A soberania digital no balcão das big techs? Artigo de Rafael Grohmann e Alexandre Costa Barbosa

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13 Dezembro 2025

História de um escárnio. Em resposta às sociedades que reivindicam autonomia tecnológica, big techs oferecem “nuvens soberanas” – 100% sob seu controle… Perigo: também o Brasil, e seu Redata, estão a ponto de comprar gato por lebre.

O artigo é de Rafael Grohmann e Alexandre Costa Barbosa, publicado por Outras Palavras, 11-12-2025.

Rafael Grohmann é professor assistente de Estudos de Mídia (na Plataforma de Estudos Críticos) da Universidade de Toronto. É pesquisador associado na Universidade de Oxford, fundador da revista "Platforms & Society" e criador do DigiLabour.

Alexandre Costa Barbosa é pesquisador em políticas digitais pelo Instituto Weizenbaum e o projeto CyberBRICS, e membro do Núcleo de Tecncologia do MTST.

Eis o artigo.

A soberania digital tornou-se um dos conceitos mais disputados nos debates sobre políticas da internet e governança tecnológica (Herlo et al., 2021). Antes associado principalmente ao controle estatal sobre infraestruturas territoriais, o termo agora circula em white papers corporativos, institutos transnacionais, think tanks, arcabouços regulatórios e apelos de movimentos de base por soberania. Nessa proliferação discursiva, os significados de soberania tornaram-se profundamente instáveis, e surgiram lutas em torno de seus sentidos (Hall, 1980).

Nos últimos anos, as grandes empresas de tecnologia, particularmente Microsoft, Amazon e Alphabet/Google, tentaram reposicionar-se como guardiãs da soberania digital. Em resposta às crescentes pressões regulatórias, especialmente na Europa, essas empresas lançaram programas que prometem a governos e organizações maior “controle” sobre seus dados, infraestruturas e operações na nuvem. Essas iniciativas, que chamamos de “soberania-como-serviço”, representam uma mudança estratégica: a soberania deixa de ser uma questão de autodeterminação coletiva para se tornar um produto modular entregue por meio de conformidade na nuvem, gerenciamento de infraestrutura e arcabouços de governança liderados pelas corporações. Em outras palavras, a soberania torna-se um significante vazio, que as Big Techs preenchem com serviços de infraestrutura, servindo como uma forma de greenwashing de responsabilidade social.

Este ensaio argumenta que o discurso da “soberania das Big Techs”, ou seja, a cooptação e o controle ativo dos significados de soberania por essas empresas, constitui uma operação ideológica que reconfigura a soberania política em uma lógica comercial e mercantilizada. Apoiando-se na análise crítica do discurso dos programas de soberania digital lançados pela Microsoft, Amazon e Google entre 2022 e 2023, examinamos como essas empresas enquadram a soberania como uma questão técnica e de infraestrutura (Lehdonvirta, 2022; Plantin et al., 2018; Poell et al., 2021), reformulando e deslegitimando suas dimensões políticas, epistêmicas e anticoloniais. Longe de meramente se adaptarem aos arcabouços regulatórios, essas empresas estão remodelando ativamente o significado de soberania para atender aos seus interesses infraestruturais e geopolíticos. Essa reconfiguração não é neutra.

Como estudiosos da soberania digital demonstraram (Couture e Toupin, 2019; Pohle e Thiel, 2020; Rikap et al., 2024), o termo carrega significados conflitantes para diferentes atores: Estados, indivíduos, movimentos sociais e corporações. Quando a Microsoft oferece uma nuvem projetada para a “soberania governamental”, ou quando o Google apresenta a soberania digital como “uma jornada” que leva aos seus próprios serviços, essas não são apenas respostas corporativas a demandas externas, são apropriações estratégicas de um conceito que historicamente pertenceu às comunidades políticas, não a empresas privadas.

