13 Setembro 2023
A velha mídia deu atenção à visita do filósofo Morozov ao Brasil, mas não o ouviu. Big Techs sequestram dados nacionais – e jornais se calam. É hora de criar um movimento tecnopolítico para enfrentar esse colonialismo. E o governo precisa agir.
O artigo é de Sérgio Amadeu da Silveira, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), pesquisador de redes digitais e ex-conselheiro do Comitê Gestor da Internet - CGI.br, publicado por Outras Palavras, 06-09-2023.
A vinda de Evgeny Morozov ao Brasil reforçou as posições daqueles que defendem a importância do Estado para o desenvolvimento tecnológico do país. Morozov conseguiu abrir as páginas de jornais da imprensa tradicional para atacar o neoliberalismo, o poder das Big Techs e defender a soberania digital.
As páginas da imprensa se abriram para o pensador europeu, mas continuam fechadas para projetos que mostram o avanço do colonialismo de dados, bem como, para as iniciativas pela soberania tecnológica. Um exemplo é o projeto Educação Vigiada que há um bom tempo denuncia que mais de 72% das instituições brasileiras de Educação superior entregaram o armazenamento de seus e-mails para o Google e 8% para a Microsoft.
Outro silêncio dos veículos da chamada grande mídia se consuma diante da entrega de dados dos servidores públicos federais, civis e militares, que utilizam o chat do aplicativo do governo federal chamado SouGov para a IBM WATSON. Após oito meses da saída de Bolsonaro, ao entrarmos nos Termos de Uso do aplicativo utilizado por mais de 1 milhão de servidores e pensionistas está escrito:
“Tal armazenamento tem o objetivo de prover o aprendizado de máquina da ferramenta de chat denominada ‘Watson’, onde as interações dos usuários no chat são utilizadas para ‘aprendizado’ pelo computador que envia as respostas automáticas quando o usuário está sendo atendido por meio do chat do serviço SouGov.”
A imprensa neoliberal não considera que o treinamento dos sistemas algorítmicos da IBM com as interações dos servidores federais seja um exemplo de dependência inaceitável e de alto risco para o Brasil. A Agência Nacional de Proteção de Dados nem se digna a analisar a hospedagem de dados de membros do governo em um país com legislação incompatível com a LGPD. Além disso, ninguém se lembra mais das denuncias de Edward Snowden. Afinal, quem é esse mesmo?
Curiosamente, o alerta de Morozov sobre o poder das Big Techs e seu controle das infraestruturas cruciais do cenário digital não preocupa a mesma imprensa quando recebe um release de que o Tribunal de Justiça de São Paulo iria implementar um sistema de IA com a Microsoft. Repare que todos os processos e atividades do Tribunal do Estado com a maior atividade econômica do país ficaria sobre o controle de uma empresa norte-americana com interesses diversos no país. Essa mesma empresa é submetida ao Cloud Act e a outras leis que exigem sua fidelidade aos interesses do Estado norte-americano. “Mas isso não importa”. “Nós acreditamos no contrato”. Pena que a pesquisadora Jose Van Dijck não veio ao Brasil para dizer que essa crença no contrato e nas Big Techs é dataísmo, não se sustenta empiricamente. Uma pena.
“Precisamos de escala”. “Esse negócio de desenvolvimento é coisa do software livre” (SIC!). “Software livre foi derrotado”. “O Linux só deu certo com o Android porque é do Google”. “Estamos com os melhores”. Com frases assim, muitos desses gestores públicos, dirigentes da mídia, youtubers e formadores de opinião. ao mesmo tempo, dizem que os dados e as tecnologias digitais são fundamentais. Simultaneamente, no mundo em que os dados são ativos de elevado valor, não percebem que nosso país mal consegue mantê-los em seu território. “É mais barato utilizar a nuvem”. Sim, é verdade. Seria interessante tentar reverter esse processo e estruturar uma política de soberania de dados de médio e longo prazo? “Ah. Não temos tempo para isso”. “Precisamos agir”. “Tecnologia é como caneta, usamos a melhor e pronto”.
