cujo uso não seria mais reservado exclusivamente aos humanos.

A entrevista é de Nicolas Truong, publicada por Le Monde, 21-05-2020. A tradução é de André Langer.

Antropólogo, especialista nos Jivaro achuar, na Amazônia equatoriana (As lanças do crepúsculo. São Paulo: Cosac Naify, 2006 [1994]), Philippe Descola é professor do Collège de France e titular da cadeira de Antropologia da Natureza.

Discípulo de Claude Lévi-Strauss, medalha de ouro do CNRS (em 2012) pelo conjunto de sua obra, Philippe Descola desenvolve uma antropologia comparativa das relações entre humanos e não humanos que revolucionou tanto as ciências humanas como a reflexão sobre os desafios ecológicos de nosso tempo, como evidenciam em particular Par-delà nature et culture (Gallimard, 2005) e La composition des mondes (entrevistas com Pierre Charbonnier, Flammarion, 2014).

Eis a entrevista.

De que modo esta pandemia global é um “fato social total”, como disse Marcel Mauss, um dos fundadores da Antropologia?

Um fato social total é uma instituição ou eventos que põem uma sociedade em movimento, que fazem emergir suas raízes e seus valores e que revelam sua natureza profunda. Nesse sentido, a pandemia é um reagente que condensa, não as singularidades de uma sociedade em particular, uma vez que é global, mas algumas características do sistema que governa o mundo atual, o capitalismo pós-industrial.

Quais são essas características? Primeiro, a degradação e o encolhimento sem precedentes dos ambientes pouco antropizados, devido à sua exploração pela agricultura extensiva, pela agricultura industrial, pela colonização interna e pela extração de minerais e combustíveis fósseis. Esta situação fez com que espécies selvagens reservatórios de patógenos entrassem em contato muito mais intenso com humanos que vivem em habitats muito mais densos. Ora, as grandes pandemias são zoonoses, doenças que se propagam de espécie para espécie e cuja disseminação é, portanto, amplamente dependente dos transtornos ecológicos.

Segunda característica: a flagrante persistência das desigualdades reveladas pela situação de crise, dentro de cada país e entre os países, o que torna suas consequências muito diferentes, dependendo da situação social e econômica em que nos encontramos. A pandemia torna possível verificar essa observação feita pelo antropólogo David Graeber de que quanto mais um emprego é útil à sociedade, menor é a remuneração e a sua valorização. De repente, descobrimos a importância crucial das pessoas de quem dependemos para cuidar de nós, alimentar-nos, livrar-nos do lixo, e que são os primeiros a se exporem à doença.

Terceira característica: a rapidez da disseminação da pandemia. Não há nada de novo no fato de que as doenças infecciosas circulam por todo o mundo; o que chama a atenção sobre a forma presente da globalização é a velocidade com que isso acontece. A globalização parece totalmente regida pela mão invisível do mercado, ou seja, pela regra do lucro mais rápido possível. O que salta aos olhos, especialmente com a falta de máscaras, testes ou moléculas terapêuticas, é uma divisão internacional da produção baseada em duas omissões: a do custo ecológico do transporte de mercadorias e a da necessidade, para que a sociedade funcione, de uma divisão local do trabalho na qual todas as competências estão representadas.

Esta crise é decorrência da devastação do planeta ou devemos, pelo contrário, considerar que as epidemias fazem parte da história desde as eras anteriores ao Antropoceno e que o homem deve, assim, demonstrar humildade?

Como americanista, estou dolorosamente consciente do preço que as populações ameríndias pagaram pelo seu encontro com as doenças infecciosas trazidas pelos colonizadores europeus: entre os séculos XVI e XVIII, em algumas regiões, 90% da população pereceu. As epidemias nos acompanham desde o início da hominização. Simplificando, o desenvolvimento do Estado-Providência a partir da Europa desde o final do século XIX teve a tendência de fazer com que seus beneficiários se esquecessem de que as vicissitudes e a incerteza continuam sendo componentes fundamentais dos nossos destinos coletivos.

Por que você acha que o capitalismo moderno tornou-se uma espécie de “vírus mundial”? É tudo culpa do capitalismo, quando há evidências de que essas pandemias parecem ter relação com os mercados de animais vivos e com a medicina tradicional chinesa?

Um vírus é um parasita que se replica à custa do seu hospedeiro, às vezes levando-o à morte. Foi isso que o capitalismo fez com a Terra desde o início da revolução industrial, durante um longo tempo sem o saber. Agora nós o sabemos, mas parece que temos medo do remédio, que também conhecemos, ou seja, uma mudança radical de nossos estilos de vida.

Sem dúvida, os mercados tradicionais chineses contribuem para o desaparecimento do pangolim ou do rinoceronte. Mas as redes de contrabando de espécies protegidas que as alimentam funcionam de acordo com uma lógica perfeitamente capitalista. Para não falar do capitalismo selvagem das empresas madeireiras chinesas ou malaias que operam na Indonésia, de mãos dadas com a produção de óleo de palma e as indústrias agroalimentares.

Quem não opera de acordo com esse modelo são as populações autóctones de Bornéu (e de muitas outras regiões do mundo), que defendem seus territórios contra o desmatamento. O capitalismo nasceu na Europa, mas não é definível etnicamente. E continua a se propagar como uma epidemia, com a diferença de que não mata diretamente aqueles que o praticam, mas as condições de vida a longo prazo de todos os habitantes da Terra. Nós nos tornamos um vírus para o planeta.