Além disso, o enquadramento da soberania-como-serviço é parte de uma tendência mais ampla que identificamos como anti-soberania epistêmica, uma tentativa sustentada de manter baseado nos EUA o controle sobre o conhecimento e a infraestrutura tecnológica globais, enquanto se aparenta localização e descentralização. Esse conceito, fundamentado nas premissas da soberania epistêmica (Oliveira e Pinto, 2024), pode ser entendido como uma manifestação do imperialismo tecnológico e midiático (Albuquerque, 2024; Mirrlees, 2024), por meio da construção de monopólios intelectuais (Rikap, 2024) e da cooptação epistêmica da forma como a soberania digital deve circular por diferentes espaços. Ao fazer isso, as Big Techs reciclam a linhagem ideológica da “Ideologia Californiana” (Barbrook e Cameron, 1995; Marwick, 2017), na qual promessas libertárias de empoderamento obscurecem a consolidação do poder das plataformas, renovando os discursos tecnológicos no contexto do “distopianismo do Vale do Silício” (Karppi e Nieborg, 2021). A soberania digital, portanto, está no centro das lutas discursivas em curso pelo poder tecnológico.

Esse poder discursivo das empresas de tecnologia constitui uma faceta importante do poder das plataformas em si em relação ao Estado (Lehdonvirta, 2022; van Dijck et al., 2019), dado que os governos são os clientes potenciais desses serviços. Ao venderem “nuvens soberanas”, os Estados podem manter um discurso de “soberania digital” enquanto, na prática, fracassam em alcançá-la. À medida que as corporações capturam a agenda, enfraquece-se a pressão por arcabouços regulatórios e políticas que genuinamente abordem a soberania digital, tanto das perspectivas estatal quanto comunitária, reforçando assim a dependência das plataformas (Grohmann, 2025), particularmente em relação às infraestruturas. Ao criticar essa cooptação discursiva, este artigo convoca acadêmicos, formuladores de políticas e comunidades a se engajarem em um diálogo sobre como confrontar essa situação.

As muitas faces da soberania digital

A soberania digital não é um conceito fixo ou universalmente aceito. Funciona, ao invés disso, como um campo de significados disputado, um espaço onde múltiplos atores com agendas conflitantes buscam definir os termos da governança tecnológica, seja de dados, plataformas, inteligência artificial ou outras tecnologias.

Em 2019, Couture e Toupin publicaram um dos artigos fundacionais sobre o tema: “O que a noção de ‘soberania’ significa quando se refere ao digital?” (Couture e Toupin, 2019). Nele, eles revelam a multiplicidade e a complexidade do termo, mostrando que a soberania no âmbito digital não pode ser reduzida a uma única dimensão ou ator, podendo inclusive ser reivindicada por movimentos sociais, comunidades e trabalhadores (Couture et al., 2024).

No entanto, as abordagens dominantes sobre soberania digital geralmente se enquadram em três categorias principais (Pohle e Thiel, 2020). A primeira diz respeito ao controle estatal sobre infraestruturas digitais e à capacidade de formular e implementar políticas digitais, frequentemente com ênfase na cibersegurança. A segunda refere-se à economia digital em sentido amplo, abrangendo o papel das empresas nacionais de tecnologia e o do Estado no desenvolvimento de políticas industriais e de inovação eficazes. A terceira foca na dimensão individual ou pessoal da soberania digital, particularmente no direito à autodeterminação digital, na agência do usuário e na capacidade de tomar decisões informadas sobre dados pessoais e ambientes algorítmicos.

Desde a publicação desses arcabouços, o conceito de soberania digital ganhou relevância crescente nos debates sobre políticas da internet e tem sido mobilizado de formas diversas e frequentemente conflitantes por Estados, corporações, movimentos sociais, think tanks, acadêmicos, comunidades e formuladores de políticas em todo o mundo.

Uma perspectiva alternativa aborda a soberania digital pela lente dos movimentos sociais. Como observam Couture e Toupin (2019, p. 2315), essa compreensão “é usada para afirmar a autonomia dos movimentos sociais por meio do controle coletivo (e às vezes individual) das tecnologias e infraestruturas digitais, e particularmente do poder de desenvolver e usar ferramentas”, frequentemente fundamentada nos princípios das tecnologias livres e de código aberto.

Essa perspectiva traz à tona questões críticas sobre como os movimentos sociais reivindicam infraestruturas digitais a partir de baixo e interagem com instituições como o Estado na busca pela soberania digital.

Em conjunto, esses enquadramentos ilustram que a soberania digital funciona como um significante flutuante, mobilizado em múltiplas escalas e a serviço de agendas políticas e econômicas divergentes. Ela pode evocar autossuficiência nacional, individualismo liberal, autonomia infraestrutural ou resistência coletiva.

