Ur-Diakonia: para uma desconstrução do anacronismo sacerdotal e a restauração do 'homo diaconalis' na igreja. Artigo de Thiago Gama

Mosaico de Theodora Episcopa (Roma, séc. IX). Licença de uso: Wikimedia Commons

13 Dezembro 2025

Enquanto os corredores de Roma ecoam o “não” prudencial à ordenação feminina, um manuscrito do século VIII, manchado de cera e uso litúrgico, sussurra uma verdade inconveniente: a Igreja já impôs as mãos sobre mulheres no santuário. Este ensaio não é um manifesto político (e nem poderia sê-lo), mas uma arqueologia teológica contra o que o autor define como a “Grande Amnésia” do Ocidente. Ao desenterrar o conceito de Ur-Diakonia, o historiador Thiago Gama (UFRJ) propõe que o atual impasse não se resolve com a quebra da tradição, mas com o resgate de uma memória soterrada pela Idade Média. O que você lerá a seguir é a prova documental e mística de que o futuro da Igreja pode estar escondido, esperando para ser redescoberto, nas suas páginas mais antigas.

O artigo é de Thiago Gama, doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ).

Eis o artigo.

Este texto nasceu do espanto. Do espanto de um historiador ao descobrir, quase sem querer, que a Igreja que amava havia esquecido parte de si mesma; não escrevo como quem lança um manifesto político, mas como quem tenta curar uma amnésia. As linhas que se seguem são fruto de noites insones debruçado sobre códices digitais e da poeira — real ou imaginária — dos arquivos que guardam nossa memória. As imperfeições e paixões que o leitor encontrará são minhas, cicatrizes de um incômodo pastoral que não me larga. Ofereço este estudo à Igreja, através do Instituto Humanitas Unisinos, não como uma verdade fechada (historiadores não creem nisso), mas como um amoroso e urgente diagnóstico.

À minha querida Mestra Phyllis Zagano, a quem o saudoso Papa Francisco, em 2016, colocou na Comissão Papal de Estudo sobre o Diaconato das Mulheres, cujo trabalho abriu a clareira onde agora tento plantar esta pequenina árvore, ofereço este sistema conceitual não como correção (me faltaria erudição), mas como um marco de gratidão e continuidade (aqui me sobra philia, reconhecimento e respeito).

A ilusão do problema e a arqueologia da consciência

A pergunta que paralisa Roma hoje — “A mulher pode receber o sacramento da Ordem?” — não é uma pergunta difícil; eu diria, de forma ousada, que se trata de uma falsa questão, parafraseando o filósofo Ludwig Wittgenstein. É um espectro semântico, a projeção de uma angústia moderna (a crise dos gêneros e do poder) sobre uma tela antiga que operava com uma “física” teológica radicalmente distinta. Como se ainda não tivéssemos virado a chave de Newton para Einstein.

Ao Cardeal Petrocchi e à sua Comissão, cujo zelo pela forma canônica eu admiro, mas cujo método historiográfico (campo em que me sinto à vontade para cautelosamente questionar) pergunto: os senhores leram a tradição com os olhos de quem busca a Salus Animarum ou com os olhos de quem busca blindar o Status Quo? O “problema” do diaconato feminino é um anacronismo projetado. Ele só faz sentido, só ganha corpo e peso, dentro de uma eclesiologia pós-tridentina que completou a clericalização do ministério e a sacramentalização da virilidade.

Estamos tentando, com ferramentas inadequadas, encaixar a realidade fluida, carismática e pneumática do primeiro milênio na grade de ferro do Direito Canônico de 1917. Nos primeiros séculos, a Igreja não se perguntava se a mulher “podia” ser diácono. A pergunta não existia porque a premissa moderna — de que o Diácono é um “Sacerdote em Potência” ou um “Padre em Miniatura” — não existia. A Igreja via a Diakonia não como um degrau de poder (potestas) numa escada carreirista, mas como uma função eclesial orgânica, uma oikonomia (administração) da caridade que, em seu grau público e oficial (a Cheirotonia), recaía sobre o batizado apto, fosse ele homem ou mulher.

A nossa tarefa, portanto, não é debater dentro do paradigma atual, aceitando suas premissas viciadas. É implodi-lo. É realizar a escavação arqueológica necessária para remover os entulhos medievais e expor o alicerce original. A “Grande Amnésia” do Ocidente não foi um esquecimento acidental; foi a substituição violenta de um paradigma por outro. O que proponho a seguir é a restauração da gramática perdida da fé.

