27 Mai 2024
Em entrevista ao La Croix, o cardeal Jean-Claude Hollerich criticou a ascensão do populismo na Europa e apelou a ideais europeus renovados que defendam a democracia e a dignidade humana.
A entrevista é de Loup Besmond de Senneville, publicada por La Croix International, 23-05-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
As pessoas se acostumaram à União Europeia, muitas vezes se esquecendo de seus benefícios e da importância de apoiar a democracia, afirmou o cardeal jesuíta Jean-Claude Hollerich, de Luxemburgo.
O cardeal Hollerich, ex-presidente da Comece – a Comissão das Conferências Episcopais da União Europeia, que une as conferências episcopais dos países da União Europeia –, membro do Conselho dos Cardeais e relator do Sínodo sobre o futuro da Igreja, falou com Loup Besmond de Senneville, do La Croix, em uma entrevista na qual pediu a criação de novos ideais europeus, criticou a ascensão do populismo e ofereceu uma visão severa sobre os líderes políticos de hoje.
“O ideal europeu baseava-se parcialmente em uma maioria cristã no continente, reconhecendo um cristianismo esclarecido. Os fundadores da União, especialmente Robert Schuman e Alcide De Gasperi, eram dois católicos convictos. Naturalmente, a sociedade mudou muito nas últimas décadas. Mas, além disso, Schuman e Gasperi eram hommes politiques [homens públicos, estadistas]. Hoje, temos politiciens [políticos]. Os políticos carecem de convicções, eles leem as pesquisas eleitorais e adaptam suas opiniões de acordo com elas”, disse o cardeal Hollerich antes das eleições dos dias 6 a 9 de junho para escolher os novos membros do Parlamento Europeu.
Como analisa a baixa participação eleitoral esperada para as eleições europeias e o fenômeno da retirada dos interesses nacionais em todo o continente?
Nós nos acostumamos com a União Europeia. Já não temos consciência dos benefícios dessa instituição política e da vontade que lhe é subjacente. Como resultado, tendemos a esquecer que a democracia é preciosa e deve ser apoiada. Ao mesmo tempo, o nosso continente está passando por uma crise. Algumas economias estão estagnadas, e há um receio de mudanças econômicas. Obviamente, a Europa e o Ocidente já não estão no centro do mundo. A guerra na Ucrânia revelou isto: o Ocidente não pode criar uma coalisão global contra a Rússia. Em um mundo complexo, o populismo fornece explicações fáceis que repercutem naqueles que temem perder sua identidade.
Há 80 anos, a construção europeia era um projeto explicitamente cristão. Hoje, muitos fiéis e católicos são tentados pelo voto populista, que o senhor denuncia. Como explica isso?
Essa é uma consequência política do declínio do cristianismo e do catolicismo na Europa. É um fato: os cristãos são agora uma minoria na Europa e serão ainda mais nos próximos anos. Politicamente, isso produziu uma falta de ideias.
Você acha que os únicos ideais europeus possíveis são cristãos?
Não, eu não digo isso. Hoje, grande parte da população compartilha ideais como a ecologia. Eu compartilho esses ideais, porque são necessários para salvar a humanidade. Mas outros ideais, como a globalização, são defendidos por uma pequena minoria burguesa, rica e intelectual. Quanto aos vários partidos socialistas, em muitos países, eles começaram a promover reformas societais em vez de reformas sociais. O ideal europeu baseava-se parcialmente em uma maioria cristã no continente, reconhecendo um cristianismo esclarecido. Os fundadores da União, especialmente Robert Schuman e Alcide De Gasperi, eram dois católicos convictos.
Não há Schumans ou De Gasperis hoje?
Francamente, eu não vejo nenhum. Naturalmente, a sociedade mudou muito nas últimas décadas. Mas, além disso, Schuman e Gasperi eram hommes politiques [homens públicos, estadistas]. Hoje, temos politiciens [políticos]. Os políticos carecem de convicções, eles leem as pesquisas eleitorais e adaptam suas opiniões de acordo com eles. Esse é um grande erro que eu vejo tanto em nível nacional quanto europeu. A argumentação política ficou em segundo plano. Hoje, nossos líderes não têm espinha dorsal.
