Os caminhos para a santidade e a ética teológica segundo James Keenan

Foto: pine watt | Unsplash

17 Junho 2023

A história da ética teológica católica de James Keenan revela seu compromisso com a consciência histórica, a prática pastoral e a inclusão.

O comentário é de Michael Hollerich, professor emérito de História do Cristianismo da University of St. Thomas, no Minnesota, Estados Unidos. O artigo foi publicado por La Croix International, 14-05-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o artigo.

Em uma rixa recente e altamente pública na Igreja Católica nos Estados Unidos, o bispo Thomas Paprocki, de Springfield, Illinois, levantou a questão da heresia devido a seu desgosto em relação aos apelos por uma maior inclusão eucarística para pessoas gays, lésbicas e transgênero, ou divorciadas e casadas novamente. Seu alvo não identificado era o cardeal Robert McElroy, bispo de San Diego, de quem o bispo Paprocki cita um artigo na revista America. O cardeal McElroy respondeu repetindo sua objeção ao ensino moral tradicional de que todo pecado sexual é objetivamente um pecado mortal. Esse foi o gatilho para a acusação de heresia.

O princípio em si mesmo – de que todo pecado sexual é um pecado mortal – não pareceria chocante para os católicos estadunidenses que frequentaram as escolas paroquiais nos anos 1950. “Mortal” significava a ruptura do relacionamento da alma com Deus e sua condenação eterna se seus pecados permanecessem sem arrependimento antes da morte. Acontece que, menos de um mês depois de me deparar com essa discussão, encontrei a mesma declaração na página 260 do livro aqui em resenha, “A History of Catholic Theological Ethics”, de James Keenan: “Todos os pecados de impureza de qualquer tipo ou espécie são mortais em si mesmos”.

Catecismo de Baltimore

A fonte para isso (nota final 98, p. 384) não era clara, de modo que procurei onde alguém da minha geração a encontraria: no Catecismo de Baltimore. E aqui está ela, no “Baltimore Catechism #3: Fr. Connell's Confraternity Edition”, destinada aos crismados ou aos estudantes do Ensino Médio da época, autorizada em 1949 pela Confraternity of Christian Doctrine. Essa edição era uma revisão do Catecismo de Baltimore original, feito pelo professor Francis Connell, da Universidade Católica dos Estados Unidos, publicado pela editora Benzinger Bros. em 1949 e 1952 (o “Baltimore Catechism #3” era um dos quatro níveis apropriados para a idade, de acordo com o artigo da Wikipédia sobre o catecismo). Cito a partir do site Archive.org:

Pergunta 256. O que o sexto mandamento proíbe?

O sexto mandamento proíbe toda impureza e imodéstia em palavras, olhares e ações, seja sozinho ou com outros.

(c) Imodéstia é qualquer pensamento, palavra ou ação deliberada que tende à impureza.

(d) Quando há total deliberação em qualquer pecado de impureza, é um pecado mortal. A imodéstia pode ser um pecado mortal ou venial, dependendo do maior ou menor perigo de impureza a que tende, do grau de escândalo e da intenção do pecador.

A análise do Pe. Connell sobre a gravidade dos pecados contra o sexto mandamento relaxa o absolutismo da citação original. Mas o princípio em si mesmo é reafirmado: qualquer pecado totalmente deliberado de impureza é mortal.

Começo dessa forma não para atacar, mais uma vez, as carências pedagógicas da catequese pré-conciliar. O Catecismo de Baltimore é um alvo fácil, que causou sua parcela de danos, embora este resenhista ache que ele também teve seu lado redentor. Começo a partir dele porque ele oferece um caminho direto para A History of Catholic Theological Ethics.

O jesuíta estadunidense James Keenan, e a capa do seu novo livro “A History of Catholic Theological Ethics” (Foto: Divulgação | Boston College)

James F. Keenan, SJ é professor da cátedra Canisius de Teologia, diretor do Jesuit Institute e pró-reitor de engajamento global no Boston College. É o prolífico autor e editor de mais de duas dezenas de livros, dezenas de artigos e capítulos de livros, editor de duas coletâneas acadêmicas e fundador da Catholic Theological Ethics in the World Church. Essa última distinção tem sido o foco de suas energias nos últimos anos e o local onde essa ampla pesquisa chega à conclusão. O livro é uma recapitulação de suas três décadas e meia de serviço notavelmente produtivo e criativo à Igreja e à academia teológica. Ele revela seu compromisso com a consciência histórica, com a interdisciplinaridade, com a prática pastoral, com a bioética e as questões relacionadas à sexualidade e ao gênero, e com uma inclusão global.

Apesar de sua escala ambiciosa, o livro se adapta facilmente ao leitor por pelo menos três razões.

O primeiro é seu estilo descontraído e discursivo. Ouvimos a voz de um escritor que é claramente um professor, solidário e encorajador, em vez de dominador e presunçoso. Ele explica desde o início que o livro nasceu após 33 anos de ensino: “Estou acolhendo você em minha sala de aula”. Ele é um analista caridoso, até mesmo de textos cujas obsessões com o controle espiritual e a intimidação podem irritar muitos leitores. As 80 páginas de notas finais explicam quanta leitura e estudo foram necessários para a segurança dessa voz. Um terço dessas páginas de notas finais são do oitavo e último capítulo do livro “Moral Agency for a Global Theological Ethics” – uma indicação da energia e da atenção do autor nos últimos 12 anos e mais.

Em segundo lugar, Keenan tem uma linha narrativa forte e um argumento que ele reitera do começo ao fim. A história que ele conta é o modo como a consciência do pecado gradualmente capturou a consciência católica e tomou como refém a mensagem primordial do Evangelho, que não é a convicção do pecado, mas sim o chamado ao discipulado: “Essa classificação inicial de tais pecados graves tornou-se, penso eu, o começo de um erro terrível, pois, ao longo do caminho, perdemos o sentido do significado evangélico do pecado como o fracasso em se preocupar em amar”.

Entre Trento e o Vaticano II

Keenan examina detalhadamente os manuais de teologia moral que moldaram a vida católica e a formação da consciência durante todo o período entre Trento e o Vaticano II. Mas, mais importante do que eles – ou os penitenciais do monasticismo irlandês, ou o regime disciplinar da Igreja primitiva, ou as práticas confessionais da Idade Média –, são aqueles que Keenan chama de “caminhos para a santidade”, o chamado positivo à bondade e ao discipulado, que é a verdadeira mensagem de Jesus:

Em vez do período patrístico como fundante para uma ética orientada ao pecado que se manifestou nos penitenciais e na prática da confissão auricular, proponho que, desde o início da Igreja, os membros buscaram caminhos rumo ao sagrado, e a confissão do pecado e a preocupação com essa questão eram apenas uma parte do caminho para a santidade, e não o foco geral do período patrístico ou medieval.

Essa é uma grande reivindicação, e Keenan se baseia muito dela. O capítulo três – com 55 páginas, o segundo mais longo do livro – nos conduz ao longo de 12 séculos de história, para defender que o perdão dos pecados era apenas um estágio do crescimento do cristão na vida moral, entendido como o cultivo das virtudes e o evitamento dos vícios, seguindo exemplos de vida moral. Havia, diz ele, um certo dinamismo que sempre impulsionava o cristão cada vez mais longe.

Desde o início, o cristianismo teve o instinto, como na morte do diácono Estêvão, de viver além das expectativas, de ir além, rumo à terra da santidade, como fez Antônio, quando, aos 19 anos, entrou no deserto no terceiro século (...) a linha entre a vida moral e a vida da santidade simplesmente não é encontrada ou traçada.

Embora Keenan não o diga explicitamente, parece que ele escolheu essa expressão dos “caminhos para a santidade” a fim de desfazer a ideia profundamente arraigada de que existe um caminho privilegiado que sanciona aqueles que se consideram árbitros do restante que não se considera – enquanto, na realidade, todos estão em uma jornada rumo ao mesmo objetivo, embora não pelas mesmas rotas ou no mesmo ritmo. Acho que essa é o seu modo de incorporar o “chamado universal à santidade” defendido pelo Concílio Vaticano II a fim de aprofundar a dignidade do laicato e superar a lacuna laical-clerical, frequentemente baseada na pretensão de vincular ou de absolver.

Heróis teológicos

Em terceiro lugar, Keenan anima sua narrativa com uma galeria de retratos nitidamente definidos de seus heróis favoritos da tradição teológica. Em seu Prefácio, ele observa uma preferência pelos “inovadores” em vez dos “grandes realizadores” que se basearam nos primeiros passos dados pelos inovadores. Lá estão Pedro Abelardo, que para Keenan é um herói da consciência: “Não há nenhum pecado, exceto contra a consciência”, do livro inacabado de Abelardo “Scito te ipsum” (Conhece-te a ti mesmo). Heloísa também é um destaque, por seu pensamento sobre a intencionalidade.

Tomás de Aquino recebe 14 páginas generosas, com uma atenção especial ao modo como ele moldou a tradição que herdou de Agostinho (que não está entre os heróis de Keenan), ao incorporar a teleologia da natureza humana de Aristóteles e, assim, abrir a possibilidade do pagão virtuoso (em 1992, Keenan publicou um livro intitulado “Goodness and Rightness in Thomas Aquinas’ Summa Theologiae”, baseado em um curso que ele ministrou).

Livro de Keenan sobre a Suma Teológica de Tomás de Aquino (Foto: Divulgação)

Tem Erasmo, celebrado por sua “espiritualidade distintivamente leiga e não monástica, que poderia abranger todos os cristãos”. Tem o filósofo escocês John Mair ou Major (1467-1550), autor da “primeira obra totalmente bem-sucedida de casuística na Europa”, que também é fruto de “uma forma muito tardia de escolasticismo”.

As páginas sobre Erasmo são algumas das mais frescas e animadoras do livro: “A vida moral não era mais entendida pelo cristão devoto como a simples evitação do pecado”. Keenan equipara Inácio de Loyola com Erasmo: ambos tinham um foco cristocêntrico, acreditavam na primazia da consciência do indivíduo e privilegiavam o espiritual sobre o moral.

Keenan também inclui o dominicano espanhol Francisco de Vitória, por sua adaptação da lei natural para reconhecer aquilo que hoje é chamado de direito internacional, que afirma os direitos de todas as pessoas, em virtude de serem humanas, ao seu próprio domínio legítimo – neste caso, contra o engrandecimento espanhol. Keenan equipara Francisco de Vitória com Bartolomeu de las Casas, o arrependido padre-colonialista que se tornou o grande defensor dos indígenas, crítico da evangelização em massa e forçada, e cronista das atrocidades espanholas.

Depois, está Afonso de Ligório, fundador dos Redentoristas, confessor humanista e reformador da teologia moral (Keenan não me convenceu muito sobre ele, mas, no que diz respeito à pregação missionária, talvez a classificação em curva seja o melhor que se possa esperar).

Quando Keenan chega ao seu último capítulo sobre a ética teológica global, o desfile de nomes de todo o mundo torna-se um pouco estonteante e um testemunho impressionante da catolicidade contemporânea – para invocar um termo muito antigo – da ética teológica, para além de todas as fronteiras de nação, língua e gênero.

Probabilismo, probabiliorismo e equiprobabilismo

A quem se destina esse livro e o que seus leitores ganharão com ele? Já elogiei a legibilidade do livro. Eu o chamaria de um livro didático de alto nível, embora se presuma um certo nível de educação teológica. Keenan ajuda o leitor ao manter contato com fontes primárias e destacando trabalhos específicos para citações e discussões extensas. E ele é franco e elogioso sobre a literatura secundária em que se baseia e que recomenda.

Ele parece mais seguro na longa seção sobre a tradição manualista após o Concílio de Trento (capítulo cinco) e a extensão dessa discussão no capítulo sete, com a morte do manualismo no furor provocado pela Humanae vitae – e sua ressurreição em novas vestes na longa reação ao Vaticano II que agora se deparou com o pontificado de Francisco. As discussões de Keenan sobre a origem, o desenvolvimento e o declínio da casuística nos séculos XVI e XVII são fascinantes.

Assim como a sua cobertura das tendências jurídico-morais como o “probabilismo”, defendido especialmente pelos jesuítas, e o “probabiliorismo” rigorista e principalmente dominicano que ele provocou como reação, que, por sua vez, inspirou o “equiprobabilismo” de Ligório e dos redentoristas. A defesa do probabilismo encontrada na página 198 e atribuída ao jesuíta Thomas Slater, do início do século XX, dá um novo significado ao termo “jesuítico”. Keenan dá seu veredito seco sobre o manualismo na conclusão do capítulo cinco: “Não é de se admirar que, durante quase quatro séculos, os católicos ficaram fascinados pelo princípio do duplo efeito. Eles não tinham mais nada com o que trabalhar”.

Os leitores de Keenan apreciarão o passeio no capítulo oito pela ética teológica contemporânea em todo o globo. Achei humilhante ver quão poucos nomes fora da América do Norte e do Sul eu reconhecia. Keenan encontra duas características unificadoras em toda essa diversidade: a forma como a atenção agora se volta para o local e para o particular, em vez do universal (como era tradicionalmente concebido); e o foco no sofrimento – não mais visto como um problema de teodiceia (por que um Deus bom e onipotente permite o sofrimento?), mas de responsabilidade humana: por que toleramos ou contribuímos com condições e estruturas que são causas contingentes de imenso sofrimento ao redor do mundo? Os registros de sofrimento vão desde a degradação ambiental e as mudanças climáticas até à guerra, à discriminação de gênero, ao racismo e à pobreza.

A exaustão que se sente depois de ler esse capítulo pode nos levar a uma crise de fadiga e de resignação – e talvez a nos perguntar se tanta conversa sobre o sofrimento alheio pode se tornar uma verdadeira história: viagens, conferências, publicações, palestras, como uma realidade ersatz. Mas, depois, lembramo-nos do testemunho daqueles e daquelas que morreram agindo para aliviar o sofrimento alheio – e da indignação do Papa Francisco diante do “pecado da indiferença”, proferida após o afogamento de refugiados africanos no Mediterrâneo.

Nesse livro, os leitores não terão uma discussão substancial de questões específicas, embora algumas sejam preferidas para fins ilustrativos – por exemplo, a usura e a contracepção. Keenan deixa em grande parte a mestres como o falecido juiz John T. Noonan Jr. a área extremamente importante da interseção institucional entre lei, moral e religião. Acho que a educação e as escolas sequer são mencionadas. Considerando o quão centrais e até mesmo obsessivas elas têm sido no ensino católico moderno, essa é uma lacuna reveladora. Basta considerar o quanto elas ocuparam as obras publicadas de alguém como John Courtney Murray – ou dos jesuítas em toda a sua história. A guerra e até mesmo a guerra nuclear não recebem uma atenção significativa. O colonialismo e o império, por outro lado, são bem abrangidos.

Tampouco é uma obra de história, no sentido normal. O tratamento dado ao cristianismo primitivo parece um pouco desencarnado, apesar da atenção de Keenan ao “corpo”. Era algo necessariamente tópico e adaptado para atender ao compromisso do autor com a importância da misericórdia sobre o pecado como motivos governantes. Mas não era o cristianismo primitivo dos primeiros 200 anos ou a instituição desenvolvida nos 400 anos seguintes com os quais eu estava familiarizado. Eu também gostaria de ouvir mais sobre as mudanças nas condições sociais e culturais nas quais os casuístas e os manualistas ensinavam – a preocupação do início da era moderna com a certeza e a credibilidade, conforme revelado na obra da historiadora Stefania Tutino ou do estudioso jesuíta Michel de Certeau, ou o crescente poder da “confessionalização” na divisão da cristandade ocidental.

Período moderno

Até que ponto o desenrolar da cristandade no período moderno moldou o modo como e aquilo que os moralistas ensinavam? O livro “Catholics and Contraception: An American History”, de Leslie Woodcock Tentler (2005), mostra brilhantemente como o aumento da educação (especialmente das mulheres) em princípio estimulou a recepção católica estadunidense do ensino da Igreja sobre a contracepção (na forma modificada permitida por Pio XII depois de 1951) e depois levou à rejeição do ensino da Igreja após a promulgação da Humanae vitae.

Livro "Catholics and Contraception: An American History", de Leslie Woodcock Tentler (Foto: Divulgação)

Por outro lado, Keenan é bastante franco ao dizer que não escreveu uma obra de história como tal nem pretende ser abrangente. No entanto, ele tentou pensar historicamente. E ele está perfeitamente ciente (com pleno conhecimento do trabalho de pessoas como Noonan) de como o ensino teve que mudar para acomodar novas condições, evitando o relativismo banal da “ética da situação” que alguns propagaram duas gerações atrás. Em poucas páginas bem concebidas, ele defende a famosa consciência histórica formulada por Bernard Lonergan, que incorpora a experiência como uma apropriação pessoal crucial de um horizonte moral objetivo à medida que emerge com o tempo. Seus três exemplos da adoção jesuíta do probabilismo, a defesa jesuíta dos ritos chineses como civis e não religiosos e a defesa dos direitos independentes dos guaranis nas reduções paraguaias, são bem escolhidos – embora perdoavelmente jesuítas em seu foco.

Keenan também está perfeitamente ciente e incrivelmente bem informado sobre como o status social, geográfico, étnico e de gênero daqueles e daquelas que estão fazendo ética teológica hoje afeta naturalmente o trabalho que fazem. Os praticantes da ética teológica não são mais principalmente clérigos ensinados a tratar o confessionário como um “tribunal” e o padre como um juiz, como eram desde a época do Concílio de Trento. Eles não escrevem mais – como os teólogos morais do início e meados do século XX eram cada vez mais obrigados a fazer – tendo o magistério romano como seu principal público-alvo.

Suponho que muitos leitores desse livro provavelmente abandonaram a prática confessional semanal de seus pais e avós. Minha própria paróquia tem oito ou dez enormes confessionários de mármore cuja utilidade não é mais a mesma, embora muitos bispos estadunidenses desejem que seja de outra forma. As pessoas simplesmente pararam de ir se confessar, como diz maravilhado um dos padres com quem Tentler fala em seu livro. Os leitores de “A History of Catholic Theological Ethics” sairão com uma explicação poderosa do porquê isso aconteceu e que tentativas sérias estão em andamento para dar à consciência e ao discipulado aquilo que lhes é devido.

Referências

KEENAN, James F. A History of Catholic Theological Ethics. Paulist Press

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