Para sair do labirinto semântico em que nos metemos, precisamos abandonar a linguagem do carcereiro. Enquanto usarmos termos como “graus da ordem”, “promoção clerical” ou “acesso ao altar”, estaremos presos na lógica do poder. Proponho aqui um novo sistema conceitual triádico, capaz de traduzir a realidade antiga para a urgência presente.

No princípio, não era o Verbo que mandava; era o Verbo que servia. Antes de qualquer estrutura hierárquica, antes de haver bispos ou presbíteros, existe a Ur-Diakonia. É a essência kenótica da Igreja. Quando Cristo se cinge com a toalha no Cenáculo, Ele não está instituindo um “cargo inferior” para aspirantes ao sacerdócio; Ele está revelando a Forma Ecclesiae. A Igreja é serviço antes de ser governo. A Ur-Diakonia não tem gênero; ela tem origem divina. Ela é a condição de possibilidade de todo o cristianismo.

A Igreja primitiva, em sua sabedoria pneumática, criou um rito para sacramentalizar essa Ur-Diakonia em indivíduos específicos. Chamaremos este rito de Cheirotonia Diaconalis. É crucial entender, contra toda a teologia manualística posterior: este rito é ontologicamente distinto da Cheirotonia Sacerdotalis. O Sacerdote é ordenado para a presidência do Sacrifício (Hierosyne). O Diácono é ordenado para a presidência da Caridade e da Palavra (Diakonia).

A MEMÓRIA DA PEDRA: Afresco da “Fractio Panis” nas Catacumbas de Priscila. A mulher preside o serviço da mesa e do pão. Antes da clericalização medieval, a “Ur-Diakonia” não tinha gênero. Licença: Wikimedia Commons 

A “Grande Amnésia” da Igreja latina, consolidada na Alta Idade Média, foi confundir a arquitetura hierárquica com a ontologia do ministério. Fundiram-se os dois trilhos paralelos em uma única escada vertical. Ao fazer isso, o Diaconato foi absorvido pelo Sacerdócio, tornando-se uma “ordem de passagem”. E como o Sacerdócio exige o ícone masculino (Cristo-Esposo), a mulher foi expulsa da Cheirotonia Diaconalis por contágio conceitual.

Esta tradição impregnou a mente dos fiéis católicos até os dias atuais, em meus dias de colaborador pastoral, quantas noivas vi desistirem de casar-se em sua paróquia em determinado dia do mês porque naquele determinado dia escolhido o Diácono e não o Padre seria a Testemunha do Sacramento do Matrimônio. Resultado: casamento adiado ou transferência de paróquia, há algo de infantil que os batizados católicos não conseguem distinguir, mesmo os que comungam e frequentam os cultos dominicais. O diaconato é um serviço específico, não é um grau hierárquico.

Mas voltemos ao foco do problema, alguns poderão objetar citando a carta apostólica Ordinatio Sacerdotalis, que define que a Igreja não tem autoridade para ordenar mulheres ao sacerdócio. A objeção, porém, pressupõe o próprio ponto em debate: a unidade indistinta do sacramento da Ordem. A tese da Ur-Diakonia, ao recuperar a distinção ontológica entre a Cheirotonia Sacerdotalis e a Diaconalis, responde precisamente que Ordinatio Sacerdotalis se aplica à primeira. Ela não trata — e nem poderia tratar — da segunda, cuja realidade sacramental distinta havia sido obscurecida pelo paradigma clerical ocidental no momento de sua promulgação.

O que se pede não é uma revisão desse documento, mas um desvelamento de que seu objeto (o sacerdócio) não esgota a totalidade do ministério ordenado. Restaurar a mulher não é uma exceção à regra; é o diagnóstico de que recuperamos a sanidade teológica.

Quem é o sujeito apto para a Cheirotonia Diaconalis? Não é o homem (vir), mas o ser humano batizado (homo). O Homo Diaconalis é aquele cuja configuração a Cristo não se dá pela masculinidade biológica, mas pela humanidade servidora. A Igreja não restaurará a mulher na Cheirotonia Diaconalis como uma concessão liberal; ela reconhecerá que o Homo Diaconalis sempre foi, em potência, todo o genos batismal. A mulher não é uma intrusa no santuário; ela é o Homo Diaconalis por excelência.

