Por: André | 03 Novembro 2015
“A nossa afirmação é a seguinte: o Concílio Vaticano II foi embrionariamente a primeira auto-realização oficial da Igreja enquanto Igreja mundial. (...) Aqui, sob a aparência de um desenvolvimento óbvio e gradual, teve lugar algo como um salto qualitativo, mesmo quando esta nova essência da Igreja mundial está ainda amplamente coberta, não apenas “in potencia”, mas também “in actu”, por todas as peculiaridades da velha Igreja ocidental.”
A análise é de Karl Rahner, em artigo publicado por Religión Digital, 20-10-2015. A tradução é de André Langer.
Tratando-se de uma interpretação teológica fundamental do Concílio Vaticano II, consideramos oportuno fazer algumas observações introdutórias para abordar o tema.
Pressupomos, naturalmente, o dado de fato e a convicção de que este Concílio – mesmo com todas as coincidências históricas que acompanham acontecimentos deste gênero – não foi um cúmulo arbitrário de episódios e decisões singulares, mas possui, em todos os seus eventos singulares, uma coesão interna fundamental que não se limita a manter unidos estes últimos pela peculiaridade jurídica formal de um concílio.
Além disso, pouco importa se tal concepção fundamental do Concílio esteve mais ou menos presente em grande medida, com clareza e com urgência, na consciência explícita de seus organizadores.
Se o significado e a essência de certos eventos existencialmente importantes na vida do indivíduo abraçam sempre algo mais do que este objetiva e busca explicitamente na própria consciência, isto se verifica tanto mais no caso de eventos importantes da história da Igreja, que se desenvolvem em medida especificamente única sob a orientação do Espírito Santo.
Em relação às intenções explícitas de João XXIII sobre a assembleia conciliar não sabemos muito mais do que isto: que ele considerou razoável e oportuno convocar um concílio inclusive depois do “papalismo” do Vaticano I, e que quis um concílio “pastoral”. Por esta razão, no entanto, não se disse que, para além disso, não seja possível uma concepção teológica mais profunda e mais ampla.
Nós buscamos uma interpretação teológica fundamental, porque – sem entrar aqui no problema da relação entre teologia e história da Igreja – consideramos que esta última é de um tipo especificamente diferente da história secular e deve, no fundo, descrever precisamente a história da essência da Igreja, essência que, em uma relação de condicionamento recíproco, oferece o princípio hermenêutico da história da Igreja e, enquanto essência na história, manifesta-se nela.
Por difícil mais que seja o assunto e só possa ser esboçado, formulamos imediatamente a ideia fundamental que vamos propor ao abordar a questão, de modo a não perder de vista a conexão das muitas observações e reflexões particulares que vamos fazer.
A nossa afirmação é a seguinte: o Concílio Vaticano II foi embrionariamente a primeira auto-realização oficial da Igreja enquanto Igreja mundial. A tese pode parecer exagerada e são necessárias muitas precisões e explicações para torná-la aceitável. Ela se presta a mal entendidos pelo fato de que a Igreja sempre foi “in potentia” uma Igreja mundial e porque a atualização desta potência requer, por sua vez, um processo histórico mais longo, cujo início coincide com o começo do colonialismo europeu e a missão mundial moderna da Igreja no século XVI, e que, obviamente, não terminou ainda hoje em dia.
Se, ao contrário, olhamos para a ação macroscópica e oficial da Igreja, nos damos conta de que ela, em sua ação concreta – no que diz respeito às suas relações com o mundo extraeuropeu e até mesmo contradizendo a sua essência –, era a ação (sit venia verbo) de uma agência exportadora que divulgava em todo o mundo uma religião europeia, sem uma verdadeira vontade de modificar sua mercadoria, assim como exportava cultura e civilização consideradas superiores.
Então, nos parecerá razoável e justificado considerar o Vaticano II como o primeiro grande evento oficial, no qual a Igreja agiu como Igreja mundial, mesmo quando este acontecimento, naturalmente, tenha tido precedentes, como a consagração de bispos nativos (mas, em grande número apenas em nosso século), a abolição de europeísmos na prática missionária, que foram pavimentados por Roma na disputa dos ritos orientais, etc.
