02 Julho 2025
Organizações como a Anistia Internacional e os Médicos Sem Fronteiras denunciam que o atual sistema de distribuição expõe a população a tiroteios e deslocamentos forçados.
A reportagem é publicada por Página|12, 02-07-2025.
Mais de 160 organizações humanitárias de todo o mundo emitiram um comunicado na terça-feira pedindo o fim do sistema de distribuição de ajuda humanitária apoiado pelos EUA e por Israel na Faixa de Gaza, que acusam de ter causado a morte de centenas de palestinos. De acordo com as autoridades de saúde, pelo menos 500 pessoas morreram e cerca de 4.000 ficaram feridas tentando acessar os pontos de ajuda administrados pelo Fundo Humanitário de Gaza (GHF) nas cinco semanas desde que assumiu o controle dos suprimentos destinados à população de Gaza. Enquanto isso, o presidente dos EUA, Donald Trump, disse que Israel concordou em finalizar os termos de um cessar-fogo de 60 dias com o Hamas e expressou esperança de que a organização islâmica também aceite o acordo.
Em uma declaração conjunta, 169 organizações (incluindo Anistia Internacional, Médicos Sem Fronteiras, Save the Children e Oxfam) denunciaram que forças israelenses e grupos armados abrem fogo "rotineiramente" contra civis que se aproximam em busca de alimentos. As ONGs afirmam que, desde o final de maio, os massacres em áreas de distribuição se multiplicaram. "Exigimos ação imediata para pôr fim ao mortal programa israelense de distribuição de ajuda em Gaza, que já deixou centenas de mortos", declararam.
Enquanto isso, os ataques israelenses ao enclave continuam. Fontes hospitalares relataram na terça-feira que pelo menos 98 palestinos foram mortos em Gaza. Pelo menos 16 palestinos foram mortos por fogo militar israelense enquanto tentavam se aproximar de um comboio de ajuda humanitária em Deir al-Balah, segundo a Al Jazeera. Enquanto isso, o Complexo Médico Nasser relatou que pelo menos 15 moradores de Gaza ficaram feridos perto do ponto a leste de Khan Yunis.
"Essas áreas se tornaram palcos de massacres repetidos, em flagrante desrespeito ao direito internacional humanitário", afirmam as organizações que assinam a declaração, que exige o restabelecimento do sistema anterior, em vigor até março, que permitia a distribuição descentralizada por meio de agências da ONU (como a UNRWA) e organizações locais. O GHF respondeu acusando as ONGs de "proferir insultos à margem" em vez de se juntarem ao projeto liderado pelo líder evangélico Johnnie Moore Jr., aliado do presidente dos EUA, Donald Trump.
Segundo as organizações, o novo mecanismo obriga os 2,2 milhões de habitantes de Gaza a recorrer a quatro zonas militarizadas e superlotadas , onde a ajuda humanitária é distribuída sob guarda armada e em meio a tiros. "Os palestinos enfrentam uma escolha impossível: morrer de fome ou correr o risco de serem baleados enquanto tentam conseguir comida para suas famílias", afirma o comunicado.
As organizações denunciam que a substituição do sistema administrado pela ONU, que operou cerca de 400 locais ativos durante a trégua temporária, busca forçar a população a percorrer longas distâncias a pé, através de zonas de combate, até pontos militarizados para sobreviver e restringir a chegada de ajuda ao enclave. Desde que o sistema GHF começou a operar, mais de 67 pessoas morreram especificamente de fome.
Por sua vez, o exército israelense reconheceu ter atirado contra civis perto de pontos de distribuição, argumentando que eles representavam uma "ameaça". Na segunda-feira, o jornal israelense Haaretz revelou que o exército israelense admitiu ter ordenado tiroteios contra civis desarmados perto de centros de distribuição, e que entre 30 e 40 pessoas foram atingidas por disparos de artilharia "imprecisos e mal calculados".