ARQUEOLOGIA DA CONSCIÊNCIA: O mosaico de “Theodora Episcopa” (Roma, séc. IX). Licença de uso: Wikimedia Commons

Observemos este mosaico com reverência. “Theodora Episcopa” não é uma sacerdotisa, erro crasso de leitura moderna. Ela é o testemunho visual de uma mulher exercendo a autoridade da Ur-Diakonia com reconhecimento público. O nimbo quadrado indica que ela vivia enquanto era venerada. A Igreja sabe honrar suas mães.

A história é implacável com as teses frágeis construídas em gabinetes fechados. Os defensores da exclusão feminina apoiam-se na “tradição ininterrupta”. Mas essa tradição é um queijo suíço, cheio de buracos por onde a verdade vaza, se tivermos a coragem de olhar.

A primeira vez que tive contato com a transcrição do folio 336 do Euchologion Barberini (Séc. VIII), não foi a teologia que me golpeou, mas a materialidade do rito. Aquele não era um texto teórico. Era um roteiro prático, sujo de cera e óleo, usado por bispos reais em liturgias reais. A ordenação da diaconisa ali descrita possui todos os elementos da Cheirotonia maior: imposição das mãos no santuário (bema), epiclese do Espírito Santo, investidura da estola (orarion). A oração é explícita: “Dedica esta tua serva à obra do teu diaconato”. Não há ambiguidade. A Igreja Bizantina, guardiã ferrenha da ortodoxia, sacramentalizava a Ur-Diakonia em corpos femininos. Ponto.

Aqui, preciso confrontar o gigante que guarda a porta do “Não”. Aimé Georges Martimort, em sua obra clássica Diaconesses: An Historical Study, construiu, talvez, uma das defesas mais eruditas contra a sacramentalidade desse rito.

Ele argumenta que, apesar das semelhanças externas, a intenção era diferente, “menor”, não comparável ao diaconato masculino. Com todo o respeito devido à sua erudição, digo: Martimort erra. E erra porque lê o passado com a lente canônica de seu presente (todo historiador é aparelhado para não cometer o mais primário dos erros de avaliação do passado).

Página do Euchologion Barberini Gr. 336 (séc. VIII). O texto contém a epiclese completa para a ordenação de mulheres diáconas, idêntica à masculina. A tinta prova o que a teologia tenta esquecer. Créditos: Womendeacons.org

Sua tese é um monumento de pesquisa a serviço de um anacronismo. Ele projeta a obsessão moderna pela “unicidade do Sacramento da Ordem” sobre um tempo que respirava a diversidade dos carismas. Ele tenta diminuir o rito feminino para salvar a coerência do sistema masculino posterior. Mas o texto resiste. A palavra é Cheirotonia. A invocação é do Espírito Santo. Tentar dizer que “não valia” é um malabarismo intelectual indigno da fé na ação de Deus na história.

Mas a prova mais formidável não está no que os Padres disseram, mas no que nunca disseram. Se a ordenação de mulheres fosse uma “impossibilidade ontológica” — como a CTI e a Comissão Petrocchi sugerem hoje —, deveríamos encontrar tratados patrísticos condenando-a como heresia antropológica. Onde estão eles? Em nenhum concílio ecumênico dos primeiros oito séculos, em nenhum tratado fundamental de Inácio de Antioquia a João Damasceno, encontra-se um debate doutrinal sobre a “incapacidade” da mulher para a Cheirotonia Diaconalis.

A questão simplesmente não existia no horizonte teológico. A única discussão era disciplinar (idade, castidade, como no Cânone 15 de Calcedônia). A “impossibilidade ontológica” é uma invenção escolástica tardia. A ausência deste debate nos primeiros séculos é a prova cabal de que a ordenação de mulheres não era um problema teológico, mas um fato eclesial aceito. A carga da prova não cabe a nós.

Cabe aos que defendem a exclusão explicar por que um “não-problema” para a Igreja indivisa se tornou um dogma imutável para a Igreja latina medieval (utilizo aqui o que todo aluno de Direito do segundo período de uma faculdade de Direito conhece de cor: Ei incumbit probatio qui dicit, non qui negat.). Isto é: o ônus da prova é de quem acusa. Esta é a pedra angular do Direito Romano.

 

A supressão da Cheirotonia Diaconalis feminina não foi um evento isolado; foi o sintoma de uma doença maior, uma catástrofe epistemológica que atingiu o Ocidente cristão. Falar em “catástrofe” não é acusar a Igreja de heresia, mas descrever, com a dor de um filho, como um braço saudável do Corpo Místico — a expressão sacramental feminina da Diakonia — foi imobilizado por um gesso cultural pesado demais, confundido com a própria pele.