Essa crise não é uma oportunidade para conceber de maneira diferente as relações entre a cultura e a natureza, entre os humanos e não humanos? Ou, pelo contrário, não seríamos tentados a aumentar a distância entre “eles” e “nós” por causa das zoonoses?

Na virada do século XVII, começou a tomar forma na Europa uma visão das coisas que chamei de “naturalista”, baseada na ideia de que os humanos vivem em um mundo separado daquele dos não humanos. Sob o nome de natureza, esse mundo separado poderia se tornar objeto de investigação científica, recurso ilimitado, reservatório de símbolos. Essa revolução mental é uma das fontes da exploração desenfreada da natureza pelo capitalismo industrial, que caminha lado a lado com o desenvolvimento sem precedentes do conhecimento científico.

Mas ela nos fez esquecer que a cadeia da vida é composta de elos interdependentes, alguns dos quais não são vivos, e que não podemos nos abstrair do mundo como bem entendermos. O “nós”, portanto, dificilmente faz sentido se consideramos que a microbiota de cada um de nós é composta de milhares de bilhões de “eles”, ou que o CO2 que hoje emito ainda afetará o clima em mil anos. Os vírus, os microorganismos, as espécies animais e vegetais que modificamos ao longo dos milênios são nossos comensais no banquete às vezes trágico da vida. É absurdo pensar que poderíamos tirar uma folga para viver em uma bolha.

Os povos autóctones da Amazônia estão se fechando, se dispersando e se retirando para o interior da floresta para enfrentar a epidemia. Também temos que nos esconder atrás de nossas fronteiras e de nossas nações? É o fim, não apenas da globalização, mas também de um certo cosmopolitismo?

Se falamos de uma cosmopolítica no sentido do sociólogo Ulrich Beck, ou seja, a consciência adquirida por grande parte da humanidade de que ela compartilha um destino comum porque está exposta aos mesmos riscos, então podemos ver que é ilusório fechar as fronteiras. Podemos retardar a propagação da Covid-19, mas não impediremos que outra zoonose ecloda em outro lugar.

Acima de tudo, não vamos parar a nuvem de Chernobyl ou a subida do nível do mar. E se alguns ameríndios da Amazônia têm a possibilidade de impedir que humanos entrem em seus territórios, por serem vetores de doenças ou exploradores de ouro, eles são, por outro lado, muito mais acolhedores para os não humanos, com quem estão mais familiarizados. E é nesse sentido que a palavra “cosmopolita” pode assumir todo o seu significado. Não como uma extensão do projeto kantiano de formular as regras universais por meio das quais os seres humanos, onde quer que estejam, poderiam levar vidas civilizadas e pacíficas. Mas no sentido literal, como uma política do cosmos.

Uma política da Terra entendida como uma casa comum, cujo uso não é mais restrito apenas aos humanos. Isso implica uma revolução no pensamento político da mesma magnitude que aquela realizada pela filosofia do Iluminismo e depois pelos pensadores do socialismo. Vemos sinais precursores disso.

Em vários países, ambientes de vida (montanhas, bacias hidrográficas, regiões) receberam personalidade jurídica, capazes de afirmar seus próprios interesses por meio de representantes cujo bem-estar depende do seu mandante. Também em vários países, inclusive na França, pequenos coletivos se separaram do movimento contínuo de apropriação da natureza e dos bens comuns, que caracteriza o desenvolvimento da Europa, depois do mundo, desde o final do século XVI. Eles enfatizam a solidariedade entre espécies, a identificação com o meio ambiente, a preocupação com os outros e o equilíbrio nos ritmos da vida, em vez da competição, da apropriação privada e da exploração máxima das promessas da Terra. É um cosmopolitismo real, de pleno exercício.

Estamos assistindo a uma virada antropológica no pensamento francês, com o nascimento de uma geração especialmente formada por Bruno Latour e você que já não separa de maneira radical humanos e não humanos?

Podemos chamar isso de ponto de virada antropológico, se quisermos, na condição de que, paradoxalmente, seja uma antropologia que se tornou menos antropocêntrica, porque deixou de reduzir os não humanos a uma função doméstica e suas propriedades às aspirações e aos códigos que os humanos projetam sobre eles. Uma das maneiras de fazer isso era introduzir os não humanos como atores de pleno direito no cenário das análises sociológicas, libertando-os de seu papel usual de marionetes manipuladas por um ventríloquo inteligente.

É um exercício que remonta a séculos de excepcionalismo humanista em que nossos modos de pensar tornaram incongruente que as máquinas, as montanhas ou os micróbios possam se tornar autorreferenciais. Isso exigia tratar o não humano como um “fato social total” precisamente, isto é, transformá-lo em uma espécie de planeta em torno do qual giram múltiplos satélites. Eu chamei isso de antropologia da natureza.

Falamos muito sobre o “mundo pós”, correndo o risco de não pensar o presente. O que seria possível e importante mudar o mais rápido possível?

Sempre podemos sonhar. Então, sem nenhuma ordem: estabelecimento de uma renda básica; desenvolvimento de convenções cidadãs tiradas por sorteio; imposto ecológico universal proporcional à pegada de carbono; taxação dos custos ecológicos de produção e transporte de bens e serviços; desenvolvimento da atribuição de personalidade jurídica a ambientes vivos, e assim por diante.

 

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