Os quatro centros atuais (três no sul e um no centro) estão sob controle militar israelense, o que levou à migração forçada para a área costeira de Al Mawasi, no sul. No ponto de Netzarim, no centro de Gaza, a EFE confirmou que a distribuição começa ao amanhecer, obrigando milhares de pessoas a caminharem durante a noite em busca de comida. A maioria dos que chegam são jovens, alguns armados com facas para proteger o pouco que têm. " Forçar as pessoas a morrer de fome ou de tiros não é uma resposta humanitária", denunciam as organizações.
As 169 organizações pedem o fim do programa atual e o retorno ao sistema de distribuição coordenado pelas Nações Unidas para evitar ataques contra aqueles que buscam ajuda. Elas também exigem que modelos militarizados não sejam financiados. O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, chamou-o de "inerentemente inseguro" na semana passada, enquanto Aitor Zabalgogeazkoa, coordenador de emergência da Médicos Sem Fronteiras em Gaza, foi direto: "Quatro centros para dois milhões de pessoas seriam uma piada se não fosse uma tragédia."
Busha Khalidi, responsável por políticas da Oxfam nos territórios ocupados, denunciou o modelo como uma continuação do bloqueio israelense, que impede a entrada de combustível e suprimentos médicos, nega vistos a trabalhadores humanitários estrangeiros e levou à morte de funcionários de ONGs e médicos. "Apoiar ou financiar essas armadilhas mortais, sabendo de suas consequências, é uma forma de cumplicidade", afirmou Khalid, citando o governo dos Estados Unidos, que destinou pelo menos US$ 30 milhões ao sistema.
Mesmo aqueles que conseguem obter alimentos retornam com apenas alguns itens básicos, impossíveis de cozinhar sem água ou combustível, recursos que foram praticamente esgotados em Gaza devido ao bloqueio. "Com fome extrema e desnutrição generalizada, muitas famílias nos dizem que não têm mais forças para competir por rações", explicaram as ONGs.
Durante a trégua interrompida por Israel em março, autoridades israelenses denunciaram a UNRWA por facilitar o fornecimento ao inimigo, mas as organizações apontam que a "alternativa letal" imposta pelo governo de Benjamin Netanyahu, com apoio dos EUA, "não protege a população civil nem garante suas necessidades básicas".
A mensagem das organizações também inclui um apelo "urgente" por um cessar-fogo imediato e sustentado que permita a entrada em massa de ajuda humanitária e possibilite mecanismos de responsabilização pelas "atrocidades" cometidas e pela "impunidade sistemática". Exige também a libertação de todos os reféns mantidos pelo Hamas e a libertação daqueles detidos "arbitrariamente" pelas autoridades israelenses.
As alegações coincidem com uma visita a Washington de altos funcionários israelenses, incluindo o Ministro de Assuntos Estratégicos, Ron Dermer, para retomar as negociações sobre um possível cessar-fogo. O Catar, que desempenha um papel fundamental como mediador, reconheceu progresso limitado. "A cessação das hostilidades entre Irã e Israel gerou algum impulso, mas o principal obstáculo é que o diálogo direto entre as partes ainda não foi retomado", disse o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores do Catar, Majed al-Ansari.
Donald Trump afirmou posteriormente que Israel havia aceitado "as condições necessárias" para um cessar-fogo de 60 dias em Gaza, "durante o qual trabalharemos com todas as partes para pôr fim à guerra". "Os catarianos e os egípcios, que trabalharam arduamente para alcançar a paz, apresentarão esta proposta final. Espero, pelo bem do Oriente Médio, que o Hamas aceite este acordo, porque ele não melhorará, mas sim piorará a situação", disse o presidente americano na rede social Truth.
O Chefe do Estado-Maior israelense, Eyal Zamir, afirmou que a ofensiva terrestre está próxima de atingir seus objetivos, enquanto Netanyahu afirmou que, com o "fim da guerra" no Irã, novas oportunidades se abrem para a recuperação dos reféns. O líder do Hamas, Osama Hamdan, declarou não ter recebido mais nenhuma comunicação de Israel. "Estamos comprometidos em alcançar uma trégua que salve nosso povo. Continuamos conversando com mediadores para abrir as travessias de fronteira", disse Hamdan em uma publicação no Telegram na segunda-feira.