Esses significados também mudam conforme os contextos geográficos: o que a soberania digital significa em um arcabouço político europeu pode diferir substancialmente de como é invocada na América Latina, África ou Ásia.

Em vez de buscar estabelecer uma essência conceitual fixa, nossa abordagem entende a soberania digital como um campo discursivo marcado pela contestação entre diversos atores e instituições.

Essa plasticidade discursiva é precisamente o que a torna tão vulnerável à captura corporativa. Uma breve análise do Google Trends reflete esse cenário em mudança. O interesse global pelo termo “soberania digital” se fortaleceu entre julho e dezembro de 2022, o mesmo período em que Amazon, Microsoft e Alphabet/Google lançaram grandes iniciativas focadas em soberania digital no contexto europeu.

Para além da Europa, o termo também ganhou tração em países do BRICS, como Brasil e Índia, sugerindo que ele não está mais confinado aos debates políticos do Norte Global. A soberania digital tornou-se um objeto discursivo global, cada vez mais enredado nas lutas geopolíticas sobre os debates tecnológicos.

Métodos

Por meio da análise crítica do discurso (ACD; Fairclough, 1992, 2003), este artigo examina os programas de soberania digital lançados por Google, Microsoft e Amazon entre 2022 e 2023. Essas empresas foram selecionadas devido ao seu controle combinado de mais de dois terços do mercado global de computação em nuvem.

A ACD nos permite compreender como características textuais específicas se relacionam com formações discursivas mais amplas e contextos político-econômicos – neste caso, como o termo “soberania” é mobilizado discursivamente e como essa mobilização se alinha com os interesses estratégicos das grandes empresas de tecnologia.

A coleta de dados concentrou-se em materiais oficiais publicados no site de cada empresa, incluindo anúncios de programas, posts de blog e descrições de produtos. Nosso objetivo aqui não era analisar os diversos gêneros e formatos discursivos empregados pelas empresas, mas sim focar em suas dimensões textuais.

Não obstante, observamos que a maioria dos materiais exibia características semelhantes, geralmente assumindo a forma de sites visualmente atraentes criados para apresentar o que são chamados de programas de soberania digital.

Realizou-se um processo de codificação temática e, seguindo Fairclough (1992, 2003), aplicamos os conceitos de enunciado e discurso para identificar as formações discursivas mais amplas, entendidas como ideologias e sistemas de valores, ou formações ideológico-discursivas, às quais cada enunciado estava relacionado.

Nossa análise considerou três dimensões centrais: (1) como a soberania é definida ou implícita em cada programa; (2) o contexto político e regulatório em que o programa foi lançado; e (3) as estratégias implantadas por cada empresa — como, por exemplo, os produtos ou serviços específicos oferecidos — sob a bandeira da soberania digital.

Esses materiais foram então interpretados à luz de discursos mais amplos e reivindicações contestadas que cercam a soberania digital nos debates contemporâneos sobre governança da internet.

O que a soberania significa para as Big Techs

Todas as três empresas — Google/Alphabet, Amazon e Microsoft — lançaram seus programas de soberania digital entre 2022 e 2023, com um claro foco no contexto europeu. Essas iniciativas surgiram em resposta a desenvolvimentos regulatórios recentes e a discursos crescentes sobre governança de dados e soberania na região.

No final de 2022, a Amazon, por meio de sua divisão de infraestrutura em nuvem, Amazon Web Services, introduziu o “Digital Sovereignty Pledge [1]” (Compromisso de Soberania Digital). O programa foi disponibilizado em vários idiomas e promovido por meio de veículos de mídia locais em diferentes regiões. Por exemplo, no Brasil, um portal de notícias online anunciou o “compromisso da Amazon com a soberania digital [2]“.

De acordo com a empresa, a soberania digital é definida como “ter controle sobre ativos digitais”, e a Amazon se posiciona como aquela que capacita os clientes a atenderem aos requisitos relacionados à soberania. Nesse enquadramento, a soberania é efetivamente reduzida a uma questão de gestão de ativos e acesso do consumidor à infraestrutura da Amazon.

A Amazon invoca o conceito de ser “soberana por projeto” [sovereign-by-design] — um termo que permanece indefinido nos materiais oficiais. Essa noção engloba quatro elementos principais: (1) controle sobre a localização dos dados; (2) controle verificável sobre o acesso aos dados; (3) capacidades de criptografia de ponta a ponta descritas em termos universais (“tudo” e “em todos os lugares”); e (4) resiliência da nuvem, vinculada principalmente à segurança em nível de hardware.

Esses recursos são comercializados como se proporcionassem aos clientes um controle ampliado sobre a infraestrutura em conformidade com os quadros legais existentes e são apresentados discursivamente como inovadores e disruptivos.

A Microsoft foi a primeira entre as três empresas a lançar um programa de soberania digital, introduzindo o Microsoft Cloud for Sovereignty em julho de 2022.3 A iniciativa tem como alvo principal governos e clientes do setor público que buscam investir em soberania digital.

Aqui, a soberania está, de novo, intimamente ligada à infraestrutura em nuvem e à governança de dados, particularmente através do conceito de “soberania de dados”. De acordo com a Microsoft, “soberania de dados é o conceito de que os dados estão sob o controle do cliente e regidos pela lei local" [3].

Essa definição alinha a oferta da empresa com arcabouços regulatórios nacionais, como o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (GDPR), posicionando-a como uma parceira em conformidade com o Estado.

O produto central associado ao programa da Microsoft é o serviço de nuvem pública Microsoft Azure. A empresa enfatiza que “cada governo tem uma visão e requisitos únicos ao abordar suas necessidades soberanas”, e propõe atender a essas necessidades por meio de uma “camada adicional de possibilidades de política e auditoria” incorporada em seus serviços de nuvem.

O enquadramento da Microsoft sugere que, em vez de desenvolver estratégias autônomas de soberania digital, os Estados podem confiar na Microsoft para torná-los “mais soberanos”, reforçando assim o poder infraestrutural e discursivo da empresa em relação aos atores estatais (Lehdonvirta, 2022).

A Alphabet/Google foi a última das três empresas a lançar uma iniciativa focada em soberania. Em março de 2023, ela introduziu o Digital Sovereignty Explorer (Explorador de Soberania Digital), também projetado com o contexto europeu em mente [4].

Ao contrário da Amazon e da Microsoft, o Google não lançou novos produtos, mas desenvolveu uma ferramenta para ajudar os clientes a identificar “soluções de soberania” relacionadas à governança de dados, operações e arquitetura de software, afirmando explicitamente que a soberania vai além da residência de dados.

Após avaliar as necessidades do cliente, a ferramenta gera um relatório recomendando os serviços apropriados do Google Cloud.

O Google enquadra a soberania como um serviço a ser alcançado por meio de seu ecossistema de ferramentas, particularmente o Google Cloud e o Google Workspace. A empresa descreve a soberania digital como “organizações mantendo controle e autonomia enquanto desenvolvem suas estratégias de transformação digital e de nuvem”, enfatizando recursos como controle, visibilidade e transparência.

Além disso, o programa introduz uma noção de soberania de software vinculada à resiliência “contra eventos geopolíticos disruptivos”. Nesse enquadramento, o Google se posiciona como um protetor dos interesses dos clientes, oferecendo não apenas soluções técnicas, mas uma forma de blindagem geopolítica que garante sua soberania digital.

Apesar de suas estratégias e enquadramentos distintos, os programas de soberania digital lançados pela Amazon, Microsoft e Google entre 2022 e 2023 convergem ao apresentar a soberania como um serviço oferecido por infraestruturas privadas, em vez de uma capacidade política desenvolvida por instituições públicas.

Cada empresa alinha seu programa com as pressões regulatórias emergentes do contexto em que atua, particularmente em resposta a debates sobre proteção de dados, regulação de IA e autonomia infraestrutural.

A Amazon enfatiza o controle centrado no cliente sobre ativos digitais, a Microsoft se posiciona como uma parceira de conformidade para os Estados, e o Google oferece soberania como uma configuração otimizada de seus próprios serviços de nuvem.

Em todos os casos, a soberania é desenraizada de suas origens históricas e políticas e redefinida como uma solução configurável entregue por meio de plataformas privadas.