Estes precedentes, que não devem ser silenciados e cuja importância não deve ser minimizada, no entanto, não tiveram repercussões sobre a Igreja europeia-norte-americana; estes efeitos, ao contrário, começam a ser percebidos pelo Vaticano II e realmente são apenas precursores – mesmo quando de maneira muito germinal, incerta e muitas vezes devedora do precedente estilo da Igreja europeia – do que observamos no Vaticano II, no qual começa a ação de uma Igreja mundial enquanto tal com um influxo recíproco entre todas as partes.
Como já dissemos, com esta tese geral sobre a concepção fundamental do Vaticano II não negamos que neste Concílio a atualização da essência da Igreja mundial manifestou-se de maneira ainda muito embrionária e tímida. Nem devemos ocultar que também existem movimentos em sentido contrário.
Por exemplo, esconjurou-se o perigo de que o novo direito canônico, em fase de elaboração em Roma, não será outra vez um direito canônico ocidental e que depois será imposto à Igreja mundial na América Latina, Ásia e África?
As Congregações romanas não têm ainda hoje uma mentalidade de centralismo burocrático, que se atribui saber com propriedade o que é melhor em todo o mundo para a causa do Reino de Deus e a salvação das almas, e que em suas decisões assume como critério óbvio, de maneira tremendamente ingênua, a mentalidade de Roma ou da Itália?
Naturalmente, é necessário admitir que, em tais questões, a europeização da Igreja coloca também problemas teóricos que não têm nada de claro. Deve a moral matrimonial dos masáis na África Oriental ser a simples repetição material da moral do cristianismo ocidental, ou então ali um chefe, mesmo sendo cristão, poderia continuar vivendo de acordo com o estilo do patriarca Abraão? É necessário celebrar a eucaristia com vinho de uva também no Alasca?
Estas questões teóricas e outras similares constituem não em vão sérios obstáculos para a atualização da Igreja mundial enquanto tal. Junto com outros motivos, esses nos fazem entender que a grande atualização oficial da Igreja mundial manifestou-se de maneira ainda relativamente embrionária e tímida no Concílio Vaticano II. Nessa ocasião, durante as missas de abertura das sessões diárias, nos quais se apresentavam os diversos ritos, ainda não foi possível ver nenhuma dança africana.
Enfim, sobre a questão do começo da configuração mundial da Igreja durante o Concílio e depois, é necessário não esquecer que as diversas culturas do mundo, nas quais a Igreja deve se inculturar para ser uma Igreja mundial, estão se transformando numa medida e numa velocidade até agora desconhecidas, razão pela qual não é fácil dizer que material verdadeiramente prometedor estas culturas poderão oferecer à Igreja para fazer dela realmente “ato” da Igreja mundial.
Qualquer que seja a resposta para esta e muitas outras perguntas, não se pode pôr em discussão o fato de que a Igreja no Vaticano II apareceu pela primeira vez, no máximo nível oficial, como Igreja mundial. Consideramos agora de maneira mais concreta este fato, perguntando-nos quais serão as consequências para o futuro.
Em primeiro lugar, o Concílio adotou pela primeira vez o perfil formal de um concílio da Igreja mundial enquanto tal. Basta compará-lo com o Vaticano I para dar-se conta de sua singularidade sob o aspecto jurídico-formal.
Naturalmente, já houve no Vaticano I alguns participantes de sedes episcopais da Ásia e da África, mas tratava-se de bispos missionários de origem europeia e norte-americana. Nesta época não existia ainda um verdadeiro episcopado nativo, que só apareceu no Vaticano II; talvez ainda não nas proporções adequadas em relação ao episcopado Ocidental. Mas esteve presente.
Estes bispos não vieram como simples e modestos visitadores “ad limina” para prestar contas e levar para casa algumas poucas oferendas para as missões. O Vaticano II foi realmente a primeira reunião do episcopado mundial, que não agiu apenas como órgão consultivo do Papa, mas, com ele e sob ele, como suprema instância magisterial e decisória da Igreja. Houve realmente um concílio mundial com um episcopado mundial, cuja existência e função autônoma não se teriam expressado nunca antes enquanto tais.
A importância efetiva do setor não Ocidental deste episcopado universal pode ter sido ainda relativamente modesta; os efeitos do evento conciliar sobre a vida extra conciliar da Igreja podem ter sido muito limitados, como mostram os sínodos romanos de bispos que aconteceram a partir de então. Tudo isto não muda o dado de fato fundamental de que no Concílio apareceu e entrou em cena uma Igreja que não é mais a Igreja do Ocidente com sua expansão nos territórios americanos e suas exportações para a Ásia e a África.
Aqui, sob a aparência de um desenvolvimento óbvio e gradual, teve lugar algo como um salto qualitativo, mesmo quando esta nova essência da Igreja mundial está ainda amplamente coberta, não apenas “in potencia”, mas também “in actu”, por todas as peculiaridades da velha Igreja ocidental.
O salto em direção à Igreja mundial pode ser ulteriormente esclarecido com um olhar sobre os decretos conciliares. A constituição sobre a liturgia poderá ser amplamente superada já hoje em relação ao uso das línguas maternas na liturgia, mas sem aquela e sem o Concílio a vitória da língua materna não teria sido possível. O latim foi a língua literária comum da área cultural Ocidental precisamente no campo profano e por isso, e não por nenhuma outra razão, foi a língua da Igreja Ocidental na liturgia, e continuou sendo com um certo atraso.
O latim não podia, no entanto, continuar sendo a língua litúrgica de uma Igreja mundial, porque era a língua de uma área cultural restrita e particular. A vitória das línguas maternas na liturgia eclesiástica assinala de uma maneira eloquente o futuro de uma Igreja mundial, cujas Igrejas particulares existem de modo autárquico na própria área cultural e estão inculturadas e não são apenas mais uma exportação europeia. Isto evidencia para todos, naturalmente, os novos problemas de uma Igreja mundial, cujas Igrejas locais, não obstante sua necessária referência a Roma, já não podem ser dominadas pela Europa e por sua mentalidade.
Na Gaudium et Spes a Igreja se dá conta expressamente, como Igreja inteira, da própria responsabilidade diante da história da humanidade. Muitas coisas particulares talvez sejam ainda concebidas de uma maneira europeia; em todo o caso, o Terceiro Mundo está presente como parte da Igreja e como objeto de sua responsabilidade. A sensibilização do povo eclesial europeu para a responsabilidade mundial da Igreja poderá se dar com muito cansaço e muito lentamente, mas tal responsabilidade – a teologia política – já não poderá ser erradicada da consciência de uma Igreja mundial.
Porquanto se refere aos decretos doutrinais do Concílio, isto é, àqueles sobre a Igreja e sobre a Divina Revelação, é possível que muitas coisas tenham sido ditas no horizonte de compreensão especificamente europeu e tenham sido considerados problemas que são atuais somente para uma teologia europeia.
Mas, pode-se reconhecer, no entanto, o autêntico esforço por parte destes documentos para encontrar expressões não muito condicionadas pela linguagem de uma teologia neoescolástica mais facilmente compreensíveis em todo o mundo. Como confirmação disto seria necessário comparar os textos definitivos com os respectivos esquemas tardo-escolásticos preparados em Roma antes do Concílio.
Podemos destacar, além disso, que na doutrina sobre o episcopado universal e sobre sua função na Igreja, como também sobre o significado das Igrejas regionais parciais, foram postos e esclarecidos pressupostos doutrinais de fundamental importância para a autocompreensão da Igreja como Igreja mundial. É certamente lícito pensar que o documento sobre a revelação, que faz começar esta última somente com o Antigo Testamento, com “Abraão”, não propõe um conceito de revelação facilmente compreensível nas culturas africanas e asiáticas, ainda mais porque as centenas de milhares de anos entre a “revelação originária” e Abraão permanecem vazios.
Mas também se pode dizer que, sob o aspecto doutrinal, o Concílio fez duas coisas que são de fundamental importância para uma missão em escala mundial: na Declaração sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs abriu pela primeira vez na história do magistério eclesiástico o caminho para uma valorização também positiva das grandes religiões mundiais.
Além da Constituição sobre a Igreja, no Decreto sobre as missões e na Gaudium et Spes proclama também infralapsariamente (para dizê-lo com a teologia escolar) uma vontade salvífica universal e eficaz de Deus que encontra um único limite na má decisão da consciência humana e em mais nada.
Admite, assim, a possibilidade de uma fé salvífica verdadeira e própria também fora da revelação verbal cristã, de modo que foram postas as premissas fundamentais para a missão mundial da Igreja, as quais não existiam na teologia precedente.
Neste contexto deve-se ver, também, a Declaração sobre a liberdade religiosa, na qual a Igreja, na pregação de sua fé em todas as situações em todo o mundo, renuncia expressamente a qualquer meio de poder que não resida na força mesma do Evangelho. Todos conhecem o grande obstáculo que a divisão confessional da cristandade representa também para a difusão do cristianismo nas assim chamadas “terras de missão” e em todo o mundo.
Por isso, todas as atividades ecumênicas iniciadas pelo Concílio, ou por este aprovadas ou patrocinadas, deverão ser valorizadas como sua contribuição para o futuro do cristianismo como uma religião mundial. Em suma: no Concílio, a Igreja começou a trabalhar doutrinariamente como Igreja mundial, ao menos de modo germinal. Sob o fenótipo de uma Igreja em grande medida europeia e norte-americana, se podemos falar assim, começa a tornar-se perceptível o genótipo de uma Igreja mundial como tal.
Mas, talvez, possamos abordar de uma maneira ainda mais profunda o evento deste futuro “mundial” da Igreja. Na historiografia eclesiástica, bate-se continuamente cabeça sobre a questão de uma divisão teologicamente adequada da história da Igreja. A divisão da história europeia em história antiga, medieval e moderna não oferece um esquema teologicamente adequado para a história da Igreja.
Deixemos, naturalmente, de lado as questões de uma ulterior subdivisão em cada uma das grandes épocas. Além disso, no que diz respeito à história geral e mais ainda à história eclesiástica, estamos convencidos de que nos períodos cronológicos singulares não acontecem sempre coisas iguais sob o aspecto qualitativo e quantitativo, mas que um período cronologicamente breve pode esconder em si uma grande época histórica.
Postas estas premissas, afirmamos: do ponto de vista teológico existem na história da Igreja três grandes períodos, o terceiro dos quais apenas começou e se manifestou em nível oficial no Vaticano II. O primeiro período, breve, foi o do judeu-cristianismo; o segundo, da Igreja existente em áreas culturais determinadas, a saber, na área do helenismo e da cultura e civilização europeia. O terceiro período é aquele no qual o espaço vital da Igreja, em princípio, é o mundo inteiro.
Estes três períodos, que indicam três situações fundamentais, essenciais e diferentes entre si, do cristianismo, de sua pregação e da Igreja, podem naturalmente ser subdivididos por sua vez de maneira mais profunda; assim, por exemplo, o segundo período contém as cesuras representadas pela transição da antiguidade para o período medieval e a transição da cultura medieval para a época do colonialismo europeu e do iluminismo. A este propósito seria necessário esclarecer as causas de tais cesuras, causas múltiplas e, contudo, conectadas entre si.
Em todo o caso, na minha opinião, a tríplice subdivisão da história da Igreja é em si teologicamente justa, mesmo que o primeiro período tenha sido muito breve. O período judaico-cristão (junto com suas irradiações por meio do proselitismo judaico e o fenômeno dos “tementes a Deus, dos eusebómenoi, mencionados por Paulo, pelos Atos dos Apóstolos e pela literatura propagandística judaica) está, de fato, caracterizado por esta propriedade única e particular: sua situação histórica cultural é a do evento salvífico cristão fundamental, isto é, da morte e ressurreição de Cristo e da pregação deste evento dentro de sua própria situação histórica, pregação em Israel e para Israel, e não em uma situação histórica diferente.
O fato de que precisamente sobre esta base tenha sido possível pensar em uma missão entre os pagãos, nos diz que aquilo que Paulo inaugurou – a passagem de um cristianismo judeu a um cristianismo dos pagãos – não é algo teologicamente óbvio, mas o início de um período radicalmente novo na história da Igreja; introduz um cristianismo que não é exportação do cristianismo judaico na diáspora, mas – não obstante toda a sua referência ao Jesus da história – um cristianismo que cresceu no terreno do paganismo como tal. Sei que falo de maneira vaga e obscura.
Mas, penso que isto se deve ao fato de que os problemas teológicos ínsitos na passagem do cristianismo judaico para o cristianismo dos pagãos não são, certamente, simples como se acredita, e sua dificuldade teológica ainda não foi bem elaborada, razão pela qual ainda não é claro de maneira reflexa aquilo que Paulo “causou” quando declarou supérflua para os não judeus (e talvez apenas para eles) a circuncisão e tudo aquilo que lhe era conexa.
Seja qual for o caso, se pensamos em uma subdivisão precisa e genuinamente teológica da história da Igreja em seus episódios fundamentais, aquela proposta me parece que é a única apropriada. Ela significa que na história do cristianismo a passagem de uma determinada situação histórica e teológica para uma situação essencialmente nova verificou-se apenas uma vez e começa agora a realizar-se pela segunda vez na passagem do cristianismo europeu (com seus anexos americanos) para a religião mundial atual.
Podemos, naturalmente, aventurar esta afirmação apenas se considerarmos a passagem do cristianismo pagão antigo do Mediterrâneo para o cristianismo europeu medieval e moderno como menos drástica do ponto de vista teológico das duas cesuras acima mencionadas. Mas isto parece sem dúvida justificado, dada a unidade da cultura mediterrânea helenístico-romana e sua transmissão aos povos germânicos, coisa que não temos aqui necessidade de fundamentar mais detalhadamente.
Se o que dissemos está em alguma medida correto, disso resulta uma dupla questão: em que consiste, mais especificamente, a característica teológica e não apenas histórico-cultural de uma passagem de ruptura similar? O que resulta disso se aplicarmos a teologia desta passagem à passagem na qual nós vivemos hoje e que tem no Vaticano II uma espécie de início oficial?
No que diz respeito à primeira questão, podemos dizer que se trata de um evento realmente relevante do ponto de vista teológico e histórico-salvífico, e não apenas na perspectiva histórico-cultural.
No caso de Paulo, parece-me evidente: a abolição da circuncisão para os cristãos provenientes do paganismo – uma abolição certamente não prevista por Jesus e não dedutível de maneira obrigatória de sua pregação explícita e do significado salvífico de sua morte e ressurreição – é, para Paulo, um princípio que faz parte do seu Evangelho e de alguma maneira representa uma revelação.
É a interrupção de uma continuidade histórico-salvífica que o homem não pode realizar por seu próprio poder. Surge assim o problema propriamente teológico que nem Paulo refletiu de medida adequada: o que ainda pode e deve permanecer da história da salvação vétero-testamentária e da Igreja, uma vez suprimida a circuncisão, que para cada hebreu constituía o dado último de sua existência salvífica e que segundo o próprio Paulo podia, mais ainda, devia continuar vigente para os judeu-cristãos de seu tempo?
Também para ele esta passagem significa realmente uma cesura no sentido literal do termo. Além disso, é necessário refletir que aquilo comportava ainda muitas outras abolições e interrupções da continuidade histórico-salvífica: a abolição do sábado, o deslocamento do centro da Igreja de Jerusalém para Roma, modificações profundas na doutrina moral, surgimento e adoção de novos escritos canônicos, etc.
Interrupções a propósito das quais podemos dizer que para nós é indiferente saber se elas remontam a Jesus ou apenas a Paulo, ou se aconteceram de algum modo e em algum lugar no período apostólico.
Do momento em que hoje – talvez diferentemente da teologia patrística e medieval – não existe uma teologia clara e refletida sobre esta cesura, sobre este novo início do cristianismo promovido por Paulo, e do momento em que aquela poderia talvez ser elaborada pouco a pouco em um diálogo com a sinagoga, ninguém irá querer irritar-se comigo se não estou em condições de dizer mais a respeito, além das indicações expressadas.
No entanto, atrevo-me a propor uma tese: pela primeira vez, vivemos hoje novamente em um tempo de cesura como aquela que se verificou na passagem do cristianismo judaico para o cristianismo dos gentios.
Pode-se propor esta tese definindo a partir dela o significado do Vaticano II, no qual a Igreja teria proclamado – mesmo de maneira apenas inicial e pouco clara – a passagem de uma Igreja Ocidental para uma Igreja mundial, no sentido de que até agora teria se verificado uma primeira e única vez no momento em que a Igreja dos judeus chegou a ser a Igreja dos pagãos? Penso que se pode e se deve responder afirmativamente a esta questão.
Com isto não está dito que as duas cesuras e as duas passagens são simplesmente idênticas do ponto de vista do conteúdo. Nenhum evento histórico acontece duas vezes. E se alguém estivesse convencido de que a cesura inaugurada por Paulo teve características teológico-formais únicas e que, portanto, a passagem da Igreja mundial não é em absoluto comparável à passagem do cristianismo do judeu Jesus ao cristianismo de Paulo, eu certamente não iria contradizê-lo.
Não duvido que tais passagens em grande parte e em última instância ocorrem de uma maneira irrefletida, sem que sejam primeiro pensadas mediante planificações teológicas para somente depois serem realizadas. Elas acontecem de maneira irreflexa a partir de um instinto secreto do espírito e da graça, embora não seja necessário depreciar e considerar supérfluas as reflexões que se imponham a seu respeito. Mas, feitas estas reservas, afirmo e defendo a tese acima enunciada.
Considero que a diferença entre a situação histórica do cristianismo judaico e a situação na qual Paulo implantou o cristianismo como numa nova criação radical não é maior que a diferença que pode haver entre a cultura ocidental e as culturas da Ásia e da África nas quais hoje o cristianismo deve inculturar-se caso queira chegar a ser realmente uma Igreja mundial, como já começou a ser.
As diferenças atuais podem, de alguma maneira, ser ocultadas pelo fato de que também sobre as outras culturas se estende uma camada niveladora da cultura industrial e racional da Europa e dos Estados Unidos, de modo que se poderia ter a impressão que o cristianismo continua chegando a todo o mundo como um produto de exportação, sempre acompanhado pelas ambíguas bênçãos do Ocidente.
Mas, mesmo abstraindo do fato de que também na antiguidade existia algo análogo – isto é, a diáspora universal dos hebreus com seu proselitismo (e o fenômeno dos “tementes a Deus” que o tornava possível), sobre cuja base teria sido possível exportar para todas as partes um cristianismo judaico –, a história das missões na era moderna demonstra, feitas algumas exceções relativamente pequenas, que o cristianismo, enquanto produto de exportação ocidental, não conseguiu ter êxito entre as culturas superiores do Oriente e no mundo do Islã.
Não conseguiu chegar ali porque era um cristianismo ocidental e quis estabelecer-se como tal, sem aventurar um novo início real interrompendo certas continuidades para nós óbvias, como demonstram as várias questões dos ritos, a exportação do latim do culto litúrgico para países onde a língua latina não foi uma realidade histórica, a obviedade com que se quis exportar o direito romano ocidental com o direito canônico, a ingênua obviedade com que se quis impor até os detalhes a moral burguesa do Ocidente a homens de culturas estrangeiras, no que se revelou como rejeição das experiências religiosas de outras culturas, etc.
As coisas são, portanto, assim: ou a Igreja vê e reconhece estas diferenças essenciais das outras culturas, no seio das quais deve chegar a ser Igreja mundial, e desse reconhecimento tira as consequências necessárias com audácia paulina, ou então permanece como uma Igreja ocidental, afinal de contas traindo desta maneira o sentido que teve o Vaticano II.
Chegamos à segunda pergunta: o que quer dizer, mais concretamente, o que significa atribuir um significado semelhante ao Vaticano II? É difícil dizê-lo. Em primeiro lugar, porque a segunda cesura – aquela que abre à Igreja mundial – é, ou naturalmente deve chegar a ser, totalmente diferente do ponto de vista material ou do conteúdo que a primeira, que levou à Igreja dos pagãos da antiguidade e do período medieval.
Em segundo lugar, porque é uma questão em aberto e pouco esclarecida se a Igreja ainda possui, e em que medida, no período pós-apostólico, as capacidades e os poderes criativos que possuía no período de seu primeiro futuro, isto é, na era apostólica; poderes então atualizados com decisões fundamentais irreversíveis ou aparentemente tais, constitutivas de sua essência concreta para além daquilo que lhe compete por disposição direta e efetiva de Jesus ressuscitado.
A questão em aberto é a seguinte: se a Igreja em tais cesuras históricas, que foi assinalado por nós como segunda, pode exercer legitimamente possibilidades, das quais nunca fez uso durante o segundo grande período porque teria carecido de sentido nesse período e, portanto, de legitimidade.
Em terceiro lugar, porque, não obstante toda a futurologia moderna, ninguém está em condições de prever com segurança o futuro profano que a Igreja deve enfrentar na nova interpretação de sua fé e de sua essência enquanto Igreja mundial. Neste sentido, o Vaticano II é, naturalmente, apenas uma indicação abstrata e formal do que a Igreja como Igreja mundial enfrenta como tarefa. Tentamos, em todo o caso, dizer algo sobre a imagem desta Igreja mundial e sobre a tarefa que aguarda por ela.
Considero que isto retorna em nossas reflexões, porque uma interpretação teológica da essência fundamental do Vaticano II, no fundo, certamente deve ser projetada partindo da causa finalis, isto é, do futuro da Igreja, pelo qual o próprio Concílio foi declarado.
A primeira coisa que é preciso considerar é a pregação cristã. Ninguém de nós está em condições de dizer com precisão com que conceitos, sob quais novos aspectos, a antiga mensagem do cristianismo deverá ser pregada, no futuro, na Ásia, na África, nos países do Islã e talvez também na América Latina, a fim de que essa mensagem esteja realmente presente em todas as partes do mundo.
Devem ser esses mesmos povos e culturas os que devem descobrir isso pouco a pouco, sem que isto se limite naturalmente a uma proclamação formal da necessidade destas novas formas de pregação, e sem que seja possível a estes povos deduzi-la simplesmente da análise por sua vez problemática da própria índole específica.
Esta tarefa, cuja solução ainda não foi encontrada e não cabe a nós europeus propriamente encontrar, comportará necessariamente, atendendo à hierarquia das verdades recordadas pelo Concílio, um retorno à substância fundamental última da mensagem cristã, para depois formular, a partir disso, de um modo novo e com uma criatividade desenvolta, a totalidade da fé cristã em correspondência com as diversas situações históricas.
Essa redução à substância fundamental última enquanto primeiro passo para uma reformulação de todo o conteúdo da fé não é fácil. Com este propósito deverão ser retomadas as tentativas realizadas nos últimos anos para encontrar fórmulas fundamentais da fé, e será, além disso, necessário perguntar-se – o que ainda não se fez – se existe um critério formal para estabelecer o que pode pertencer e o que não, originariamente, a uma revelação sobrenatural em sentido estrito.
Uma vez realizada esta tarefa, disso resultaria um pluralismo de pregações, o verdadeiro pluralismo, que é muito mais importante que um pluralismo de pregações e de teologias dentro da Igreja ocidental. Posto que fundamentalmente todos os seres humanos podem falar e entender-se com todos, tais pregações não seriam simplesmente realidades díspares.
Poderiam criticar-se e enriquecer-se reciprocamente, mas, no entanto, cada uma seria uma individualidade histórica, finalmente incomensurável em relação às outras. O que colocará o problema de como manter e consolidar uma unidade da fé frente a tantas diversas pregações; de como a instância eclesial suprema residente em Roma poderia agir com esta finalidade, no momento em que isto é claramente uma tarefa inteiramente diversa daquilo que foi ensinado até agora pela autoridade magisterial romana no interior de um horizonte de compreensão Ocidental comum.
Com frequência se advertiu que necessitamos de um similar pluralismo de liturgias, o que não pode consistir somente no uso das várias línguas maternas.
É obvio também que nas grandes Igrejas particulares deve desenvolver-se um notável pluralismo naquilo que diz respeito ao direito eclesial (e também outras práticas eclesiais), e isto também abstraindo do fato de que de outro modo não poderemos esperar passos concretos para a unidade no campo ecumênico. Naturalmente, todas estas são afirmações formais e abstratas, que dizem pouco da forma concreta da Igreja mundial futura. Mas é possível dizer mais?
Vamos concluindo. Nossas reflexões tinham a intenção de se ocupar apenas da questão de como interpretar teologicamente o Concílio Vaticano II. Tratamos de tornar compreensível que este foi o evento da história da Igreja em que a Igreja mundial começou a trabalhar timidamente enquanto tal.
Procuramos esclarecer, com algumas reflexões problemáticas, que se tornar uma Igreja mundial não significa simplesmente um crescimento quantitativo da Igreja precedente, mas que comporta uma cesura teológica na história da Igreja, cesura ainda não refletida claramente, que praticamente só pode ser comparada à passagem do cristianismo judaico ao cristianismo dos gentios; cesura que viu Paulo como protagonista, sem que deva entender-se que Paulo tenha refletido de maneira teologicamente adequada sobre ela.
É tudo quanto nos propúnhamos a dizer. Quanto ao demais, nos limitamos a dar algumas indicações gerais, de um modo pouco sistemático e ordenado, assinalando problemas que apenas foram vislumbrados pela teologia tradicional.
Para terminar, chamamos a atenção para uma peculiaridade do Vaticano II, à qual já me referi em outro momento e sobre a qual não é o caso de se alongar. Ao menos na Gaudium et Spes o Concílio adotou de maneira não refletida um modo de afirmar que não tem nem o caráter de um ensinamento dogmático sempre válido, nem de uma disposição canônica, mas que pode talvez ser interpretado como afirmações de “instruções”, como apelações (em uma doutrina das afirmações oficiais eclesiásticas que ainda não existe de maneira explícita, porque só conhecemos propriamente afirmações doutrinais e disposições eclesiais oficiais e mandatos).
Terá este gênero de afirmações mais importância no futuro? Em base a que premissas poderão estas instruções ser eficazes? Aqui não podemos aprofundar estas questões, mesmo quando estas seriam apropriadas para contribuir para a resposta à questão sobre qual foi a peculiaridade teológica deste Concílio.
Finalmente, formula-se expressamente ou repete-se algo: o Concílio foi, com e sob o Papa, o sujeito ativo dos poderes supremos da Igreja em todas as direções desses poderes. Isto é evidente, foi ensinado expressamente e, basicamente, não foi negado por Paulo VI.
O modo, no entanto, como tal poder supremo, detido “só” pelo Papa e pelo Concílio, possa existir e ser operacional em dois sujeitos ao menos parcialmente diversos não foi realmente esclarecido no plano teórico, nem está claro na prática qual seja o significado atual permanente que possa ter o fato de que todo o colégio episcopal com e sob o Papa, mas realmente junto com o Papa, é o órgão diretor colegial supremo da Igreja.
O significado sempre atual deste princípio constitutivo colegial da Igreja permaneceu até agora pouco claro, e no período pós-conciliar teve um novo retrocesso com Paulo VI. Mudará João Paulo II algo a este respeito? Em uma verdadeira Igreja mundial algo assim é uma coisa necessária, porque uma Igreja mundial não pode ser governada simplesmente mediante o centralismo romano, como aconteceu na época anterior ao Concílio.
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Interpretação teológica fundamental do Concílio Vaticano II. Artigo de Karl Rahner - Instituto Humanitas Unisinos - IHU