Por meio da Comece, os bispos europeus apelaram ao voto em partidos pró-europeus. Eles estão fazendo a coisa certa?
Se eu tiver de escolher entre dois males relativos, uma Europa imperfeita ou sua ausência, sempre escolherei a União Europeia. Não ter esta União Europeia seria, de longe, a pior opção. Isso não nos impede de olhar criticamente para certos pontos, como um certo conceito de teoria de gênero, que virou moda e é repetida sem saber o que é. Às vezes, sinto que somos governados por funcionários que impõem uma visão que corresponda com sua causa sociológica. Isso é um sinal de uma crise democrática. Em relação ao aborto, é trágico que as sociedades ricas só consigam encontrar a solução de matar crianças em gestação. A história nos julgará. Quanto ao novo pacto migratório europeu, é um desastre. Esquecemos os direitos humanos. É claro que não podemos acolher todos os migrantes. Mas as pessoas sempre devem ser tratadas com o reconhecimento de sua dignidade humana.
Qual deveria ser o ideal da União Europeia hoje?
Deveria ser o de tratar as pessoas com dignidade e dialogar com as outras culturas. Na África, a política francesa foi catastrófica. A Inglaterra não se saiu muito melhor. Hoje, estamos pagando o preço por isso: eles não acreditam mais nos valores europeus. Mesmo assim, continuamos falando com os outros como um professor escolar com seus alunos. Se a Europa continuar assim, será odiada. Não se trata necessariamente de compartilhar as posições dos outros, mas ao menos de reconhecer que a Europa é apenas um ator entre outros.
Estamos assistindo a um aumento de partidos populistas em toda a Europa, inclusive com o consentimento das autoridades religiosas. Como você analisa esse fenômeno?
Alguns líderes religiosos veem o populismo como um meio de salvar a Europa. Acho que eles estão gravemente enganados. Eles ainda acreditam que é papel da Igreja dizer aos políticos o que eles devem fazer. Não entenderam que isso não funciona mais. Os leigos, os batizados, sabem muito bem o que fazer. Eles não precisam que eu lhes diga. Além disso, qualquer coisa social não lhes interessa. Eles parecem apaixonados por questões ligadas à família e à sexualidade. É curioso que muitos clérigos estejam tão interessados na sexualidade. Isso sempre me intrigou. Isso os preocupa muito. É aqui que a União Europeia tem suas deficiências. Assim, eles formam alianças que não são nem saudáveis nem santas. No que diz respeito à Rússia, eu entendo a oposição dela à política ocidental na Ucrânia. Mas é inaceitável que os homens sejam mortos, que as mulheres sejam estupradas e que haja morte e destruição. Nós regredimos. A guerra não é um meio político. A Igreja deveria dizer isso com força.
Você acha que existe o risco de um retorno do fascismo na Europa?
Ele já está aqui. Não quero ofender a Itália, mas o partido no poder é pós-fascista. Isso me assusta, especialmente porque venho de uma família na qual todos faziam parte da Resistência. Quando menino, ouvia histórias sobre a Segunda Guerra Mundial. Faço parte da última geração que ouviu as testemunhas diretas dessa guerra e que foi influenciada e educada por elas.
O cristianismo ainda é um recurso para o projeto europeu?
Precisamos imaginar um novo. A história nos ensina que as minorias, se tiverem ideias claras, podem mudar a história. Olhemos para a Revolução Russa: os soviéticos eram uma minoria na Rússia, mas convenceram o restante da sociedade. O cristianismo tem a força da história. Mas, se ele usar essa força para defender o retrocesso, ninguém vai se interessar. Hoje, o projeto europeu deveria consistir na união para garantir a justiça, a paz e a justiça ecológica. Temos de pôr fim a essa loucura das mudanças climáticas que matará tantas pessoas quanto a guerra. O catolicismo do Vaticano II consegue estabelecer um diálogo. Sem diálogo, não se consegue nada.
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“O cristianismo tem a força da história, mas não deve usá-la para defender o retrocesso.” Entrevista com o cardeal Jean-Claude Hollerich - Instituto Humanitas Unisinos - IHU