À medida que a Igreja se romanizava e se feudalizava, ela adotou uma epistemologia baseada exclusivamente no Logos masculino (a razão, a lei, a definição). A Einfühlung (Empatia, Conhecimento por Contato), que Edith Stein identificaria séculos depois como a via de conhecimento própria da estrutura feminina, foi relegada à esfera privada.

O clero medieval convenceu-se de que só quem tem poder de definir (Jurisdição) tem poder sagrado. Como o serviço (Diakonia) não define, mas cuida, ele foi considerado “menor”. E como a mulher era vista, na biologia aristotélica, como incapaz de autoridade pública, ela foi removida.

Ao escrever estas linhas, confronto-me com o próprio abismo que descrevo: não estaria eu, ao buscar na linguagem fenomenológica de Stein um caminho para além do Logos abstrato, caindo na mesma tentação de instrumentalizar uma razão (ainda que empática) para um fim eclesial? Talvez a verdadeira reparação exija não apenas um novo conceito, mas um silêncio ativo diante do Mistério que escapa a todos os nossos sistemas — inclusive a este que aqui proponho.

Sigo, no entanto, convicto de que é melhor errar pela audácia da caridade do que acertar pela prudência do medo. Se recuperarmos a visão de que a Caridade é uma forma de Conhecimento (como ensinou Bento XVI), então o Homo Diaconalis feminino torna-se indispensável.

A mulher diácona não é um “enfeite” no altar. Ela é a garantia epistemológica de que a Igreja não esqueceu que o Amor é tão dogmático quanto a Fé. Restaurar a diaconisa é um ato de reparação intelectual. É dizer que o “sentir com o outro” (Einfühlung) tem dignidade sacramental. Sem a mulher ordenada, a hierarquia corre o risco de se tornar um cérebro brilhante flutuando em um formol sem coração.

A teologia ocidental, em sua obsessão pela arquitetura visível e jurídica, sofre de uma hipertrofia cristológica que o cardeal Yves Congar diagnosticou, com a precisão de quem amava a Igreja o suficiente para apontar suas feridas, como “Cristomonismo”. Construímos uma eclesiologia tão focada na encarnação masculina do Verbo (o Sacerdote, o Bispo, o Papa) que deixamos o Espírito Santo (Pneuma) como um “Deus Desconhecido”, uma abstração sem rosto na hierarquia, uma “alma” sem corpo visível.

Aqui reside o erro fatal e a chave de ouro. Enquanto a Igreja insistir em ver o Diaconato como um “Sacerdócio menor”, ela estará aprisionada à questão da masculinidade de Cristo. Mas se tivermos a coragem teológica — e o temor santo — de afirmar que a Cheirotonia Diaconalis é o Sacramento do Espírito Santo, o tabuleiro muda de cor, e a aquarela aparece, com toda a nuance necessária para abrir-nos para este mistério que é puro discernimento no Espírito. Sofisticado, contemplativo, e sopra onde e como deseja.

Nas línguas semíticas, que Jesus respirava, o Sopro Divino é Ruah. Feminino. Materno. Imprevisível. Os Padres Siríacos, com uma audácia poética que o latim jurídico perdeu, não hesitavam em falar do Espírito em termos de maternidade divina. Se o Sacerdote no altar, pela sua virilidade biológica, guarda a iconografia do Cristo-Esposo (Logos), quem guarda, na liturgia visível, a iconografia da Ruah-Consoladora?

Este dado linguístico, obviamente, não constitui um argumento dogmático por si só. Ninguém defende que a gramática hebraica legisle sobre os sacramentos. No entanto, ele serve como uma poderosa chave tipológica e simbólica que a Tradição Siríaca soube aproveitar.

Propõe-se aqui, portanto, uma leitura anagógica e desenvolvimentista: se o Espírito foi vivido e invocado em categorias maternas pela piedade de uma grande tradição cristã, não seria legítimo — e até pastoralmente genial — permitir que essa face consoladora da Divindade encontrasse seu ícone sacramental visível no ministério diaconal feminino? A título de uma anedota real: por ocasião do Ângelus de 10 de setembro de 1978, dois dias após o início de seu breve pontificado, João Paulo I soltou a graciosa frase: “Dio è Padre; più ancora è madre.” “Deus Pai; mas ainda é mãe.” Ponho-me a sonhar – Em seu interior, na morada do seu coração, o que Luciani (João Paulo I – 1978) teria feito sobre esta questão se tivesse tido tempo?

Hoje, esse lugar está vazio. O altar é um monólogo masculino. A tese da Ur-Diakonia propõe que o Diaconato, em sua plenitude recuperada (homens e mulheres), seja o ícone visível da Terceira Pessoa.

A Diaconisa não seria uma “sacerdotisa falhada” ou uma “clériga de segunda classe” — pesadelo de Roma. Ela seria o Ícone da Ruah. Ela traria para o rito a dimensão da gestação, do cuidado invisível, da união dos corações, da synergie divina que tece a comunhão antes que a autoridade a defina.

O FUTURO JÁ COMEÇOU: Diaconisa Angelic Molen, ordenada no Zimbábue em 2024 pelo Patriarcado Ortodoxo de Alexandria. Enquanto o Ocidente debate a “possibilidade ontológica”, o Oriente obedece ao Espírito. (Foto: Reprodução)

Isso resolve o impasse dogmático com uma elegância que beira o milagre: Mantemos o Sacerdócio Petrino/Masculino (fiel à historicidade da Encarnação do Filho). Abrimos o Diaconato Pneumático/Feminino (fiel à liberdade do Espírito).

Imagine a Missa solene deste futuro-passado: O Presbítero preside a Verdade (Logos). A Diaconisa preside a Caridade (Agape). Juntos, eles não apenas “fazem” a missa; eles espelham a Trindade. Um Deus que governa e serve. Uma liturgia sem a mulher ordenada é uma liturgia manca, pois proclama um Deus que manda, mas esconde o Deus que nutre.

O Espírito Santo não é funcionário da Cúria; Ele sopra onde quer. E a história nos grita, através do sensus fidei do povo que já chama suas líderes de “diáconas”, que Ele está soprando sobre as mulheres. Ele está pedindo que a Igreja tenha a humildade de lhes dar o nome que lhes pertence desde o Batismo.

Chegamos ao fim da escavação. O que encontramos sob os escombros medievais não foi um “direito da mulher” — conceito burguês que pouco interessa à mística —, mas a própria Substância da Igreja.

O debate sobre o diaconato feminino, quando lido através da lente da Ur-Diakonia, deixa de ser uma disputa por poder clerical. Torna-se uma exigência de fidelidade. A Igreja Católica precisa passar por uma Revolução Copernicana. Durante séculos, acreditamos que a Igreja girava em torno do “Sol” da Hierarquia (o Poder Sagrado), e que o Serviço era apenas um planeta satélite.

A verdade da Ur-Diakonia inverte o sistema: o Sol é o Serviço (a Diakonia de Cristo), e a Hierarquia existe apenas para orbitar e sustentar esse Sol. Se o Serviço é o centro, e se a mulher é, por excelência ontológica e histórica, a mestra do serviço (Einfühlung), então excluí-la do Sacramento do Serviço é um erro cosmológico. É tentar manter um sistema solar artificial que não se sustenta mais.

Ao Santo Padre Leão XIV, digo com a parresia de um filho amoroso: Vossa Santidade tem diante de si uma escolha que definirá o milênio. O senhor não precisa “mudar a doutrina”. O senhor precisa apenas ter a coragem de lembrar. Lembrar de Febe. Lembrar de Olímpia. Lembrar que a Igreja já foi capaz de impor as mãos sobre mulheres sem medo de que o céu caísse, porque sabia que o Espírito sustentava o firmamento.

Restaurar a Cheirotonia Diaconalis para as mulheres não é modernismo; é um Ressourcement radical. É voltar à fonte pura, antes que o rio fosse poluído pelo medo medieval do corpo feminino. É dizer ao mundo que o Catolicismo é vasto demais para ser contido em uma única gramática masculina.

A primeira ordenação da história não aconteceu em uma catedral de mármore, mas em uma casa em Nazaré. O primeiro “Fiat” foi feminino. O primeiro hino litúrgico foi o Magnificat. A mulher diácona é a encarnação desse Magnificat. Ela é a prova de que Deus “exaltou os humildes”.

A Catedral está construída. As pedras da História sustentam as paredes. Os vitrais da Filosofia deixam entrar a luz da Empatia. O altar da Pneumatologia espera a oferta. Não cabe a nós perguntarmos “se” a mulher pode ser ordenada. A pergunta correta, a única que resta diante da evidência do Espírito e da fome do mundo, é: “Por que demoramos tanto?”

 

Veni, Sancte Spiritus.

Ofereço este ensaio não como palavra final, mas como convite ao debate. Se houver erro, que a Igreja corrija. Se houver verdade, que o Espírito confirme. O que não podemos é continuar fingindo que a amnésia é tradição.

Bibliografia

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