Enquanto o discurso da Amazon enfatiza o controle de ativos e a criptografia, a Microsoft enquadra a soberania em termos de conformidade legal e flexibilidade política para governos. O Google, por outro lado, centraliza sua narrativa na transformação digital e na resiliência infraestrutural, particularmente em resposta a rupturas geopolíticas.

Em todos esses casos, a lógica é invertida: em vez de Estados ou comunidades exercerem soberania sobre as tecnologias, são as plataformas que agora concedem as ferramentas para que outros sejam “soberanos”, em seus próprios termos.

Essa soberania é ostensivamente “localizada”, mas permanece profundamente dependente das infraestruturas e dos negócios dessas corporações globais. A Tabela 1 resume as principais abordagens das iniciativas de soberania digital implementadas pelas Big Techs entre 2022 e 2023.

Conclusão

Os programas de soberania digital da Amazon, Microsoft e Google revelam uma mudança ideológica mais ampla na forma como as empresas de plataforma se engajam com conceitos políticos e acadêmicos, tentando cooptá-los de acordo com seus interesses, como resposta aos atuais arcabouços regulatórios.

Ao reclassificarem a soberania como um serviço, essas empresas desenraízam o conceito de suas associações históricas com a autodeterminação coletiva, o papel do Estado e os desenvolvimentos locais. Em seu lugar, elas oferecem arcabouços de marca como “controle”, “conformidade” e “resiliência”, distribuídos por meio de infraestruturas proprietárias.

Este artigo argumentou que isso não é meramente uma resposta a pressões regulatórias — particularmente dentro da União Europeia, mas uma síntese social mais ampla de como as Big Techs buscam atualizar a ideologia do Vale do Silício ou californiana, ao se apropriar e esvaziar os significados de conceitos-chave emergentes da sociedade civil. Isso é o que chamamos de soberania-como-serviço.

Esta é uma forma de captura discursiva na qual as empresas de plataforma definem as condições sob as quais outros, sejam indivíduos, corporações ou mesmo governos, podem ser considerados “soberanos”, dependendo de seus recursos e capacidades infraestruturais.

Em vez de a soberania ser exercida sobre as plataformas, ela agora é concedida por elas, por meio de ferramentas e serviços que reproduzem a dependência de suas infraestruturas. Apesar das variações de seus “programas de soberania digital”, as três empresas compartilham um movimento fundamental: elas esvaziam as dimensões políticas da soberania e a reconstituem como uma solução comercializável.

A originalidade desta análise reside em demonstrar como a soberania tornou-se um objeto discursivo de apropriação corporativa, um significante flutuante que as empresas de plataforma preenchem com significado estratégico dependendo da região, do público e do contexto político.

Ao traçar esse processo, contribuímos para debates críticos mais amplos sobre o poder das plataformas, o discurso das Big Techs e a soberania digital, abordando a soberania não como algo essencializado ou homogêneo, mas precisamente como um conceito sob disputa e sujeito a captura.

Em última análise, esse reenquadramento nos obriga a perguntar não apenas quem controla localmente a nuvem, mas quem controla o significado da soberania em si, e para quais fins.

Não pretendemos aqui analisar como esses serviços estão sendo comprados por governos em todo o mundo, mas é possível afirmar que essa forma de poder tecnológico, tanto discursivo quanto infraestrutural, já está produzindo efeitos. O governo brasileiro, por exemplo, sob o presidente Lula, promove consistentemente um discurso de soberania enquanto ao mesmo tempo adquire serviços de nuvem “soberanos” da Amazon (Dias, 2025). Isso ilustra como tal dissimulação discursiva pode reforçar ainda mais o poder das plataformas.

Ao abordar essa questão, os autores também convidam a comunidade acadêmica a considerar como a soberania digital pode ser recuperada por outros meios, como o poder popular, ou uma noção de soberania digital popular, e por diferentes comunidades a partir de baixo, como uma forma de confrontar a dependência das plataformas.

O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto no Brasil (MTST), por exemplo, tem avançado esse debate a partir de baixo (MTST, 2023; Salvagni et al., 2024).

Referências

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Notas

[1] - Disponível aqui.

[2] - Disponível aqui.

[3] - Disponível aqui.

[4] - Disponível aqui.

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