Enquanto isso, a Europa vive um intenso movimento pela localização dos dados que parece irreversível. Para não perder o mercado europeu, as Big Techs lançaram um produto chamado Sovereign Cloud, nuvem soberana. Já estão chegando com essa solução no Brasil. Mas as Big techs combinam duas estratégias. A primeira visa adiar, se não for possível derrotar, a pressão pela soberania digital. Para tal, contam com alguns dirigentes de mídia, articulistas e gestores públicos neoliberais. A segunda, passa por lançar o produto da nuvem soberana e continuar mantendo as estruturas digitais fundamentais para o Big Data e para a Inteligência Artificial em suas mãos. A Oracle já lançou aqui sua “Sovereign Cloud”: “uma nuvem localizada, segura e autorizada para cargas de trabalho sensíveis e regulamentadas que atendem aos requisitos regionais…”.
No segundo semestre de 2022, ainda em meio à disputa eleitoral, aproximadamente 600 pesquisadoras, pesquisadores e ativistas lançaram a Carta Soberania Digital entregue para o presidente Lula, ainda candidato. A Carta começava assim: “As tecnologias digitais não podem servir para ampliar as desigualdades e a dependência do país ao grande capital internacional”. Concluía com um conjunto de propostas, nenhuma assumida até o momento pelo governo federal. Aqui destaco quatro delas:
“1 - Criar uma infraestrutura federada para a hospedagem dos dados das universidades e centros de pesquisa brasileiros conforme nossa LGPD.
2 - Formar, nessa infraestrutura federada, frameworks para soluções de Inteligência Artificial, seja para o setor público ou privado.
3 - Incentivar e financiar a criação de datacenters que envolvam governos estaduais, municípios, universidades públicas e organizações não-governamentais, que permitam manter dados em nosso território e aplicar soluções IA que estimulem e beneficiem a inteligência coletiva local e regional.
4 - Promover a instalação, no MCTI, de equipes multidisciplinares para a prospecção de tecnologias e experimentos tendo como princípios a tecnodiversidade e em busca de promover avanços em áreas estratégicas ao desenvolvimento nacional. Em articulação com o MEC, promover também a formação de recursos humanos criando mecanismos para que permaneçam no setor público de maneira a nos afastar da dependência das grandes corporações.”
Sim, são de propostas na linha do que Morozov chamou de ação do Estado para construir infraestruturas digitais. Não, Morozov não inventou a luta em que o Estado precisa encarar o neoliberalismo e apostar na inteligência coletiva nacional. No Brasil nenhuma ação na direção do desenvolvimento e da autonomia tecnológica foi aceita sem luta política contra as classes dominantes que comandam o país. O Brasil está na área de influência geopolítica dos Estados Unidos, chamada de quintal. Por exemplo, para construir a Companhia Siderúrgica Nacional — fundamental para a industrialização do Brasil — tivemos uma intensa luta política. Parte das classes dominantes queriam continuar enviando minério para a United States Steel Co. para importar aço pagando dez vezes mais. A Petrobras só foi criada após a campanha do “Petróleo é nosso!”. Não se esqueçam que o senhor Roberto Campos foi contra a nacionalização do Petróleo e contra a política de informática. Sim, Roberto Campos é o avô do atual presidente do Banco Central. Recentemente, o governo Temer fez de tudo para entregar a terceira empresa de fabricação de aviões do mundo, a Embraer, para os EUA. Por problemas judiciais no país da Boeing, o negócio não foi feito. Afinal, “para que construir aviões? O que importa é voar”.
Nada indica que deixaremos a condição de território de extração de dados e criadores de apps se o Estado não agir. Sem converter a questão da soberania digital — sobre as infraestruturas sociotécnicas — e da soberania de dados em luta política seremos em breve tecnologicamente ultrapassados pelos países que estão vivendo disputas políticas pelo desenvolvimento e pela tecnodiversidade. Caso não consigamos criar um poderoso movimento tecnopolítico continuaremos sendo consumidores de produtos e serviços criados por sistemas automatizados a partir do tratamento de dados extraídos de nossa população. As batalhas serão intensas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Não haverá soberania digital sem o Estado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU