Júlia Landgraf, mestre em Antropologia Social, acompanhou o tombamento da Fazenda da Tafona, em Cachoeira do Sul/RS.
A reportagem é de Duda Romagna, publicada por Sul 21, 05-03-2021.
Júlia Landgraf é formada em Psicologia pela Universidade Federal de Ciências das Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e, durante sua graduação, se aproximou da Antropologia por meio de um programa de iniciação científica e em um estágio na área de saúde indígena, além de ter sido educadora popular voluntária no Pré-Vestibular Popular Dandara. Sua convergência com a educação em relações étnico-raciais e o ingresso ao mestrado em Antropologia Social fez com que seguisse no tema, com enfoque no papel das pessoas na perpetuação do racismo.
A dissertação “Memória histórica e branquitude: racialização de pessoas brancas no reconhecimento de um passado familiar escravista” foi elaborada com orientação do professor Pablo Quintero e considera o entendimento dos processos de racialização no Rio Grande do Sul.
Quando adolescente, Júlia acompanhou o processo de tombamento de uma propriedade rural em Cachoeira do Sul, a Fazenda da Tafona. Percebeu, então, que transformar em museu um local que, no século XIX, abrigava uma fazenda com trabalho escravo era uma maneira de reconhecimento desse passado. “Não é incomum pra pessoas brancas terem esse passado, mas isso normalmente é tratado como um segredo, algo que não se discute. Portanto, quando comecei a estudar a branquitude, vi que ali havia algo interessante a ser analisado”, explica a pesquisadora.
O local foi tombado em 2016 e a família proprietária iniciou um projeto educativo com visitas escolares e para grupos sobre a escravidão que ali aconteceu. Júlia relata que a família era muito ativa nas redes sociais contando a história da fazenda. O estudo foi feito em grande parte de maneira remota, com entrevistas em profundidade com o casal que coordena e mantém o projeto.
A análise documental mostrou que havia muitos registros dos bens da família e nada sobre a história das pessoas escravizadas. Os inventários, inclusive, mostraram que essas pessoas eram consideradas como posse.
O que inspirou Júlia foi a leitura de Alberto Guerreiro Ramos, sociólogo negro brasileiro considerado um dos primeiros autores dos Estudos Críticos da Branquitude, antes dela ser considerada um campo de estudos. “Ele escreve que todos levamos conosco ‘souvenires históricos’ que conformam nossa visão de mundo, e que o fato de algumas pessoas brancas serem descendentes de famílias que tiveram a posse de pessoas escravizadas certamente impacta na formação psicológica de cada um. Eu me senti praticamente convocada pelo Guerreiro Ramos a investigar esse impacto”, diz.
Ela explica que o campo é uma área emergente, com cada vez mais pessoas engajadas na produção teórica e prática. “Afinal, estamos falando de caminhos para findar o racismo no Brasil, o que requer uma práxis”, declara. Além disso, acredita que as recentes descobertas de pessoas em situação de trabalho análoga à escravidão no estado mostram como a classificação racial ainda é um artifício para colocar pessoas negras e nordestinas nesse contexto.
“E o fato de o Brasil enquanto nação nunca ter discutido a continuidade da exploração do trabalho de pessoas negras pós-abolição faz com que cenários como esse possam ser normalizados, ao mesmo tempo em que pessoas brancas podem lavar as mãos e dizer que a escravização é algo do passado com a qual não temos nada a ver. As pessoas brancas precisam se enxergar enquanto partícipes do racismo, e precisam falar sobre raça e sobre exploração pra que possamos ter avanços”, conclui Júlia.
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